A Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13) já foi tratada sob inúmeras perspectivas nesta Coluna. Mas há sempre algo mais que suscita reflexões, de forma que volto ao tema, agora para tratar da responsabilidade objetiva, talvez o núcleo central da nova lei.
Pelo texto legal, a aplicação das sanções não exige a intenção da corporação ou de seus dirigentes em corromper ou a demonstração de sua desídia em relação a atos deste gênero que eventualmente ocorram. Basta que se constate que alguém — um funcionário, parceiro, contratado, consorciado — tenha oferecido ou pago vantagem indevida a servidor público (ou praticado qualquer dos atos previstos em seus dispositivos), e a instituição será penalizada, desde que beneficiada direta ou indiretamente pelo comportamento ilícito. Assim, se uma corporação contrata um terceiro para obtenção de licença pública para determinada atividade, e este usa de propina para obter o documento, ambos serão punidos, contratante e contratado. A responsabilidade é automática, objetiva.
O escopo do legislador é fortalecer o ambiente institucional de repressão à corrupção. Ao suprimir a exigência da constatação do dolo ou da imprudência para imputar as sanções previstas, quer-se incentivar a adoção de politicas de integridade e compliance, que evitem qualquer ligação da empresa com pessoas ou outras entidades que possam lhe trazer problemas ou danos de imagem.
A estratégia para alcançar tal resultado, no entanto, merece alguns reparos. O mecanismo usado para consolidar esta consciência ética no mundo corporativo: a responsabilidade objetiva, tem causado desconforto nos meios empresariais e acadêmicos. Nos primeiros pela apreensão de ver-se responsabilizado por atos de terceiros, mesmo que a empresa tenha um sistema de integridade adequado e eficiente. Nos últimos diante da dificuldade de justificar um castigo — ou seja, uma consequência que vá além da mera reparação do dano — àquele que não tem culpa, entendida aqui como culpabilidade, como responsabilidade pelos fatos.
A ideia da culpabilidade é bem desenvolvida no Direito Penal, e seus contornos podem ser aplicados à discussão. Trata-se do instituto que legitima a punição, porque indica que o ilícito é fruto da vontade ou da falta de cuidado de alguém. Ao contrário da reparação, pela qual se impõe um ônus limitado à restituição do status quo ante, a punição, com a finalidade de retribuição ou de prevenção, exige a constatação de algo mais do que a mera relação causal de alguém com um resultado indesejado, impõe que se busque esta relação de intencionalidade ou de descuido do agente diante de uma lesão ou perigo.
No que concerne à pessoa física, esta relação é atrelada à existência do dolo ou da imprudência[1]. Já no âmbito da pessoa jurídica, a discussão é mais complexa. Como identificar uma vontade ou uma imprudência de um ente empresarial? Laufer faz um repasse de todas as teorias desenvolvidas em torno do tema, e as sintetiza da seguinte forma[2]:
A culpabilidade da empresa pode ser, em primeiro lugar, reconhecida pela atitude proativa do ente, determinada em função das medidas internas adotadas para prevenir ilícitos (culpabilidade proativa). Por outro lado, há quem sustente que esta culpabilidade é medida de acordo com as medidas de reação à identificação da prática do ilícito (culpabilidade reativa). Outros a identificam com a cultura empresarial, com a identidade corporativa, ou com as decisões e oportunidades comunicadas pela política da empresa (culpabilidade pela ética empresarial). Por fim, há doutrina que defende um conceito de culpabilidade construtiva, caracterizada por uma espécie de estado mental corporativo.
Seja qual for a opção, nota-se um esforço para identificar elementos que caracterizem a culpabilidade corporativa, de forma a evitar a responsabilidade objetiva, e justificar a imposição da pena no campo dos crimes corporativos.
Este mesmo esforço deve ser feito em relação à responsabilidade empresarial pelos ilícitos previstos na Lei 12.846/13. A uma porque, a nosso ver, se trata de uma lei penal encoberta. Como já defendemos, a qualidade e a quantidade das sanções, os contornos dos ilícitos, e o bem jurídico tutelado revelam que a lei trata — em verdade — de crimes e impõe penas, sendo, portanto, vedado o recurso à responsabilidade objetiva.
Mas, ainda que afastada esta natureza penal, ainda que reconhecida a lei como um instrumento do direito administrativo sancionador, não parece haver lugar para a responsabilidade objetiva.
Sem tecer profundas considerações — que ensejariam uma reflexão mais detida — nos parece que imposição de uma pena, de um castigo, para além da mera reparação, exige a constatação de algum nexo de vontade ou de descuido por parte do agente — justamente aquilo que merece repreensão. No caso da empresa, como visto, pode-se caracterizar este nexo por inúmeras construções dogmáticas, mas deixa-lo de lado não parece legitimo.
A lei em comento, como dito, prevê a responsabilidade objetiva da empresa. Assim, mesmo que a instituição não tenha deliberado cometer atos ilícitos, que apresente um efetivo sistema de prevenção e investigação de irregularidades, e que funcione dentro de estritos padrões éticos, será punida caso seja beneficiada pelo comportamento de funcionários ou de terceiros contrário à norma. Note-se: ainda que a corrupção tenha sido detectada e investigada pela própria corporação, e comunicada por ela aos órgãos públicos, será aplicada a pena (embora com uma atenuante, nos termos do artigo 7o da lei, ou mesmo uma causa de diminuição caso firmada e cumprida a leniência, como disposto no artigo 16).
