terça-feira, 7 de março de 2017

Transação e preço de transferência

Entre um ambiente com regras tributárias justas ou certas, investidores internacionais não hesitam em preferir a segunda opção. Afinal, se a tributação for alta, poderão ajustar seus negócios; já a incerteza leva a distorções concorrenciais, pois cada um recolhe seus tributos da forma como bem entende, com desajustes nos preços relativos, incrementando o risco de autuações.

Acertou, pois, o legislador brasileiro quando, ao tratar da matéria dos preços de transferência (i.e., controle dos preços praticados entre empresas de um grupo multinacional, visando a impedir a transferência de lucros por meio de preços distorcidos), fugiu dos padrões da OCDE (regras complicadíssimas, cuja implementação exige sofisticado aparato tributário e não foge de critérios subjetivos) e optou por margens de lucro predeterminadas.

O acerto do legislador, entretanto, nem sempre foi acompanhado pela Receita Federal (RFB). Em 2000, a Lei nº 9.959 introduziu sistemática baseada no preço de revenda diminuído de margem que, iniciando em 60%, cairia conforme se agregasse valor no país. Assim, quanto maior o índice de nacionalização do produto, tanto menor a margem de lucro exigida (e tributada). A RFB, de início, confirmou esse entendimento, pela IN 32/2001. Surpreendentemente, entretanto, mudou de ideia e na IN 243/2002, criando uma técnica de proporcionalização (não prevista em lei), passou a exigir que as multinacionais tivessem margem de 60%, não só sobre os bens importados, mas também sobre o que agregassem no país.

Uma transação poderia ser um modo de ingresso de recursos novos no erário, sem aumento dos tributos em vigor

Diante da discrepância entre a lei e a IN 243/2002, grandes contribuintes recusaram-se a seguir o entendimento da RFB. Este é um dos mais relevantes casos no Carf o qual, recentemente, decidiu, por voto de qualidade (i.e.: após o empate entre os julgadores) por manter o entendimento do Fisco. Os contribuintes não se conformarão e levarão o tema a juízo, com boas perspectivas de êxito.

Temos, pois, os maiores investidores no país provisionando reservas por conta da exigência da margem de 60%. Posto discutível sua legalidade, auditorias internacionais dificilmente abrem mão da provisão.

Esse contencioso tem um período certo: começou em 2002 e encerrou-se em 2012, com a edição da Lei nº 12.715. Esta introduziu a citada proporcionalização, mas ao mesmo tempo, previu margens bem mais razoáveis, variando conforme o setor. Em regra, as margens exigidas chegam a 20%. Essas margens foram bem aceitas pelo setor privado e não há notícias de grandes discussões a partir de então.

Embora não me restem dúvidas quanto à ilegalidade da IN 243/2002, penso não ser positivo, para o país, que esse contencioso, que já tem mais de 10 anos, seja arrastado para o Judiciário. Enquanto perdurar, os contribuintes sofrerão o ônus do contingenciamento e o Fisco ficará sem qualquer arrecadação.

O Código Tributário Nacional (CTN) contempla, em seu artigo 171, o instituto da transação. Permite-se que, por lei, Fisco e contribuinte abram mão de suas posições, chegando a um consenso. Extingue-se o litígio.

Dada a notória necessidade de arrecadação, da parte do governo federal, uma transação poderia ser um modo de promover o ingresso de recursos novos no erário, sem aumento dos tributos em vigor. De quebra, afastar-se-ia discussão custosa e se reafirmaria a segurança jurídica no país.

A ideia é simples: se em 2012, se entendeu que 20% seria um lucro razoável, por que exigir margem de 60% para períodos anteriores? Não houve mudança na conjuntura econômica para tal disparate. Daí a sugestão de edição de lei que permita a contribuintes abrirem mão da discussão e aplicar, para o período de 2002 a 2012, os critérios que passaram a valer a partir da Lei 12.715. Ou seja: esta lei teria uma aplicação retroativa para os contribuintes que optassem pela transação.

O resultado previsível é uma adesão enorme ao programa. Não se trata de anistia. Nada parecido com Refis. Afinal, estamos diante de um crédito tributário duvidoso, sendo bastante possível que o Fisco nada receba. A transação assegura ao Fisco uma arrecadação certa. Os contribuintes também veem afastado seu risco, permitindo a baixa das provisões. Prevalece, enfim, a segurança jurídica, espelhada na coerência de se imporem os mesmos critérios para períodos pré e pós 2102.

Luís Eduardo Schoueri é advogado, professor titular de direito tributário da Faculdade de Direito da USP, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário e da Associação Comercial de São Paulo

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Por Luís Eduardo Schoueri

Fonte : Valor

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