O ano de 2015 trouxe muitas novidades legislativas em matéria tributária. E, como é comum em tempos de crise, boa parte dessas medidas é circunstancial e serve apenas para aumentar a arrecadação do governo federal.
A Emenda Constitucional 87 é uma exceção. Promulgada em 16 de abril deste ano, essa EC veio solucionar um problema que há tempos ganhava forma e gravidade no sistema tributário nacional: precisávamos de novas regras para dividir o ICMS incidente sobre o comércio eletrônico.
A alteração uniformizou o tratamento conferido, em matéria de ICMS, às operações interestaduais. A redação original da Constituição (art. 155, § 2o, VI) disciplinava de forma diferente as vendas realizadas a destinatário situado em outro Estado, conforme se tratasse de contribuinte do imposto ou não. Aplicava-se alíquota interestadual, se contribuinte, e alíquota interna, se não contribuinte. Em termos práticos, isso significava que, nas vendas realizadas por meio de comércio eletrônico a consumidor final – portanto, não contribuinte (de direito) do imposto –, toda a arrecadação do ICMS ficava concentrada no Estado de origem, normalmente situado nas regiões Sul e Sudeste do país. Nada caberia ao Estado de destino, onde estava situado o comprador.
A sistemática, bem se sabe, foi estabelecida num tempo em que as circunstâncias técnicas não favoreciam grandes volumes de venda à distância a consumidor final e o vulto atual do comércio eletrônico não poderia sequer ser imaginado. O mundo mudou. O crescimento do comércio eletrônico trouxe repercussões importantes no quadro de partilha de receitas tributárias de ICMS e acabou concentrando arrecadação nos Estados de origem. Era preciso ajustar o sistema tributário brasileiro à nova realidade.
A EC 87 veio, então, modificar a cobrança do ICMS sobre operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado da Federação. A regra agora é uma só: aplica-se alíquota interestadual em tais operações, independentemente de o destinatário ser contribuinte ou não do imposto. Cabe ao Estado em que esteja situado o destinatário o valor correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual. Divide-se, dessa forma, o valor do ICMS entre os Estados de origem e os de destino.
O contexto de elaboração da emenda oferece um bom exemplo de diálogo institucional entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Como se sabe, antes da aprovação da EC 87, os Estados prejudicados pela sistemática anterior uniram-se no Protocolo ICMS 21/2011, a fim de estabelecer nova fórmula de partilha do ICMS que permitisse corrigir a concentração de arrecadação em favor dos Estados de origem.
O Protocolo permitia exigir em favor da unidade federada de destino da mercadoria parcela do ICMS devida na operação interestadual em que o consumidor final adquirisse mercadoria ou bem de forma não presencial por meio de internet, telemarketing ou showroom. Em suma, aplicava a tais operações, que tinham como destinatário consumidor não contribuinte, a mesma sistemática prevista para operações que tinham como destinatário contribuinte do imposto. A regra do Protocolo, portanto, contrariava claramente o texto constitucional (art. 155, § 2o, VI).
O STF reconheceu a inconstitucionalidade do Protocolo 21, em controle abstrato, no julgamento das ADIs 4628 e 4713, de relatoria do ministro Luiz Fux, e também em sede de repercussão geral, ao decidir o RE 680089, de relatoria do ministro Gilmar Mendes. Sem desconhecer a mudança de contexto econômico e social e a maneira como ela repercutiu na arrecadação dos Estados, o Tribunal afastou a tese de mutação constitucional e deixou claro que a modificação da sistemática de cobrança do ICMS, ainda que necessária, haveria de se fazer pelos caminhos formais de reforma constitucional. Ou seja, caberia ao Congresso Nacional fazê-la, emendando a Constituição.
A mesma linha de argumentação, aliás, foi acolhida por ocasião do referendo da medida cautelar da ADI 4705, de relatoria do ministro Joaquim Barbosa. Mesmo sopesadas as mudanças da realidade mercantil com o esvaziamento do poder de tributar da entidade de destino, não poderia o Protocolo se sobrepor à Constituição.
Nesse contexto, veio à tona a PEC 197/2012, apresentada um ano após o Protocolo 21, posteriormente convertido na EC 87, para pôr termo de vez à questão e, enfim, oferecer uma nova sistemática a ser observada, daqui para frente, em relação à cobrança do ICMS sobre comércio eletrônico.
Contudo, um problema na redação final aprovada traz dificuldades para a aplicação da emenda. Estão em contradição os arts. 2o e 3o. É que a disposição do art. 2o – que, aliás, não constava da redação original da PEC – estabeleceu período de transição, com duração de quatro anos, a começar de 2015, a fim de mitigar o impacto negativo no orçamento público dos Estados de origem, que deverão perder receitas com a alteração do texto constitucional.
