Nesta semana, a Medida Provisória 685, de 21 de julho de 2015, instituiu, no artigo 7º, a obrigação acessória de informar, anualmente, à administração tributária as operações e atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo. E, segundo o artigo 8º, quando a declaração relatar atos ou negócios jurídicos ainda não ocorridos, o contribuinte adotará a consulta à legislação tributária, nos termos dos artigo 46 a artigo 58 do Decreto 70.235, de 6 de março de 1972. A declaração antielusiva e a consulta preventiva antielusiva visam a reduzir riscos recíprocos, prevenir litígios e conferir segurança jurídica aos contribuintes.
É induvidosa a importância da medida. Baseia-se no dever de transparência e chega como parte do novo paradigma de “Fisco Global”, nos esforços de implementação do Programa Base Erosion and Profit Shifting – BEPS, da OCDE,1 especialmente quanto ao Plano de Ação 12 (Mandatory Disclosure Rules – obrigação para que os contribuintes revelem seus esquemas de planejamento tributário agressivo). 2 Com isso, o Fisco brasileiro reforça sobremaneira sua capacidade de fiscalização, mas com ganho notável na relação com os contribuintes, pela demanda de compliance e de boa fé que a medida impõe.
Registre-se, porém, que a declaração e a consulta preventiva antielusiva não equivalem a alguma regulamentação do parágrafo único do artigo 116, do Código Tributário Nacional – CTN, ao tempo que não correspondem a qualquer forma de “norma geral antielusiva”. A norma não cria “procedimentos” mediante os quais a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Portanto, sua função é diversa, ainda que se possa compreender como medida complementar para combater os planejamentos tributários agressivos ou abusivos.
Conforme as orientações da OCDE, o Plano de Ação 12 deve entrar em vigor nos países cooperantes do BEPS até setembro de 2015,3 cabendo ao Brasil4 a elaboração de normas de “declaração obrigatória de transações, esquemas, ou estruturas de caráter agressivo, ou abusivo”. Portanto, a Medida Provisória 685/2015 é fruto daquele Plano de Ação e da experiência exitosa de diversos países. E quanto à finalidade, a de permitir segurança jurídica ao setor privado (a) e redução dos custos com litígios por parte das administrações tributárias (b), com a “maior coerência possível” entre os países. Uma condição fundamental para favorecer a competitividade e promover uma concorrência equilibrada entre empresas nacionais e estrangeiras.
O regime do “Mandatory Disclosure Rules” reclama a “obrigatoriedade” das declarações ou consultas de planejamento tributário. Será este o mesmo modelo que se pretende implantar em todos os países (128, atualmente) do “Fórum Global sobre Transparência e Intercâmbio de Informações para Fins Tributários” (Global Forum).
Trata-se de medida que já se encontra em vigor em diversos países, como Estados Unidos (IRC section 6662, após 22de setembroo de 2004, e sanções aplicadas conforme a IRC section 6707A), Reino Unido, África do Sul, Portugal (2009), Canadá, Irlanda, Chile (2015) e outros.
Urge que se verifique a compatibilidade das medidas de declaração obrigatória com a ordem constitucional vigente, tanto no que concerne às limitações constitucionais ao poder de tributar, quanto em relação às regras e princípios que asseguram as liberdades de iniciativa, comerciais e societárias, pela garantia da autonomia privada. Contudo, não se pode esquecer do princípio que exige a função social da propriedade privada (artigo 5º, XII da CF), a justificar o necessário equilíbrio entre o poder de tributar e a autonomia privada.
As medidas de Mandatory Disclosure Rules (declarações obrigatórias) estão concebidas prioritariamente para planejamentos tributários com operações internacionais, ainda que não se imponham exclusividade para esse propósito. Ao contrário, todos os comentários da OCDE admitem aplicação extensiva a operações internas. Portanto, é possível e desejável que a norma seja aplicada a todos os tipos de planejamentos tributários, com ou sem operações internacionais.
É o caso do regime brasileiro previsto no artigo 7º da Medida Provisória 685/2015, quando deverão ser informados, independentemente do local de execução dos atos ou negócios jurídicos que acarretem “supressão, redução ou diferimento de tributo”, a saber:
a) os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes;
b) a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou
c) tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em Regulamento.
