O governo federal do Brasil vem procurando um meio tributário de aumentar as suas receitas. Segundo a imprensa, algumas propostas têm sido avaliadas pelo Ministério da Fazenda, a exemplo da instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, da tributação dos dividendos e da instituição de um imposto sobre a herança pela União. Todas elas nos parecem ser perigosas no presente momento, umas mais do que outras.
Sobre o IGF, em texto anterior publicado aqui na revista Consultor Jurídico, sustentamos que pode vir a ser uma tentativa boa, mas apenas se bem estruturada e associada a outras medidas tributárias.
Sobre os dividendos, trataremos brevemente em outro texto, mas nos parece que a tributação das pessoas jurídicas em 34% (IRPJ + CSLL) já é alta demais para ser cumulada com uma tributação dos dividendos. O que acontece em muitos países, e nos parece razoável, é a tributação dos dividendos recebidos pela pessoa física com uma alíquota que representa a diferença entre a alíquota do IRPF e a alíquota do IRPJ, evitando que os sócios de empresas sejam tributados de forma favorecida em relação aos demais indivíduos. Como, diferentemente dos países desenvolvidos, o Brasil tributa mais a pessoa jurídica do que a física, não faz sentido essa tributação dos dividendos.
A respeito da instituição de um imposto sobre a herança pela União, também já tratamos em outro texto publicado aqui no Conjur. Seria necessária uma reforma constitucional para tanto, pois o ITCMD, tributo estadual, já incide sobre as heranças, de modo que não nos parece ser uma boa opção, pois o objetivo do governo federal é gerar caixa em curto prazo. Se o objetivo for criar um tributo com base de cálculo semelhante, a exemplo de uma contribuição sobre legados, ou algo parecido, como foi feito no caso da CSLL no passado, isso geraria alguns novos milhares de processos administrativos e judiciais, mantendo a linha subdesenvolvida que caracteriza o sistema tributário brasileiro.
Como defendemos em outros textos, é muito difícil de crer que o país crescerá economicamente, com uma grande redistribuição e de forma sustentável por um longo período, sem a realização de uma reforma tributária estrutural. Criar novos tributos, num momento em que a carga tributária gira em torno de 40% e em que a população ainda recebe em troca serviços públicos de baixa qualidade, é temeroso, sobretudo com a instabilidade político-econômica vivida no país atualmente.
De qualquer forma, caso o governo federal esteja completamente decidido a seguir o caminho de aumentar ainda mais o sistema, tornando-o mais complexo, e elevar ainda mais a carga tributária que atravanca a economia do país, temos uma proposta que nos parece um pouco menos ruim do que aquelas acima. Trata-se da instituição, dentro da competência residual da União, de um imposto sobre as locações de bens móveis e cessões de direitos.
As locações de bens imóveis não estão dentro dessa proposta, pois, primeiro, nos parece arriscado tornar a moradia mais cara, o que atingiria indivíduos de todas as classes sociais. O custo de vida no Brasil já é muito caro em decorrência da tributação indireta, não sendo interessante onerar a moradia por esse tipo de tributação.
Ainda, os locadores de bens imóveis são, muitas vezes, pessoas físicas, que já veem ser tributada a renda decorrente dessas operações. A tributação indireta iria, como dito, prejudicar o consumidor de todas as classes, de modo que uma medida mais interessante seria aumentar a tributação progressiva da renda da pessoa física, onerando os mais ricos, classe na qual estão incluído aqueles que são proprietários de vários imóveis e vivem da renda decorrente das locações.
Além das razões acima, não há discussão sobre a tributação da locação de imóveis pelos impostos que recaem sobre o consumo. As locações de bens móveis e as cessões de direito, por outro lado, são objeto de milhares de processos administrativos e judiciais espalhados pelo país.
Segundo a Súmula Vinculante 31 do STF, as locações de bens móveis não estão sujeitas à incidência do ISS. Também não incidem IPI e ICMS sobre elas. Deste modo, aqueles que praticam a atividade de locação têm um benefício e tanto em relação aos contribuintes que realizam outras atividades econômicas e pagam IPI e/ou ICMS ou ISS. No entanto, beneficiar tributariamente as locações e atividades afins não parece ter sido intencional, decorrendo, em verdade, da clássica tradição brasileira de interpretar o direito tributário com um foco excessivo no conteúdo semântico isolado dos termos da legislação e sem recorrer a visões mais finalísticas, as quais devem se embasar em considerações econômicas, contábeis, financeiras e outras[1].
Ao analisar a incidência do ISS sobre a locação de bens móveis, o STF entendeu que esse imposto incidiria apenas sobre obrigações de fazer, e não sobre obrigações de dar, pois prestar serviço é fazer algo para alguém, gerando um resultado decorrente desse fazer, e não simplesmente alugar, ceder. Com base nessa premissa, muitos precedentes judiciais vêm entendendo, também, pela não tributação das cessões de direitos (sobre marcas, softwares etc.).
