Há pouco mais de uma semana, o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25/10/1966) completou meio século em nosso ordenamento jurídico e, no próximo dia 1º de janeiro de 2017, terá alcançado 50 anos de vigência com o significativo marco de que nenhum de seus dispositivos tenha sido, até hoje, declarado inconstitucional (embora alguns não foram recepcionados pela CF88).
Nestas cinco décadas, foi possível assistir aos efeitos do tempo e do legislador sobre o CTN. Merece lembrança a mudança de fundamento constitucional do sistema tributário nacional, da Emenda Constitucional nº 18/1965 para a Constituição Federal de 1988, que recepcionou o Código materialmente como Lei Complementar. Não podemos nos esquecer também das alterações que ocorreram nesse período em diversos dos seus artigos, tais como aquelas mais remotas, decorrentes do Decreto-lei nº 406/1968, que suprimiram as regras relativas ao ICMS e ao ISS (hoje regulados pela LC nº 87/1996 e LC nº 116/2003), assim como as mais recentes, derivadas da Lei Complementar nº 143/2013, que modificaram as normas sobre os fundos de participação, critérios de distribuição de recursos, cálculo e pagamento de quotas aos Estados e Municípios. Tivemos também as relevantes mudanças introduzidas pela Lei Complementar nº 104/2001 (com normas antielisivas, sobre parcelamento e dação em pagamento etc.), e pela Lei Complementar nº 118/2005 (com novas regras sobre a recuperação do crédito tributário, sobre a interpretação do prazo prescricional para repetição do indébito etc.).
A partir desse contexto, materializava-se um efetivo descolamento entre o Direito Tributário e o Financeiro, até então integrantes de uma mesma especialidade, com o desenvolvimento de ampla e farta doutrina e jurisprudência sobre aquela área jurídica que havia sido recém-reorganizada, cuja temática ganhava cada vez mais espaço na academia e nos tribunais de todo o país.
Não obstante, não podemos nos olvidar de que o Direito Financeiro, disciplina que tem por objeto a atividade financeira do Estado, foi a origem do Direito Tributário, tal como se diz, no relato bíblico, que Eva foi criada a partir de uma costela de Adão. Apesar disso, a relação entre ambas nunca deixou de existir, afinal, o Direito Financeiro e o Direito Tributário são especialidades jurídicas interdependentes e que se comunicam contínua e simbioticamente, embora nunca tenham se confundido.
A despeito de toda a relevância jurídica que o Direito Tributário merecidamente possui como estatuto protetivo da liberdade do cidadão perante o Estado – garantindo o equilíbrio entre a liberdade e a justiça fiscal e entre direitos fundamentais e capacidade contributiva -, este cuida de apenas uma dentre as várias espécies de receitas estatais sobre as quais versam as finanças públicas: a receita tributária. Por sua vez, o Direito Financeiro é o ramo jurídico que orienta e regula toda a atividade financeira do Estado, que envolve as funções de arrecadar, gerir e gastar os recursos públicos e, assim, inserida na primeira delas está a receita tributária, objeto do Direito Tributário.
Além da sua importância, desenvolvimento, complexidade ou da mera convenção de ordem pragmática ou didática, podemos aventar algumas outras justificativas para esse desdobramento disciplinar, de modo a fundamentar a ascensão do Direito Tributário à categoria de especialidade jurídica autônoma.
Primeiramente, é importante lembrar que, enquanto o Direito Financeiro tem em suas normas um destinatário próprio, isto é, o administrador público – no exercício do seu múnus na atividade financeira -, o Direito Tributário disciplina a relação jurídica entre o cidadão e o Estado (Fazenda Pública), limitando o seu poder de tributar, para garantir o respeito aos direitos fundamentais do contribuinte.
Noutras palavras, o Direito Financeiro irá normatizar todos os atos e procedimentos para a realização da arrecadação pública em sentido amplo, a gestão desses recursos, o respectivo gasto público e a elaboração e execução do orçamento público, constituição e gestão da dívida pública, tudo isso parametrizado por princípios específicos e por normas como a Lei Geral dos Orçamentos (Lei nº 4.320/1964), a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), dentre outras, direcionando a conduta daqueles servidores públicos que agem em nome da Administração Pública durante a realização da atividade financeira. Por sua vez, o Direito Tributário estabelecerá as normas de uma relação jurídica específica – a relação tributária – entre o cidadão e o Estado, pautada por princípios jurídicos específicos da tributação, como a legalidade tributária, a capacidade contributiva, a anterioridade, a progressividade, o não-confisco etc.
Além de destinatários diversos, devemos considerar que a relação tributária contém em si um latente estado de conflito entre a Fazenda Pública e o cidadão, circunstância potencializada pelo fato de que a tributação é, inequivocamente, uma exceção ao princípio da propriedade privada, sendo o tributo, atualmente, a principal fonte de receitas públicas. Basta lembrarmos que a tributação abusiva de certos governantes ensejou inúmeras revoluções ao longo da história da humanidade para chegarmos à inexorável conclusão de que um ramo do Direito específico, científica e metodologicamente autônomo para disciplinar esta relação, há muito tempo se fez necessário.
Ora, se o Estado é chamado a dar efetividade às normas constitucionais e a assumir cada vez mais políticas públicas que atendam às necessidades coletivas, a outra face da moeda só pode ser a premência de recursos financeiros para fazer frente a estes gastos. Assim, como o Estado contemporâneo tem nos tributos relevante fonte de receitas, a Administração buscará cada vez mais sofisticar o seu sistema tributário visando ampliar a arrecadação, seja a partir da criação de novas espécies tributárias ou pela majoração das já existentes, além de afinar os meios de recuperação do crédito fiscal. Todavia, a necessidade crescente de recursos originários da tributação faz emergir, infelizmente, uma mentalidade arrecadatória por parte de agentes do Fisco, e eventuais desconsiderações das garantias do contribuinte pela própria Administração Tributária passam a ser fatos comuns.
Tal cenário conduz à necessidade de o Estado brasileiro possuir um ramo do direito autônomo, suficientemente complexo e capaz de normatizar as relações jurídicas de natureza tributária e atender aos anseios do cidadão-contribuinte, com a garantia dos seus direitos fundamentais na realização da atividade tributária.
Hoje, o Direito Tributário já tem alicerçada a sua fundamental função no ordenamento jurídico brasileiro, atuando autonomamente, porém ao lado do Direito Financeiro na realização do que podemos denominar de justiça fiscal em sentido amplo, oferecendo ao cidadão e aos governos os mecanismos necessários para a criação de uma sociedade mais digna e justa.
Ambos – Direito Tributário e Direito Financeiro – são faces de uma mesma moeda, e de nada adiantará a preocupação direcionada a apenas um em detrimento do outro. Se estes 50 anos do Código Tributário Nacional nos presentearam com a consolidação do ordenamento tributário, esperemos que os próximos anos tenham o Direito Financeiro como protagonista ou, ao menos, coadjuvante, da transformação da justiça fiscal em justiça social.
Por Marcus Abraham
Desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Doutor em Direito Público (UERJ), Professor de Direito Financeiro e Tributário da UERJ, autor de diversos livros, dentre eles o CURSO DE DIREITO FINANCEIRO BRASILEIRO, 3ª edição, Editora Forense, 2015, e LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL COMENTADA, 1ª edição, Editora Forense, 2016.
Fonte: Jota
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