Verifique-se que o texto trata do conceito de “tributo”, logo, a norma tem aplicação material extensível a todas as espécies de tributos, como impostos, taxas e contribuições.
O objetivo da declaração ou da consulta antielusiva é facilitar a transparência e acesso ao Fisco, antes ou durante a execução do “planejamento tributário agressivo”, para identificar as pessoas envolvidas e a relação entre forma e substância dos atos, de sorte a permitir a separação entre casos de evasão, de elusão e de planejamento legítimo.5
Outra exigência é que o sujeito passivo apresente uma declaração para cada conjunto de operações executadas de forma interligada.
Em vista disso, não será qualquer “planejamento tributário” a ser informado, mas apenas aqueles que atendam aos critérios definidos no artigo 7º, com as motivações sobre as situações de fato e de direito adotadas. É fundamental que as informações sejam precisas e qualificadas. Até porque o artigo 11 dispõe que a declaração será ineficaz quando “omissa em relação a dados essenciais para a compreensão do ato ou negócio jurídico” ou “contiver hipótese de falsidade material ou ideológica”.
O teste deverá ser sempre o exame da causa jurídica das operações, ou seja, do fim negocial pretendido pelas partes. Se o conjunto de atos encontra-se todo ele orientado para o atingimento do fim proposto, com comprovação do efetivo cumprimento das obrigações, este torna-se oponível contra terceiros, inclusive o próprio Fisco. Este modelo teórico de qualificação da elusão tributária a partir da determinação de negócios ou atos jurídicos desprovidos de “causa jurídica”, com ausência apurada a partir da linguagem das provas, tem como vantagem a segurança jurídica, afastada a subjetividade dos meios fundados em repercussões econômicas.
Assim, as atividades que disponham de “causa jurídica” bem evidenciada, “forma usual”, como nos casos de negócios diretos e contratos com cláusulas costumeiras e coerentes com as previsões legais, e não se encontrem dentre as modalidades listadas em regulamentação própria, não precisarão ser declaradas ou objeto de consulta.
O “dever de informar” das declarações ou consultas antielusivas deve ser estimulante de compliance, de conformidade. Não pode ser admitido como meio invasivo ou inibitório da atividade econômica ou de intervenção do Estado na autonomia privada. Por conseguinte, o Fisco deve resistir à tentação de usar do regulamento para listar casos de “planejamentos tributários abusivos” nos quais pairem dúvidas, como é o caso de divergência jurisprudencial. A “lista negra” (artigo 7º, III) de planejamentos não pode ser um modo de ingerência estatal na autonomia privada dos sujeitos passivos, mas ser elaborada com critérios e justificativas fundamentadas.
Quem deverá reportar a declaração ou promover a consulta será o “sujeito passivo”. Nesta expressão, numa interpretação conforme o artigo 121, parágrafo único do CTN, encontram-se o “contribuinte” e o “responsável tributário”. Segundo as orientações das “Mandatory Disclosure Rules”, poderiam efetuar a declaração tanto os sujeitos passivos quanto os “planejadores” (executores ou consultores). O Brasil, claramente, restringiu esta opção aos “sujeitos passivos”, defeso qualquer ato de consultores em favor daqueles (beneficiários) para oferecer as declarações ao Fisco. Como sanção, o artigo 11 prescreve que a declaração será ineficaz, inclusive a retificadora ou a complementar, quando apresentada por quem não for o sujeito passivo das obrigações tributárias resultantes das operações, bem como se envolver interposição fraudulenta de pessoas.
O tempo é fator importante. Primeiro, sobre “quando informar”. O “planejamento tributário” deverá ser declarado até 30 de setembro de cada ano. No conteúdo, a informação há de ser prestada no primeiro ano da realização concreta dos atos passíveis de informação, sob pena de ineficácia. E a consulta preventiva poderá ser apresentada a qualquer tempo, antes da execução dos atos ou operações a serem praticadas.
