Introdução
O regimento interno do CARF, desde a alteração promovida pela Portaria do Ministério da Fazenda 586, de 21/12/2010, prevê em seu artigo 62 que “fica vedado aos membros das turmas de julgamento do CARF afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade”. O § 2º determina que “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática dos arts. 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 1973, ou do s arts. 1.036 a 1.041 da Lei nº 13.105, de 2015 – Código de Processo Civil, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF.”
Apesar de ter sido muito discutida e ter encontrado muita resistência para a sua adoção, a questão que jamais pode ser desconsiderada é que não faz sentido que qualquer das partes – contribuinte ou Fazenda – inaugure uma discussão judicial, já sabendo, de antemão, que a decisão dos tribunais superiores será contrária à tese esposada.
É certo que a Fazenda Nacional não pode discutir se for vencida na esfera administrativa. Por outro lado, é obrigada a exigir o crédito quando é vencedora na esfera administrativa e o faz, quando o crédito não foi satisfeito pelas vias administrativas, por meio de execução fiscal.
Ademais, deve ser sempre lembrado que o ônus da discussão no Poder Judiciário é muito grande. Para o contribuinte há o aumento do valor do débito pela inscrição na dívida, as custas processuais e o ônus da sucumbência. Para a Fazenda, a partir do novo CPC, há o ônus da sucumbência, com verbas honorárias significativas.
Assim, o que se quer expor é se existe razoabilidade em decisões administrativas que ignoram a jurisprudência pacífica dos tribunais superiores (mesmo aquelas não vinculadas pela sistemática dos recursos repetitivos ou com repercussão geral), pois é evidente o ônus advindo dessas decisões, seja pela movimentação de toda a estrutura do Poder Judiciário – aí envolvendo a Procuradoria da Fazenda Nacional e a Justiça Federal – além dos custos que os contribuintes terão até o resultado final.
Essa análise tem cabimento, especialmente, após a decisão da 3ª. Turma da Câmara Superior do CARF. Em julgamento realizado em junho, pela sistemática dos recursos repetitivos, o colegiado entendeu que o PIS e Cofins, até julho de 2004, incidem sobre os bens destinados para a Zona Franca de Manaus. A decisão foi por proferida por voto de qualidade. Na direção contrária, o STJ, de forma unânime, tem entendimento firmado há mais de uma década, pela não incidência dessas contribuições.
Sobre a incidência do PIS e da COFINS nas vendas destinadas à ZFM antes de 2004 e o entendimento do Superior Tribunal de Justiça
A questão tratada nesses julgados da 3ª. Turma da CSRF do CARF não é nova no tribunal administrativo como também não é nova no Poder Judiciário.
A discussão surgiu por meio da MP 1856-6 (com sucessivas reedições) e posteriormente em 2000, com a edição da Medida Provisória 2037-19 (que sofreu várias reedições), que suprimiu a isenção das operações para a ZFM para o PIS e a COFINS. Em 2004, com a edição da Lei 10.996, foi atribuída alíquota zero para tais contribuições encerrando a discussão.
Porém, para o período entre fevereiro de 1999 a julho de 2004 há a discussão sobre a incidência dessas contribuições para as vendas de produtos para a Zona Franca de Manaus.
O tema central está em saber se a isenção tem seu fundamento no próprio Decreto-Lei 288/67 que criou a ZFM e se poderia uma lei (ou Medida Provisória) alterar essa isenção.
Após anos de discussão na 1ª. e na 2ª. instâncias o tema chegou ao STJ e foi analisado por suas duas turmas, que de forma UNÂNIME e PACÍFICA, entenderam pela não incidência das contribuições.
Apenas para esclarecer esse posicionamento, citamos a parte final da ementa do Recurso Especial 817.847, tendo por relator o Ministro Mauro Campbell Marques, que faz referência aos precedentes das duas turmas julgadoras do STJ:
“4. A jurisprudência da Corte assentou o entendimento de que a venda de mercadorias para empresas situadas na Zona Franca de Manaus equivale à exportação de produto brasileiro para o estrangeiro, em termos de efeitos fiscais, segundo interpretação do Decreto-lei n. 288/67, não incidindo a contribuição social do PIS nem a Cofins sobre tais receitas.
5. Precedentes: REsp 1084380/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 26.3.2009; REsp 982.666/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 18.9.2008; AgRg no REsp 1058206/CE, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 12.9.2008; e REsp 859.745/SC, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 3.3.2008.
6. Recurso especial não provido.”
Ainda, dentre os precedentes citados, o primeiro é o do RESP 1.084.380 de relatoria do atual Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki que deve ser aqui citado:
“Nos termos do art. 40 do ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, da Constituição de 1988, a Zona Franca de Manaus ficou mantida “com suas características de área de livre comercio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, por 25 anos, a partir da promulgação da Constituição”.
Ora, entre as “características” que tipificam a ZAFM destaca-se esta de que trata o art. 4º do Decreto Lei 288/67, segundo o qual “a exportação de mercadorias de origem nacional para consumo ou industrialização na ZFM, ou reexportação para o estrangeiro, será para todos os efeitos fiscais, constantes da legislação em vigor, equivalente a uma exportação brasileira para o estrangeiro”. Portanto, durante o período previsto no art. 40 do ADCT e enquanto não alterado ou revogado o art. 4º do DL 288/67, há de se considerar que, conceitualmente, as exportações para a ZFM são, para efeitos fiscais, exportações para o exterior. Logo, a isenção relativa à COFINS e ao PIS é extensiva à mercadoria destinada à ZF.”
