O caso Petrobras levantou, entre os especialistas e não especialistas, a questão de como tratar ativos que contêm desembolsos adicionais devido a pagamentos indevidos, inclusive por corrupção. Primeiramente, quando uma empresa adquire um ativo ou o constrói, soma todos os gastos necessários a colocá-lo em condições de venda ou de uso, conforme sua destinação. Se a empresa paga mais ou menos porque negociou melhor ou pior, foi mais eficiente na construção ou não, isso não interfere na regra: os gastos são “capitalizados”, ou seja, adicionados ao ativo como seu custo de obtenção. Se o fornecedor ganhou pouco, nada ou muito dinheiro com a entrega do bem, se usou o lucro para expandir sua empresa, distribuir aos sócios ou pagar dívida, nada disso interessa. Nada interessa para a adquirente se parte desse lucro tiver sido utilizado pelo fornecedor para entrega a um partido político. Agora, se o fornecedor utiliza parte do dinheiro para pagar propina ao comprador da empresa adquirente do bem ou serviço, esta, ao saber do ocorrido, irá tomar suas providências, espera-se, contra o recebedor da propina. Mas deverá isso mudar o valor contábil do bem ou serviço recebido? Deverá a empresa dar baixa do ativo e reconhecer uma perda porque pagou a mais do que deveria ou poderia ter pago?
Sabidamente, nenhum ativo pode ficar registrado no balanço por valor superior ao que ele “vale”. Há regras contábeis para definir quanto um ativo “vale”. Os ativos destinados a serem recebidos em dinheiro ou vendidos não podem ser registrados por valor superior ao dinheiro líquido a ser recebido (a provisão para créditos de liquidação duvidosa nas contas a receber e a regra de custo ou mercado, dos dois o menor, para estoques, são exemplos tradicionalíssimos da aplicação da regra). Já os ativos destinados ao uso pela entidade, se não passarem pelo teste do valor líquido de venda, têm outra oportunidade: são submetidos ao teste do valor em uso, representado pelo valor presente de fluxos de caixa futuros esperados. Por exemplo, um caminhão numa transportadora pode estar contabilizado no ativo da empresa por valor superior ao líquido de venda caso tenha a capacidade de, no futuro, produzir caixa líquido, descontado a valor presente, suficiente para recuperar esse valor contábil. Somente se não passar por pelo menos um dos dois testes é que se contabiliza a perda por irrecuperabilidade (impairment).
Mas e se o ativo com custo adicional devido à propina ou outra destinação indevida passar por esses testes? E se, mesmo com custo com sobrepreço, for capaz de produzir caixa no futuro que irá cobrir esse sobrepreço? Não há regra expressa para essas situações. A não ser a interpretação de que terá havido, sim, um erro, no caso de conluio com alguém de dentro da empresa, já que a atitude desse alguém terá levado a companhia a desembolsar mais do que o necessário. Resta-nos, portanto, o uso desse julgamento e reconhecer que o esquema levou a empresa a erro de avaliação e de desembolso. E erro exige retificação. E a retificação, nesse caso, é a baixa do sobrepreço contido no ativo e o reconhecimento imediato dessa perda que, caso contrário, seria diluída ao longo do tempo, quando das baixas desse ativo por depreciação ou outro fator. Aliás, esse sobrepreço em todos os casos afetará o lucro da empresa que o pagou, quer sendo imediatamente considerado como despesa, quer como valor a ser registrado como despesa futuramente quando do uso desse ativo (via depreciação, normalmente) e baixa final. A discussão é temporal: quando reconhecer isso. Agora ou no futuro.
É interessante também ressaltar que na teoria contábil sempre esteve presente o binômio stewardship/accountability. Stewardship é dado pela situação em que alguém incumbe outro alguém de uma missão, entregando-lhe ou não bens para que essa missão seja cumprida (aplicou-se essa figura originalmente à pessoa do mordomo de uma mansão; depois, ela passou a ser usada, generalizadamente, em outros casos, como o do prefeito que recebe incumbências e patrimônio para gerir; do gestor de uma sociedade limitada contratado pela família; dos administradores de uma companhia aberta etc.). E quem recebe a missão precisa depois mostrar o que conseguiu: as metas atingidas, a aplicação dos recursos (não só financeiros) recebidos originalmente e os obtidos posteriormente etc., dando assim lugar à figura do accountability, da prestação de contas.
E, dentro do processo do accountability, a contabilidade e suas demonstrações têm papel relevantíssimo, surgindo como um dos instrumentos mais utilizados para esse fim de prestação de contas. Assim, tem-se mais um forte argumento a favor do registro imediato da perda por causa do sobrepreço acarretado por esquema fraudador: ele atende de forma clara, tempestiva e transparente à figura da prestação de contas por parte da empresa que o pagou.
E depois acham alguns que a contabilidade é uma ciência exata….
por Eliseu Martins - Professor Emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP - Bacharel, Doutor e Livre-Docente pela FEA -USP. É consultor, palestrante e parecerista da área contábil; Membro de Conselhos de Administração, Consultivo e Fiscal de empresas privadas e estatais e de entidades sem fins lucrativos. Ex-Diretor da FEA-USP; Ex-Diretor Pró-Tempore da FEARP; Foi Coordenador do Pós-Graduação e Chefe do Departamento de Contabilidade e Atuária da FEA-USP; Ex-Diretor da CVM (período de out/2008 a dez/2009 e de 1985 a 1988); Ex-Diretor de Fiscalização do Banco Central do Brasil; Foi representante do Brasil junto a ONU para assuntos de Contabilidade e Divulgação de Informações; Ex-Diretor do IBRACON - SP; Ex-Diretor da ANEFAC, entre outras funções já realizadas.
Fonte: Capital Aberto
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