Assim, imaginemos uma empresa cujo setor de compliance detecta um funcionário que oferece vantagens a servidores públicos para obter contratos, ampliando seu bônus em vendas com tal prática. Em seguida, a instituição apura os fatos, junta documentos, e comunica a prática às autoridades do ente afetado. É justo e correto que os danos eventualmente causados sejam suportados pela empresa, que foi beneficiada. Tambem que o funcionário envolvido responda pelo crime praticado. Mas não parece adequado que a pessoa jurídica, que não decidiu pelo ato, e que não foi imprudente — ao contrário, dispunha de um sistema de integridade que detectou o ato — seja castigada com as sanções previstas nos artigos 6o e/ou 19 do diploma.
Ainda que a multa seja pequena — reduzida a 0,1% do faturamento bruto com um desconto de 2/3 por uma eventual leniência — não parece ser aplicável. Não se trata de tamanho, mas de princípio. Impor a pena neste caso é admitir que se castigue um ato sem culpabilidade, algo que não se justifica em um Estado cuja constituição prevê a intranscendência da pena (Constituição Federal, artigo 5o, XLV).
Como aponta Laufer, “la ‘culpabilidad empresarial’ carece de sentido cuando se basa en las acciones de un empleado delincuente que, dentro de los limites de su competência, actua para beneficiar la empresa, pese a infringir así la politica empresarial de caráter expreso, las regulaciones administrativas o el derecho penal”[3]
Note-se que o próprio STJ já decidiu, em caso de danos ambientais, que a responsabilidade objetiva se limita à reparação de danos. No caso, foi aplicada a um indivíduo uma multa por lesões ao meio ambiente realizadas por seu pai, em propriedade adquirida posteriormente. O acórdão entendeu que a reparação dos danos era devida, pois obrigação propter rem, “sendo possível cobrar também do atual proprietário condutas derivadas de danos provocados pelos proprietários antigos” Porém, afastou a incidência da multa, pelos seguintes argumentos:
“Pelo principio da intranscendência das penas (art.5o, XLV, CF 88), aplicável não só ao âmbito penal, mas também a todo o Direito Sancionador, não é possível ajuizar execução fiscal em face do recorrente para cobrar multa aplicada em face de condutas imputáveis a seu pai.
Isso porque a aplicação de penalidades administrativas não obedece à lógica da responsabilidade objetiva da esfera cível (pela reparação dos danos causados), mas deve obedecer à sistemática da teoria da culpabilidade, ou seja, a conduta deve ser cometida pelo alegado transgressor, com demonstração de seu elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal ente conduta e dano” (RESP 1.251.697, Rel. Min. Mauro Campbell, 2a Turma, unanime, j.12/04/2012, grifos nossos)
Em suma, a reparação dos danos segue a lógica da responsabilidade objetiva, mas a punição — seja em âmbito penal, seja no administrativo — exige culpabilidade, que, no caso da empresa, é construída sobre os elementos já citados.
Diante disso, parece que o interprete competente para a aplicação da lei, na esfera judicial ou administrativa, deverá atentar para esta questão, e adequar o texto normativo às premissas presentes na Constituição Federal. A intranscendência das penas — prevista constitucionalmente (Constituição Federal, artigo 5o, XLV) — impede que um ato de terceiros justifique a aplicação da sanção à empresa.
A pena, o castigo, é para quem tem culpa. E esta culpa, na pessoa jurídica, revela-se na decisão de burlar a lei ou na estruturação deficiente, na ausência de programa de compliance efetivo e funcional, na complacência ou condescendência com comportamentos suspeitos. A empresa que instala e incorpora políticas de integridade, dedicada à implementação programas de prevenção a delitos à apuração de qualquer ato suspeito, que demonstre seu compromisso real com a ética e com a transparência, não merece ser penalizada. Merece — como já dissemos — reparar o dano, arcar com os prejuízos, ver sustados ou anulados os benefícios que eventualmente obteve com o comportamento ilícito do qual não participou. Mas, qualquer coisa que vá além, com a finalidade de restribuição ou de prevenção, não encontra justificativa, pela ausência de culpabilidade.
Enfim, a lei merece elogios, mas se há algo que merece reparos em seus dispositivos, é a responsabilidade objetiva. A nosso ver, o intérprete deverá ajustar tal preceito, que não importa em grandes exercícios. Basta conferir uma abrangência maior ao parágrafo 1o do artigo 6o[4], admitindo que o compliance efetivo, completo e funcional possa, em determinados casos, exonerar a empresa de pena. Com isso, incentiva-se a adoção de políticas comprometidas com a integridade e ajusta-se a punição ao principio constitucional da culpabilidade.
[1] Ainda que tais elemetos façam parte do tipo penal, são os indicadores da culpabilidade enquanto decorrência do proncipio da intranscendência da pena.
[2] LAUFER, William S., La culpabilidade empresarial y los limites del derecho. GÓMEZ-JARA DIEZ, Carlos. Modelos de autorresponsabilidad penal empresarial. Universidad Externado: Bogotá, 2008, p.126 e ss.
[3] Op. Cit, p.135
[4] As sanções erão aplicadas fundamentadamente, isolada ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações
por Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.
Igor Tamasauskas é sócio do Bottini & Tamasauskas Advogados.
Fonte: Conjur
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