Pela rápida leitura das ementas se verifica, sem qualquer sombra de dúvida, o posicionamento do STJ, repita-se, sem qualquer voto em contrário por parte dos Ministros que compõem as duas Turmas Julgadoras, que entende pela não incidência das contribuições PIS e COFINS sobre os bens destinados para a Zona Franca de Manaus.
Sobre a incidência do PIS e da COFINS nas vendas destinadas à ZFM antes de 2004 e o entendimento do CARF – especialmente da 3ª Turma da CSRF
Este tema também é objeto de muitos processos que tramitam no CARF. Apesar de tanto a doutrina como a jurisprudência do STJ, há anos, entender pela não incidência de tais contribuições, é certo que a jurisprudência do Conselho sempre foi oscilante quanto ao tema, com maioria de julgados em favor da incidência das contribuições.
A 3ª Turma já votou, anteriormente, pela não incidência da contribuição para o período de 22/12/2000 a 2004, vide acórdãos 9303-002.647, 9303-002.648 e 9303-002.649.
Todavia, em recente julgamento pela sistemática dos recursos repetitivos, a 3ª Turma da CSRF julgou, pelo voto de qualidade, vários processos que versam sobre este tema, entendendo pela incidência das contribuições do PIS e da COFINS.
O acórdão norteador das decisões é o 9303-003.934, cuja ementa é a seguinte:
Assunto: Contribuição para o PIS/Pasep
Período de apuração: 01/02/2002 a 28/02/2002
PIS e COFINS. RECEITAS DE VENDAS A EMPRESAS SEDIADAS NA ZONA FRANCA DE MANAUS. INCIDÊNCIA.
Até julho de 2004 não existe norma que desonere as receitas provenientes de vendas a empresas sediadas na Zona Franca de Manaus das contribuições PIS e COFINS, a isso não bastando o art. 4º do Decreto-Lei nº 288/67.
Recurso Especial do Contribuinte Negado
Anote-se que o teor da ementa indica para caminho oposto ao entendimento do STJ.
Enquanto que para o CARF não existe norma que desonere as receitas provenientes das vendas a empresas sediadas na ZFM das contribuições ao PIS e COFINS, para o STJ “durante o período previsto no art. 40 do ADCT e enquanto não alterado ou revogado o art. 4º do DL 288/67, há de se considerar que, conceitualmente, as exportações para a ZFM são, para efeitos fiscais, exportações para o exterior. Logo, a isenção relativa à COFINS e ao PIS é extensiva à mercadoria destinada à ZF.”
Ao analisarmos o conteúdo do citado acórdão, podemos verificar que o voto vencido da relatora estava fundamentado na decisão do STF quando do julgado da ADI-MC 2348/DF e nas inúmeras decisões do STJ especificamente sobre esta matéria.
O voto vencedor, por sua vez, reconhece a existência de decisões do STJ em sentido oposto ao seu entendimento, mas justifica-se no fundamento de que essas decisões do STJ não cumprem os requisitos do artigo 62 do Regimento Interno do CARF, isto é, não há decisão do STJ sobre esse assunto proferida na sistemática dos recursos repetitivos, e, por isso, tais decisões não seriam seguidas.
Ademais, o voto vencedor sequer cita ou enfrenta os argumentos trazidos nos diversos julgados do STJ.
É certo que não há qualquer exigência para que o julgador administrativo enfrente a jurisprudência dos tribunais superiores, mas, o que se quer colocar em discussão é se é razoável que um tribunal administrativo ignore um entendimento unânime e pacífico do Tribunal Superior, posição, inclusive, sobre a qual não há qualquer possibilidade de mudança.
Reflexos da decisão administrativa: quem perdeu a demanda de verdade? A Fazenda e a sociedade.
Qual será o passo seguinte para os contribuintes que perderam seus recursos no CARF? Ora, certamente, ingressarão com ações judiciais para garantir o seu direito, e contarão com o precedente do STJ, inclusive, para obtenção de liminares.
Ao final, certamente, os contribuintes terão êxito em suas ações. A Fazenda Nacional, além de perder valores significativos em razão dos honorários, terá usado o valioso tempo dos seus procuradores e o valioso tempo de toda a estrutura do Poder Judiciário para discutir um tema que já se sabe a decisão final do Superior Tribunal de Justiça (que é o competente para se manifestar sobre a questão). A decisão será favorável ao contribuinte.
Assim, desprezar a jurisprudência pacífica e consolidada sobre determinado assunto, não parece uma solução acertada ou razoável para o Tribunal Administrativo, pois essa “desconsideração da jurisprudência” trará prejuízo para toda a sociedade que arcará com os custos da decisão dissonante.
Enfim, importante colocar esse tema em discussão para que se possa transcender das posições pessoais para uma análise global do tema e assim buscar soluções em harmonia com o sistema processual e jurisprudencial em que se insere as relevantes decisões tomadas pelo CARF.
Por Susy Gomes Hoffmann
Advogada. Mestre e Doutora em Direito do Estado pela PUC/SP. Conselheira do 3º. Conselho de Contribuintes e depois CARF entre março 2005 até março 2014. Vice-Presidente do CARF entre novembro 2009 até março 2014
Fonte: Jota
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