quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Pontos polêmicos da Lei de Repatriação devem levar contribuintes à Justiça

Dia 31 de outubro pode ter sido a data final para adesão ao programa de repatriação do governo federal, mas certamente não foi a última vez que o tema foi alvo de discussões na comunidade jurídica. Advogados apontam que o assunto pode desaguar no Judiciário, puxado por contribuintes que, apesar de terem pago o  Imposto de Renda e a multa, não concordaram com os termos do programa.

A possibilidade de judicializar a questão divide tributaristas. Parte dos especialistas ouvidos pelo JOTA afirmaram que orientaram seus clientes a apenas pagarem o imposto e multa pelos valores deixados fora do país, porém outros orientaram as pessoas físicas ou jurídicas a questionarem judicialmente, por exemplo, o tributo pago sobre parcelas isentas no Brasil ou relativos ao montante “consumido” antes de dezembro de 2014.

O programa de repatriação também teve como “efeito colateral” a tributação de valores mantidos no exterior após dezembro de 2014. Segundo advogados, muitos contribuintes se preocuparam em regularizar sua situação também pelo período não abrangido pelo programa.

Histórico

O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) foi criado pela pela Lei 13.254/2015. A norma possibilitou que pessoas físicas ou jurídicas que possuíssem recursos ou bens não declarados no exterior regularizassem suas situações mediante o pagamento de 15% de Imposto de Renda e 15% de multa. Os percentuais deveriam ser calculados sobre o montante mantido em outros países em 31 de dezembro de 2014.

Poderiam ser incluídos no programa apenas valores de origem lícita. Os contribuintes que optassem pelo regime ficariam livres de responder por crimes como sonegação fiscal e evasão de divisas ou de serem autuados pela Receita Federal.

A arrecadação com o Imposto de Renda e multas sobre os recursos repatriados totalizou R$ 50,9 bilhões, de acordo com a Receita Federal. Cerca de 44% dos contribuintes adeririam ao programa apenas na última semana. Foram R$ 169,9 bilhões em recursos regularizados de 25.114 pessoas físicas e 103 empresas.

Até outubro havia ainda a expectativa de alterações na Lei 13.254. Após a saída da presidente Dilma Rousseff, líderes do governo e do Ministério da Fazenda afirmaram que o programa poderia passar por mudanças, mas elas nunca saíram do papel.

A proposta de alteração da norma tramitou na Câmara dos Deputados, mas não houve acordo para que o texto fosse votado. O projeto alteraria pontos que ainda geravam dúvidas nos contribuintes, como a data de referência para a tributação, e até mesmo o prazo para entrega das declarações.

“Quando o prazo efetivamente não foi alterado teve muita correria de gente que não tinha se preparado”, afirma Daniel Bettega, diretor da empresa de consultoria tributária Andersen Tax Brasil.

Repatriados 

Segundo profissionais consultados pelo JOTA, empresários que receberam ou remeteram recursos ao exterior formam a maioria dos contribuintes que aderiram ao programa de repatriação. Segundo advogados, eram valores que estavam há anos fora do Brasil como um reflexo da instabilidade econômica de períodos passados.

“Era uma fuga à insegurança jurídica e econômica dos anos 80 e 90”, diz o advogado Fernando Facury Scaff, do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

O advogado Breno Vasconcelos, do Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados, diz que também atendeu casos de filhos ou netos de imigrantes – como o de um neto de um ex-prisioneiro de Auschwitz, que mesmo morando no Brasil optou por manter valores no exterior.

O ex-prisioneiro de guerra tinha a convicção de que alguma situação o poderia forçar a sair do país. “Se um dia ele tivesse que fugir do Brasil, ele poderia resgatar [o dinheiro] fora do país”, afirmou Vasconcelos.

Dispensados

A advogada Ana Cláudia Utumi, do TozziniFreire Advogados, narra que não aceitou clientes interessados em repatriar recursos. Ela diz que o escritório foi procurado por um gerente geral de uma empresa que mantinha no exterior valores recebidos, segundo ele, como comissões de fornecedores.

Ana Cláudia afirma que desconfiou se tratar de um caso de corrupção corporativa. “Dissemos a ele que se ele trouxesse uma carta dos sócios da empresa dizendo que concordavam e conheciam a remuneração, nós aceitaríamos”, diz. O documento nunca foi entregue.

Outra negativa, de acordo com ela, foi feita a um empresário cujo irmão, que é filósofo, exerce o cargo de professor catedrático em uma universidade pública. Para Ana Cláudia, o empresário estaria impedido de entrar no programa de repatriação por conta da proibição contida no artigo 11 da Lei 13.254.

O dispositivo define que o regime não pode ser aproveitado por pessoas que exercem cargos públicos. A proibição atinge parentes de até segundo grau dos ocupantes de funções públicas.

O mesmo artigo foi utilizado pela Justiça para proibir, em 28 de outubro, a entrada da esposa do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, no programa de repatriação.

Foto x Filme

Um dos assuntos sobre o qual advogados têm indicado a judicialização é o polêmico “foto ou filme”. O debate diz respeito ao período que deve ser incluído no programa de repatriação para evitar futuras autuações.