Essa situação causa distorções econômicas, pois torna desinteressante a compra e venda de determinados bens, quando se pode alugar ou ceder o direito de uso sobre eles por períodos longos sem pagamento de tributo indireto, incidindo apenas o PIS/COFINS sobre a receita e o IRPJ sobre a renda. Do mesmo modo, em muitas atividades, é interessante tentar travesti-la de locação, evitando-se a tributação, ou seja, a não tributação da locação e atividades afins gera planejamentos tributários legais e ilegais, ambos desinteressantes para o fisco brasileiro.
Esses temas têm provocado um contencioso gigantesco e, consequentemente, altas despesas, além de gasto de tempo, para fisco, contribuintes e Poder Judiciário. Apesar da jurisprudência do STF, muitos municípios ainda cobram o ISS sobre as locações, pois entendem que a situação se modificou após a Lei Complementar 116/2003, que traz prevista expressamente no item 3 da sua lista de serviços a locação, a cessão de direitos de uso e congêneres. Esses municípios, geralmente, também incluíram essas atividades em suas listas de serviços, buscando reforçar a sua tese.
Um imposto federal incidente sobre a atividade empresarial de locação de bens móveis ou de cessão de direitos seria instituído dentro da competência residual da União Federal prevista no artigo 154, inciso I, da Constituição[2]. Deste modo, seria preciso que o veículo fosse uma lei complementar. Essa nova lei deveria alterar a Lei Complementar 116/2003 e tomar os devidos cuidados para deixar claro, de uma vez por todas, que não incide ISS sobre essas operações, mas apenas o novo tributo federal.
O imposto sobre locações de bens móveis e cessões de direito cumprira todos os critérios da Constituição para exercício da competência residual da União. Ele seria não-cumulativo, não teria fato gerador ou base de cálculo de outro imposto, ao contrário do cogitado imposto federal sobre a herança, e seria, como visto, instituído por lei complementar.
A instituição desse imposto, além de ter potencial para gerar um caixa bem relevante à União, iria corrigir as distorções econômicas mencionadas e eliminar o contencioso envolvendo o ISS, ao menos para fatos geradores acontecidos após a lei. Esse contencioso é muito amplo, pois não apenas envolve a locação de automóveis, equipamentos de construção etc., como também cessões de direito de uso de softwares e marcas, estrangeiras e nacionais.
No final de 2014, por exemplo, o STF decidiu pela não-incidência do ICMS na importação por leasing sem compra, que é outro tema relacionado às locações. Já deveria estar claro no país, há muito tempo, qual tributo incide em qualquer caso de obrigação de ceder (dar) temporariamente bens materiais ou direitos sobre bens imateriais.
Essa ideia do imposto federal sobre as locações de bens móveis e as cessões de direitos pode parecer atraente, contudo é preciso pensar ainda na parte mais difícil: qual deveria ser exatamente o fato gerador, a base de cálculo e a alíquota desse imposto, para que não acabasse gerando mais efeitos negativos do que positivos?
Em verdade, se pensarmos que, nos países mais desenvolvidos, a tributação total sobre a atividade econômica das empresas, sem contar a tributação da renda, gira, em média, entre 7% e 20%[3], não faria sentido criar mais um tributo incidente na locação, pois sobre a sua receita já recaem PIS/COFINS em 9,25% (regime não-cumulativo), mais as contribuições do sistema “S” e, por fim, a nova tributação sobre a receita substitutiva daquela sobre a folha de pagamento.
A tributação pesada sobre o chamado “consumo”, ou seja, sobre a atividade econômica das empresas, que, basicamente, circulam bens (ou direitos sobre eles) ou serviços, não deve ser alta sob pena de desencorajar o empreendedorismo e, portanto, os investimentos, assim como de encarecer demais os produtos, desencorajando a demanda. Esse é um dos principais motivos pelos quais a economia brasileira encontra-se “travada”.
Deste modo, para que as locações de bens móveis e as cessões de direito não fossem oneradas excessivamente, novos tributos nem deveriam ser cogitados. Se o governo federal decidir mesmo por esse caminho, entretanto, a alíquota do imposto federal aqui analisado deveria ter o mesmo percentual da alíquota máxima do ISS: 5%, sendo possível a fixação de alíquotas menores para atividades com maior relevância estratégica, a exemplo, talvez, das cessões de direitos sobre softwares, às vezes associados à educação e ao desenvolvimento de atividades econômicas importantes.
