sábado, 27 de agosto de 2016

Rejeição de contas do Prefeito pela Corte de Contas

Está havendo uma repercussão muito grande nos meios jurídicos da última decisão tomada, por maioria de votos, pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do RE nº 848826 em que foi reconhecida a existência de repercussão geral sobre o tema, ainda pendente de publicação do Acórdão, no sentido de que as contas de governo e as contas de gestão dos Prefeitos devem ser julgadas exclusivamente pela Câmara dos Vereadores, cabendo ao Tribunal de Contas auxiliar o Poder Legislativo Municipal, emitindo parecer prévio e opinativo, que só poderá ser derrubado por decisão de 2/3 dos vereadores.

Em boa hora o STF veio restabelecer a necessária segurança jurídica ao vedar ao Tribunal de Contas o julgamento direto das contas de gestão do Prefeito, que é uma prerrogativa constitucional da Câmara Municipal. Não bastasse o inciso I[1], do art. 71 da CF, cc o art. 75 que prescreve o princípio da simetria, dispõe o art. 31 da CF, in verbis:

“Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.

1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.
2º O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
3º As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.
4º É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais.
 
Como se verifica, em se tratando de apreciação de contas do Prefeito, o parecer prévio do Tribunal de Contas Estadual ou do Município, nos casos de São Paulo e Rio de Janeiro, só pode deixar de ser acolhido pela Câmara Municipal por votos de 2/3 de seus membros, o que não acontece com as contas do Chefe do Executivo da União em que o Congresso Nacional atua apenas politicamente. Na Câmara de Vereadores o julgamento é técnico-político.

Os que defendem o julgamento das contas do Prefeito diretamente pelo Tribunal de Contas o fazem mediante interpretação literal do incido II[2], do art. 71 da Constituição colocando o Chefe do Executivo Municipal, que é membro de um Poder, no mesmo patamar de administradores subalternos e fazendo tábula rasa à nossa Federação típica que, na feliz expressão do saudoso jurista Geraldo Ataliba, é composta de entidades políticas juridicamente parificadas. Sustentam que o Prefeito no exercício de suas atribuições atua como administrador de recursos públicos, isto é, ordenador de despesas, o que é verdade em se tratando de Municípios de pequeno porte, onde o Prefeito é o administrador, é o tesoureiro, é o ordenador de despesas, é o cobrador, é o elaborador da folha etc. Mas, isso não acontece nos Municípios das Capitais onde o Prefeito exerce a direção superior da administração com auxílio de secretários. Nesses Municípios há, não só a distribuição, como também, um escalonamento completo de órgãos com atribuições específicas de seus agentes. Não é o Prefeito quem promove o empenho das despesas públicas. Ele não se confunde com administrador e demais responsáveis por dinheiros públicos de que cuida o inciso II, do art. 71 da CF. O mesmo acontece nas esferas da União e dos Estados. Presidente da República e Governadores não são administradores de recursos públicos. Por que somente o Prefeito, que igualmente é Chefe de um Poder e tem foro privilegiado, deve merecer um tratamento diferenciado? Por que o Município é uma entidade política menor, na linguagem dos civilistas tradicionais?

É certo que o TSE, para efeito de proclamar a inelegibilidade do candidato que teve suas contas rejeitadas (art. 1º, I, g da LC nº 64/90), distinguiu contas de gestão, da gestão de contas, as primeiras (contas do governo) submetidas ao parecer prévio do Tribunal de Contas (inciso I, do art. 71 da CF), e as segundas (contas dos administradores) submetidas ao julgamento direto pela Corte de Contas (inciso II do art. 71 da CF).

Em recente julgamento o STF reformou a decisão proferida pelo TSE que havia indeferido o registro da candidatura para o cargo de Deputado Estadual nas eleições de 2014 em razão da rejeição pelo TCE das contas prestadas, quando o então candidato era Prefeito. A Corte Suprema fixou, por maioria de votos, a tese de que as contas do Prefeito deverão sempre ser julgada pela Câmara Municipal após parecer prévio da Corte de Contas.

Decisão mais do que acertada que afasta a insegurança jurídica que conspira contra o próprio conceito de direito.  Primeiro,  porque nem sempre é possível distinguir gestão de contas, das contas de gestão, um filigrana jurídico que brotou da idiossincrasia de um determinado julgador. Segundo, porque as despesas realizadas pelo Prefeito, enquanto ordenador de despesas (nos Municípios de pequeno porte), tal como as dos demais administradores de recursos públicos, necessariamente devem ser incluídas nas contas anuais a serem prestadas pelo Prefeito sobre as quais não podem pairar dúvidas quanto à competência privativa da Câmara de Vereadores para julgamento, em face de norma expressa no art. 31 da CF. Fazer essa distinção entre contas de gestão e gestão de contas para submetê-las a um tratamento diferenciado assemelha-se à distinção entre tributo e imposto para afirmar, por exemplo, que apenas os tributos se submetem ao império da legalidade, e não os impostos. Filigranas jurídicas que deitam sombras duvidosas e turvam as águas claras e límpidas devem ser repelidas elo exame da ordem jurídica global.

Aliás, após o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal essa questão deveria estar pacificada, ao teor do que dispõe o art. 56 que assim prescreve:

“Art. 56. As contas prestadas pelos Chefes do Poder Executivo incluirão além das suas próprias, as dos Presidentes dos Órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Chefe do Ministério Público, referidos no art. 20, as quais receberão parecer prévio, separadamente, dos respectivo Tribunal de Contas.