Isso porque, apesar de a Lei 13.254 prever que o regime garante a regularização de ativos, bens ou direitos que estivessem fora do país em 31 de dezembro de 2014, existem evidências de que a Receita Federal é favorável ao recolhimento de Imposto de Renda e multa sobre valores “consumidos” antes da data.

Vasconcelos cita como exemplo o caso de dois irmãos que receberam heranças de igual valor no exterior, sendo que um deles guardou o dinheiro e o outro gastou parte do montante antes de 31 de dezembro de 2014. De acordo com a interpretação da Receita Federal, ambos teriam que tributar o valor herdado.

“Seria a regularização do saldo não mais existente”, diz a advogada Thais Romero Veiga, também do Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados.

Por considerarem que a regra vai além do que a lei institui, Vasconcelos e Thais dizem que alguns de seus clientes devem ir ao Judiciário. São casos de pessoas físicas que pagaram, mas tentarão receber de volta o imposto e multa incidentes sobre o montante “consumido” antes de 31 de dezembro de 2014.

Ana Cláudia, porém, discorda que a ida ao Judiciário é uma possibilidade. Para ela, o ajuizamento de ações nesse sentido pode inclusive ser considerado litigância de má-fé. “A adesão [ao programa de repatriação] é uma confissão de dívida irrevogável e irretratável”, diz, complementando que “por mais que saia mais caro e seja injusto, é o preço de dormir tranquilo”.

A interpretação sobre “foto ou filme” ainda gerou dúvidas sobre qual período anterior a 31 de dezembro de 2014 deve ser incluído no programa. Segundo advogados, apesar de as dívidas tributárias prescreverem em cinco anos, a prescrição do ponto de vista penal pode abarcar até 12 anos.

Segundo Bettega, em alguns casos, foi preciso buscar informações de movimentações ocorridas há mais de uma década. “Tive clientes que voltaram 10 ou 12 anos para recuperarem o consumo que tiveram”, diz.

Os períodos tributados foram diferentes em cada caso, e houve inclusive quem preferisse recolher o Imposto de Renda apenas sobre o montante que estava fora do país em 31 de dezembro de 2014. “Alguns dos meus clientes retroagiram até 2011, outros optaram pela foto”, afirma Scaff.

Isentos

Outra situação que pode levar contribuintes ao Judiciário é a inclusão no programa de repatriação de valores que, no Brasil, seriam isentos de Imposto de Renda. O advogado Rafael Pandolfo, presidente da Comissão Especial de Direito Tributário da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS) e sócio do Rafael Pandolfo Advogados Associados, diz que recomendou a judicialização a clientes que incluíram heranças ou doações no regime especial.

As rubricas não entrariam, no Brasil, no cálculo do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), mas precisariam ser declaradas. Ele também recomendou a seus clientes que pagassem a alíquota de 15% e a multa em igual proporção sobre o montante mantido fora do país, mas fossem à Justiça.

“O governo [brasileiro] não poderia exigir esse imposto, então as pessoas estão pagando para se livrarem da discussão judicial sendo polo passivo, e entrando no polo ativo”, diz.

Segundo ele, o simples não pagamento poderia implicar em uma autuação da Receita Federal. Nesse caso cobraria-se 27,5% de IRPF e uma multa de até 150%, que pode ter implicações na esfera penal.

O ponto também é polêmico, e não há consenso entre tributaristas de que essa seria uma boa opção. Ana Cláudia, por exemplo, recomendou que seus clentes incluíssem as heranças e doações no programa de repatriação e ainda recolhessem o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) aos Estados.

Os entes federativos receberão parte dos valores de Imposto de Renda recolhido pelos pelos contribuintes que entraram no programa de repatriação. Alguns deles, porém, foram ao Supremo Tribunal Federal cobrar também o repasse de parte das multas pagas.

Para frente

Além de regularizarem valores deixados fora do país por até 12 anos, muitos contribuintes, segundo advogados ouvidos pelo JOTA, demonstraram interesse em regularizar suas situações no período pós dezembro de 2014. Nesses casos foi preciso pagar os impostos e a correção monetária referentes a 2015.

Ana Cláudia diz que atendeu clientes interessados em regularizarem valores mesmo à alíquota de 27,5%. Ela salientou, porém, que não há garantias de que esses contribuintes não respondam criminalmente no futuro.

“Essa infração que eles cometeram em 2015 não está expressamente perdoada”, diz a advogada.

Apesar das dificuldades e das polêmicas, Vasconcelos afirma que o programa de repatriação era o caminho mais indicado aos contribuintes que tinham valores não declarados no exterior. Isso porque o Brasil assinou tratados internacionais que prevêem a troca de informações sobre movimentações financeiras.

“Todas as informações de contribuintes brasileiros lá fora já são de conhecimento do Fisco brasileiro, mas não estão sendo utilizadas por força da lei [de repatriação]”, diz.

Ele lembra ainda que é considerado crime de evasão de divisas não só a remessa de valores não declarados ao exterior, mas também a manutenção do montante fora do país.

Por Bárbara Mengardo

Fonte: Jota

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