Falemos agora das consequências do non-compliance. O descumprimento das normas do regime de Mandatory Disclosure deve vir acompanhado de sanções.6 Por isso, após a análise dos atos ou operações informados, salvo se admitido como válido o planejamento tributário, do non-compliance poderá haver as seguintes consequências, a saber:
não reconhecer as operações declaradas, caberá o recolhimento ou parcelamento dos tributos acrescidos apenas de juros de mora, no prazo de trinta dias (artigo 9º); ou
por não atender ao dever de declarar ou ter a declaração considerada como “ineficaz”, como presunção a “omissão dolosa” do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude, exige-se os tributos devidos acrescidos de juros de mora e da multa de 150%, prevista no parágrafo 1º do artigo 44 da Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996 (art. 12).
Como não poderia ser diferente, da decisão denegatória ou da autuação do artigo 12 caberá sempre a impugnação administrativa, para que o sujeito passivo possa usar dos meios de prova disponíveis na defesa dos seus direitos. Ao mais, o Fisco deve ter um prazo certo para responder as declarações ou consultas, que devem vir sempre motivadas.
Talvez no artigo 12 esteja o ponto mais sensível da MP 685/2015, pois as sanções não acompanham as possibilidades de casos passíveis de ocorrência e peca por criar uma presunção de “omissão dolosa” do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude.
Conforme as orientações do BEPS, as consequências do non-compliance devem ser efetivas, para obrigar os sujeitos passivos a cumprirem com as obrigações acessórias de declaração ou de consulta preventiva antielusivas, mas devem ser definidas segundo o direito interno de cada país. Assim, a forma da sanção (pecuniária ou não) e o valor ou percentual da multa devem ser coerentes com os sujeitos e com as situações envolvidos, segundo o princípio de proporcionalidade.
Quanto aos efeitos, não se pode deixar de considerar que este modelo de Declaração Obrigatória poderia receber na regulamentação maior aproximação com a “denúncia espontânea”, do artigo 138 do CTN. Dada a hierarquia do Código Tributário e efeitos do artigo 138, restritos ao pagamento do tributo e juros de mora, esta seria sempre mais benéfica do que a própria declaração. E tal é a semelhança que a declaração não poderá ser entregue quando houver fiscalização em curso (art. 9º, parágrafo único).
Tendo em vista este parâmetro, a alegação de “fraude”, que implica a imputação de delito penal por presunção, parece admitir um “dever de auto-incriminação”, o que não é coerente com a proporcionalidade das sanções e com o modelo do BEPS.7 Sugere-se, aqui, reflexões sobre aprimoramentos para distinguir sanções segundo as condutas e a própria finalidade de compliance e boa fé de quem declara ou promove a consulta preventiva.
Questão relevante diz respeito aos atos anteriores à vigência da Medida Provisória 685/2015. Ao nosso ver, salvo quanto à lista de planejamentos (artigo 7º, III), que poderá identificar atos ou negócios jurídicos específicos a serem desconsiderados nas ulteriores declarações (mesmo anteriores à vigência), o princípio de irretroatividade do não benigno proíbe a aplicação do artigo 12 aos planejamentos anteriores a 2015, mesmo que dentro do prazo de decadência. O citado artigo 12 não poderia retroagir seus efeitos para impor sanção sobre situações antes desobrigadas da obrigação acessória de declarar. Como “justiça de transição”, vê-se aplicável à espécie o artigo 146 do CTN, por se tratar de modificação do critério para o lançamento tributário, o que somente poderia ser efetivado quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.
Ora, se o paradigma do “Fisco Global” volta-se para consagrar a recomposição das bases tributáveis de cada país, o novo contribuinte (sem fronteiras) deve mover-se com responsabilidade e compliance,8 no direito de organizar planejamentos lícitos e providos de substância, com cuidados objetivos para redução de riscos tributários futuros e outros.
Numa síntese, as expectativas de condutas com transparência, boa fé e cautelas de boa administração informam todo o modelo jurídico do século XXI. Por isso, do direito de livre gestão, passa-se ao dever de compliance fiscal, para afastar riscos tributários à atividade (ética interna), induzir lealdade concorrencial (ética entre iguais) e fortalecer o cumprimento da função social da propriedade (artigo 5º, XII da CF), pela garantia de preservação das bases tributáveis dos estados (ética social).
Neste contexto foi que a Medida Provisória 685/2015 instituiu a nova obrigação acessória de declaração ou consulta para informar as operações e atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo. Uma racionalidade coerente com os novos tempos de compliance do Direito Comercial e do Direito Penal,9 a justificar controles mais rigorosos por parte da Administração Tributária, preservados logicamente os direitos e garantias fundamentais.