Determinou-se, então, que, nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte, em 2015, os Estados de destino fariam jus a apenas 20% do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual. Esse percentual deveria ser gradualmente aumentado em 20% a cada ano até 2019. Ou seja, 20% para o Estado de destino e 80% para o de origem, em 2015; 40% para o Estado de destino e 60% para o de origem, em 2016; 60% para o de destino e 40% para o de origem, em 2017; 80% para o Estado de destino e 20% para o de origem, em 2018; até atingir o percentual de 100% em 2019.
No entanto, a cláusula de vigência da emenda prevista no art. 3o da EC 87 estabelece que a emenda produzirá efeitos somente no “ano subsequente” e “após noventa dias” a contar da data em que entrou em vigor (17.4.2015). Há aí evidente conflito entre o que dispõe o art. 2o e o 3o da EC 87. Enquanto o art. 2o prevê a aplicação da regra de transição já em 2015, o art. 3o posterga os efeitos da emenda para 2016.
A bem dizer, não parece que o defeito de redação tenha resultado de cochilo do legislador. Ao Congresso, com seus muitos olhos, assessores e consultores, dificilmente escaparia um erro tão evidente. É mais fácil crer que o conflito entre as duas disposições tenha ali ficado como estratégia dilatória – deixando a solução para outro momento e outras instâncias.
A questão está posta. Como aplicar a regra do art. 2o da EC 87? A qual percentual têm direito os Estados da origem e do destino no ano de 2016? Com certo esforço de interpretação, seria possível apontar, em tese, ao menos, quatro formas de interpretar a questão e solucionar o conflito.
A primeira é fazer prevalecer pura e simplesmente a regra do inciso I do art. 99 do ADCT, incluído pelo art. 2o, em prejuízo da anterioridade nonagesimal prevista no art. 3o. Tal interpretação viola claramente o teor do art. 3o, embora não chegue a ofender art. 150, III, b, da Constituição, já que a emenda não cria nem aumenta tributo. Apenas modifica a regra de distribuição da arrecadação.
A segunda é conjugar a disposição do art. 3o com a art. 2o, de modo a ler “2015” como o “ano seguinte ao da promulgação da emenda” e assim sucessivamente em relação aos demais anos ali previstos. Aliás, estivesse assim redigida a PEC, o problema hoje não existiria. A leitura prestigia o escopo de ambas as disposições – art. 2o e 3o – e preserva o intervalo de quatro anos do período de transição, mas contraria a literalidade do texto do art. 2o. Faz ver, e.g., “2016” onde consta “2015” e “2017” onde está escrito “2016” e assim sucessivamente até o último ano, que passaria a ser 2020, em vez de 2019.
A terceira é somar, em 2016, os percentuais desse ano (40%) e do anterior (20%), de sorte que, no primeiro (2016) e no segundo (2017) ano de aplicação da emenda, os Estados de destino fariam jus ao percentual de 60%, ficando o restante com os Estados de origem.
A quarta maneira de articular o problema é aplicar o art. 3o e simplesmente dar por prejudicada a previsão do novo art. 99, I, do ADCT, incluído pelo art. 2o da emenda. Assim, elimina-se um ano do período de transição, que passaria a ser de três anos apenas (20162019). Aplica-se a regra de transição a partir de 2016, partilhando se, nesse ano, a diferença de alíquota assim: “40% (quarenta por cento) para o Estado de destino e 60% (sessenta por cento) para o Estado de origem”, como consta do art. 99, II, do ADCT.
Ao que tudo indica, essa última é a interpretação que tende a prevalecer. O Estado de São Paulo, por exemplo, positivou expressamente essa regra na Lei Estadual n. 15.856, de 2 de julho de 2015. O art. 2o dessa lei determina que a transição se faça entre 2016 e 2019. No primeiro ano, o recolhimento do imposto deverá ser realizado pelo contribuinte remetente ou prestador localizado em outra unidade da Federação na proporção de 40% do valor correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual. E assim sucessivamente, aumentando-se 20% a cada ano, até que se atinja o total de 100% em 2019.
Mais do que simples exercício de interpretação, as diversas soluções aventadas apontam consequências diferentes para a arrecadação dos Estados afetados. Tornar sem efeito a regra do art. 99, I, do ADCT, por exemplo, significa suprimir um ano no prazo de transição previsto na emenda, o que tende a favorecer os Estados de destino e prejudicar os de origem. Parece ser essa, entretanto, a melhor resposta, diante do defeito de redação positivado com a EC 87.
por Celso de Barros Correia Neto é doutor em Direito pela USP, assessor de Ministro do STF e professor da graduação e do Mestrado da Universidade Católica de Brasília e do Instituto Brasiliense de Direito Público.
Jean Paolo Simei e Silva é doutorando em Direito Tributário pela PUC/SP, professor de pósgraduação em direito tributário do IBET, sócio do Simei Favacho Advogados.
Fonte: Jota
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