Enfim, a criação desse tributo, como de qualquer outro, precisaria analisar quais tipos de atividades e produtos poderiam ser afetadas por ele de modo a gerar algum efeito negativo mais preocupante, devendo ser tomadas as devidas cautelas legais, como não tributação ou tributação minorada, apesar de que a neutralidade deve ser um princípio relevante no desenho de sistemas tributários, e sobretudo dos tributos indiretos[4], ou seja, deve-se buscar, o máximo possível, a linearidade, o tratamento igual de situações similares.
Não cansamos de repisar, enfim, que o caminho mais adequado para o Brasil crescer é se alinhar aos países mais desenvolvidos, reformando estruturalmente o sistema tributário para extinguir o PIS, a COFINS e o IPI, recuperando essa tributação por meio do aumento do IRPF e da sua progressividade, assim como, e especialmente, por meio do corte de gastos.
Não adianta sair criando novos tributos, quando o país não está se desenvolvendo por grande culpa dos próprios tributos que já existem. É preciso simplificar o sistema bastante e torná-lo progressivo, pois os tributos progressivos de hoje ainda não são capazes de vencer a pesada tributação regressiva, que precisa ser muito diminuída. Nenhum fato gerador, salvo casos excepcionalíssimos em que o objetivo é extrafiscal, deveria ser tributado indiretamente com peso maior do que 20% (1/5), percentual já considerado alto. Nos Estado Unidos, a média da tributação total sobre o consumo gira em torno de 7% a 10%.
Para que não seja necessário criar novos tributos e prejudicar ainda mais a economia, dever-se-ia reduzir as extravagancias do Estado e dos políticos, também em um alinhamento com os países desenvolvidos. Não há porque cada ministro do STF, cada senador e cada deputado ter tantos assessores e tantas verbas, como também não há porque existir o caríssimo fundo partidário, que obriga a sociedade a financiá-los, mesmo apesar de os indivíduos, às vezes, não comungarem com a maioria, ou até mesmo com nenhum desses partidos.
Se vem sendo possível desenvolver, em vários outros países do mundo, um sistema tributário bastante progressivo, simplificado ao máximo e com a maior neutralidade dentro do viável, por que não seria possível fazer isso no Brasil? Falta apenas vontade e bom senso!
[1] “Quando o Supremo olha e fala assim, a discussão do ‘corpus mechanicum’ desaparece, e a discussão vai muito mais simples a dizer, ‘Olha, é inaceitável que o mesmo ‘software’, se eu compro na prateleira, eu pago ICMS; se eu faço download do mesmo ‘software’, eu pago outro imposto’. É claro que as operações são as mesmas e têm que ter o mesmo tributo. Essa visão abandona a pergunta: o que é operação relativa à circulação e mercadoria? Não pergunta sequer isso, ele pergunta: o que é o ICMS? Ele fala se o ICMS incide sobre um e incide sobre o outro, que a operação é um fato novo, fato econômico novo que eu tenho que compreender diante da descrição de competências” (SCHOUERI, Luís Eduardo et ali. Mesa de Debates do IBDT de 19/02/2015. Disponível em: <http://www.ibdt.com.br/material/arquivos/Atas/Integra_19022015.pdf> . Acesso em: 12. mar. 2015, p. 9-10)
[2] “Art. 154. A União poderá instituir:
I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;”.
[3] Apesar de essa ser a linha dos países desenvolvidos, a tributação indireta brasileira gira em torno de 16,25% para os serviços e chega a 40% para os bens industrializados.
[4] “The main conclusion from the analysis in this chapter is that there is a strong case for a move to a broader-based and more uniform system of indirect taxation. There are a few clear-cut situations where there should be deviations from uniformity—taxes on environmental harms, and taxes on goods such as alcohol and tobacco that can have damaging effects on the consumer and on other people, are the obvious examples. But the case for the widespread differentiation in indirect tax rates that we see in the UK at present is not strong. In particular, if we are concerned about equity, then it is much better to use the direct tax and benefit system to achieve the distributional outcomes that we favour than it is to use differential indirect tax rates. We will look in detail at how this might be done in Chapter 9. There are reasons other than equity for favouring differential tax rates, including a desire to tax more lightly the consumption of those goods associated with work. This is likely to provide a strong case for a low (perhaps zero) VAT rate on childcare. One could make a case for some other goods and services in this category, but, in the absence of strong evidence to the contrary, our view is that the advantages in terms of simplicity of a single rate are likely to outweigh any possible advantage from differentiating tax rates for this or other reasons of efficiency” (MIRRLEES, James et alli. Tax by design. Disponível em: <http://www.ifs.org.uk/docs/taxbydesign.pdf>. Acesso em: 13. fev. 2015, p. 165-166).
por Marcos de Aguiar Villas-Bôas é doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito pela UFBA, Advogado, atualmente faz pesquisas independentes na Harvard University e no MIT - Massachusetts Institute of Technology.
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