É sempre importante ressaltar a estreita vinculação entre contabilidade e tributação. Há, porém, relevantes divergências entre as ciências aludidas, o que gera importantes questões práticas.
Uma dessas questões ocorreu no acórdão Carf 2202-003.018 (com voto vencido e recurso pendente em Câmara Superior de Recursos Fiscais). Decidiu-se que empresa tributada por lucro presumido, optante por regime de caixa, poderia distribuir lucro isento apenas até o montante que não superasse o valor correspondente ao percentual de lucro presumido, excluído dos tributos pagos no período.
Duas questões devem ser aqui discutidas: (1) a distinção entre os conceitos de lucro na contabilidade e no direito tributário; e (2) as repercussões dos regimes de caixa e competência no reconhecimento de receitas e apuração de lucros.
Quanto ao primeiro tópico, é importante esclarecer que o lucro contábil, além de servir para analistas, credores e administradores acompanharem a evolução de determinada empresa, é também utilizado para que se realize a distribuição de lucros aos sócios ou acionistas.
Não há dúvidas de que o lucro contábil e o lucro base de cálculo de Imposto de Renda representam conceitos diversos
O lucro base de cálculo do Imposto de Renda, a seu turno, é conceito essencialmente distinto. Representa, v.g., em relação ao lucro real, o lucro contábil do período, ajustado pelas adições e exclusões da legislação tributária. Assim, por definição, não poderia ser igual ao lucro contábil, a menos que se estivesse diante de situações excepcionais, nas quais inexistem, na prática, quaisquer ajustes de natureza fiscal.
Não há dúvidas, portanto, de que o lucro contábil e o lucro base de cálculo de Imposto de Renda representam conceitos diversos. O único lucro efetivamente vinculado à distribuição aos sócios ou acionistas, nos termos da legislação societária, é o lucro contábil.
Nesse contexto, a nosso ver, é natural concluir que a isenção da distribuição de lucros tem por objeto, exclusivamente, a distribuição de lucros contábeis, haja vista que o lucro real, presumido ou arbitrado não é objeto de distribuição, por se referir exclusivamente à base de cálculo do Imposto de Renda, ou mesmo a uma etapa da apuração dessa base.
Sob a segunda ótica, referente à diferença de regimes contábeis, é importante traçar distinção entre os regimes de competência (accrual accounting) e caixa (cash accounting). Neste, reconhecem-se receitas e despesas conforme a entrada ou saída de numerário; naquele, receitas e despesas são reconhecidas de acordo com o fato gerador, não coincidente com alterações de caixa.
Embora a distinção primordial entre ambos seja, muitas vezes, apenas temporal, adota-se como regra para a contabilidade comercial o regime de competência nas normas nacionais (CFC) e internacionais (IFRS), dada a qualidade de informação que esse sistema propicia.
No entanto, tratando-se de pequenas ou médias empresas (usualmente submetidas ao sistema de lucro presumido), lida-se ainda com outras prioridades, como a conservação de capital de giro. Para isso, a opção fiscal pelo regime de caixa, possibilitando ao contribuinte pagar seus tributos somente quando do ingresso de numerário oriundo de suas receitas, torna-se muitas vezes um imperativo à manutenção do negócio.
Contudo, a vingar o entendimento do Carf, além de preponderar uma interpretação não fundada na estrita legalidade tributária, haveria um impasse ao optante do regime de caixa: possuindo contabilidade comercial por competência, nos termos das normas contábeis, teria cerceada sua distribuição de lucros. Paralelamente, não teria como adotar regime de caixa em sua contabilidade comercial, buscando harmonizar os regimes de apuração contábil e fiscal, diante da normatização aludida.
Uma solução ao impasse, conquanto custosa e imperfeita, seria facultar ao contribuinte, em contabilidade societária segregada ou por ajustes na escrita fiscal, apurar lucro pelos dois regimes: competência, atendendo às normas contábeis, e caixa, para garantir-lhe distribuição isenta de lucros até o limite apurado neste último regime, mesmo que superior ao percentual de lucro presumido. Assim, não se poderia alegar que houvesse aproveitamento de características mais vantajosas de regimes diversos, aproveitamento este que, ressalte-se, não apresenta qualquer vedação legal.
Na falta de norma a respeito, entendemos caber ao Poder Judiciário a garantia dessa prerrogativa, assegurando a efetividade do direito de opção do contribuinte de boa-fé, de modo a garantir a distribuição de lucros isenta, compatível com sua opção pelo regime de caixa, sob pena de seu esvaziamento prático.
Em conclusão, teríamos as seguintes alternativas sequenciais para a resolução da questão posta: (1) a consideração apenas do conceito do lucro contábil, apurado por competência na contabilidade societária, para efeito de distribuição isenta, contrariamente ao decidido no acórdão estudado; (2) subsidiariamente, em prevalecendo o teor da decisão em comento, caberia ao contribuinte de boa-fé recorrer ao Poder Judiciário, com o fim de ter assegurada, ao menos, a distribuição isenta do lucro apurado nos termos do regime contábil de caixa, cuja opção legalmente escolheu para a tributação.
Alexandre Demetrius Pereira e Ricardo Hiroshi Akamine são professores do Insper, onde lecionam no LL.M em Direito Tributário.
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Por Alexandre D.Pereira e Ricardo H. Akamine
Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br/
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