1 OECD. Action Plan on Base Erosion and Profit Shifting. Paris: OECD Publishing, 2013. http://dx.doi.org/10.1787/9789264202719-en
2 “ACTION 12 - Require taxpayers to disclose their aggressive tax planning arrangements): Develop recommendations regarding the design of mandatory disclosure rules for aggressive or abusive transactions, arrangements, or structures, taking into consideration the administrative costs for tax administrations and businesses and drawing on experiences of the increasing number of countries that have such rules. The work will use a modular design allowing for maximum consistency but allowing for country specific needs and risks. One focus will be international tax schemes, where the work will explore using a wide definition of “tax benefit” in order to capture such transactions. The work will be co-ordinated with the work on co-operative compliance. It will also involve designing and putting in place enhanced models of information sharing for international tax schemes between tax administrations.”
3 Em 11 de maio de 2015, realizou-se na OCDE a última consulta pública sobre o Plano de Ação 12 –“Mandatory Disclosure Rules”. http://www.oecd.org/ctp/aggressive/discussion-draft-action-12-mandatory-disclosure-rules.pdf e http://www.oecd.org/tax/aggressive/public-comments-beps-action-12-mandatory-disclosure-rules.pdf
4 Conforme o art. 12 da Lei nº 12.995, de 2014, o art. 5º da Lei nº 12.649, de 17 de maio de 2012, passou a ter a seguinte redação: “Art. 5º - Fica o Poder Executivo autorizado a contribuir para a manutenção dos foros, grupos e iniciativas internacionais abaixo discriminados, nos montantes que venham a ser atribuídos ao Brasil nos orçamentos desses respectivos foros, grupos e iniciativas internacionais, nos limites dos recursos destinados, conforme o caso, ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, à Secretaria da Receita Federal do Brasil - RFB ou à Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, consoante a Lei Orçamentária Anual - LOA: (...); IV - Fórum Global sobre Transparência e Intercâmbio de Informações para Fins Tributários (Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes); V - Comitê de Assuntos Fiscais (Committee on Fiscal Affairs) da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE; VI - Fórum sobre Administração Tributária vinculado à OCDE (Forum on Tax Administration); VII - Grupo de Coordenação e Administração da Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Assuntos Tributários (Convention on Mutual Administrative Assistance in Tax Matters); VIII - Projeto sobre Erosão de Base de Cálculo e Deslocamento de Lucros - BEPS (Project on Base Erosion and Profit Shifting); e (...).”
5 “The main objectives of mandatory disclosure rules can be summarised as follows: (i) obtaining early information about tax avoidance schemes; (ii) identifying schemes, and the users and promoters of schemes; and (iii) acting as a deterrent to reduce the promotion and use of avoidance schemes. Whilst the available data on the effectiveness of mandatory disclosure regimes is not comprehensive, the available evidence, plus feedback from those with such regimes, suggests that most existing mandatory disclosure regimes are successful in terms of meeting these objectives.” OECD. Public Discussion Draft. BEPS Action 12: Mandatory Disclosure Rules. Paris: OECD Publishing, 2015, p. 13.
6 “Sanctions are applied where promoters or taxpayers fail to comply with their obligations under a mandatory disclosure regime. The usual sanction is the imposition of monetary penalties but the structure and amount of the penalty varies among countries depending on the type of taxpayer and the type of transaction. It is recommended that countries introduce financial penalties in order to enforce compliance with mandatory disclosure rules but countries are free to introduce penalty provisions (including non-monetary penalties) that are consistent with their general domestic law provisions.” Ibidem, p. 8.
7 “Disclosure obligation’s compatibility with the privilege against self-incrimination (…). In addition there should not be an issue with self-incrimination where a promoter is obliged to disclose instead of a taxpayer.” Ibidem, p. 67.
8 Veja-se: Lei americana Sarbanes-Oxley (23.01.02). OCDE - Compliance Risk Management: Managing and Improving Tax Compliance (2004); OCDE - Corporate Governance and Tax Risk Management, Paris, July 2009.
9 A propósito, veja-se: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e lei anticorrupção. SP: Saraiva, 2015, 238 p.;
por Heleno Taveira Torres é professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado
Fonte: Conjur
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