1º As contas do Poder Judiciário serão apresentadas no âmbito:
I – da União, pelos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, consolidando as dos respectivos tribunais;

II – dos Estados, pelos Presidentes dos Tribunais de Justiça, consolidando as dos demais tribunais.

2º O parecer sobre as contas dos Tribunais de Contas será proferido no prazo previsto no art. 57 pela comissão mista permanente referida no § 1º do art. 166 da Constituição ou equivalente das Casas Legislativas estaduais e municipais.
3º Será dada ampla divulgação dos resultados da apreciação das contas, julgadas ou tomadas.”

Esse dispositivo, que se refere a Chefes do Poder Executivo e se harmoniza com os preceitos constitucionais, não deve ser interpretado literalmente, para concluir que as contas anuais do chefe do Executivo incluem a dos Presidentes dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Chefe do Ministério Público.

O preceito tem o sentido de que aquelas contas poderão ser encaminhadas juntamente com as contas do chefe do Poder Executivo, nada   impedindo que sejam encaminhadas separadamente, porque a Corte de Contas (TCU, TCE ou TCM) emite parecer prévio separadamente, como prescreve a norma transcrita. A LRF uniformizou a atuação da Corte de Contas relativamente às contas apresentadas por Chefes de Poderes nas três esferas políticas. Com relação a esse preceito legal só temos uma ressalva a fazer conforme já escrevemos: “Em relação às contas apresentadas pela chefia do Ministério Público a exigência de parecer prévio não implica a retirada da atribuição do Tribunal de Contas de julgá-las, nos termos do inciso II, do art. 71, da CF. Não há como estender ao órgão ministerial a prerrogativa própria de Chefe de Poder, ainda que tenha independência orçamentária.”[3]

Entretanto, certos setores da doutrina especializada criticam a escorreita decisão do STF que deu a mais correta interpretação ao art. 31 e ao art. 71 I e II, cc. art. 75 da CF, sob o argumento de que aquele posicionamento da Corte Suprema abre as portas para o desvio de recursos financeiros públicos e acaba enterrando a Lei da Ficha Limpa.

Embora não se deva negar o componente político que está sempre presente nas Cortes Supremas de qualquer País do mundo, não se pode perder de vista que é papel da Corte Suprema a guarda da Constituição, interpretando por critérios estritamente jurídicos os preceitos da Lei maior, como aconteceu no caso sob exame. O Prefeito deve ter a segurança de ter suas contas julgadas politicamente e não apenas pelo ângulo estritamente técnico, quando um simples erro técnico poderá conduzir à sua inelegibilidade e liquidar a sua carreira política. É função e dever do Prefeito agir politicamente para bem atender aos interesses da comunidade local. Não se pode impingir-lhe uma filigrana jurídico que lhe retira o sono e a necessária tranqüilidade fazendo com que ele governe a cidade em estado de insegurança jurídica total, assustado e apavorado como alguém que fica saltitando quando colocado descalço em cima de uma chapa de aço aquecida.

Na nossa opinião o que propicia desvios de recursos financeiros e provoca desequilíbrio das contas públicas é o descumprimento sistemático da LRF que veio à luz para impor uma política de gestão fiscal responsável, enfim, tutelar as leis de natureza orçamentária, notadamente, a Lei Orçamentária Anual. E os agentes políticos estão fazendo exatamente o contrário: exercitam rotineiramente a política de total irresponsabilidade fiscal, contando com o costumeiro aumento da carga tributária para reequilibrar as contas públicas, sempre às custas do chamado cidadão comum. Formou-se um círculo vicioso em que se alternam o rombo das contas públicas e a elevação dos impostos.  É assim que o nível de imposição tributária que era de 20% do PIB no início da década de 90, hoje atingiu 36% do PIB. Quanto maior o rombo, maior é a carga tributária, e quanto mais se arrecada maior o desperdício e a gastança pública. É preciso interromper esse círculo vicioso. Não é certamente a forma de julgar as contas que resolverá esse problema, mas a ação preventiva ou simultânea eficiente dos órgãos internos e externos de fiscalização e controle da execução orçamentária.

Para disfarçar ou despistar esse ato condenável de transferir recursos cada vez maior da iniciativa privada para o setor público, causando uma recessão sem precedentes na história, com 12 milhões de desempregados, os detentores do poder político, ora propõem instrumentos normativos para conter os gastos nos próximos 20 anos no exercício da futurologia; ora promovem alterações das metas do superávit primário no apagar das luzes de cada exercício, sob pueril argumento de que as metas são anuais; ora modificam sutilmente algumas das normas da LEF ou tentam alterar outras. As que não foram alteradas por falta de quorum ou coisa parecida são consideradas revogadas: ninguém precisa cumprir. Integrantes dos órgãos incumbidos de fiscalizar e controlar a execução orçamentária, também se quedam inertes, porque, na maior das vezes, são beneficiários dessa omissão ilegal. Só o chamado cidadão comum é que arca com as consequências da gastança de dinheiro público, enquanto os da classe especial, os cidadãos de primeira categoria curtem o ócio à sombra de uma frondosa árvore, comendo e bebendo do bom e do melhor.

Para equilibrar de vez as contas públicas e estabilizar o nível de imposição tributária nos patamares razoáveis é preciso extirpar de vez a corrupção enraizada que é sustentada por um tripé: a psicopatia generalizada; a quebra do referencial ético; e a incompetência como requisito para o exercício de cargos e funções públicas relevantes.

[1] Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I – apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

[2] II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros , bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mentidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que deram causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízos ao erário público.

[3] Cf. nosso Responsabilidade fiscal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 225.

por Kiyoshi Harada

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