quinta-feira, 1 de março de 2018

CPC 47 e a Guerra Fiscal entre estados e municípios

A edição da Lei nº 11.638/2007 é reconhecida como um verdadeiro divisor de águas para a contabilidade brasileira, eis que a partir deste instrumento normativo nosso país passou a adotar as Normas Internacionais de Contabilidade – IFRS.

Importantes mudanças foram introduzidas na legislação societária e contábil do Brasil, em um verdadeiro movimento de alinhamento com as normas contábeis então vigentes na Europa e Estados Unidos. Em síntese, foram introduzidos novos pilares que se subsomem muito mais em princípios do que em regras positivadas, ao contrário do que vinha sendo praticado pelos profissionais contadores até o exercício de 2007.

A prevalência da essência sobre a forma – como meio de prestigiar a real intenção dos agentes em detrimento do instrumento utilizado – tornou-se um verdadeiro paradigma para a contabilidade brasileira.

A nova contabilidade brasileira permite aos destinatários das demonstrações financeiras uma maior comparabilidade dos números das empresas aqui estabelecidas com aquelas sediadas em outros países, eis que as bases das informações contábeis se assemelham.

Já o sistema tributário brasileiro caminha de forma muito tímida em relação a toda esta mudança incorporada pela disciplina contábil. Os órgãos tributários brasileiros são, de certa forma, refratários às mudanças estabelecidas pelas normas contábeis internacionais, principalmente pelo receio de perda de arrecadação.

Entretanto, alguns conceitos contábeis são base inexorável para o fenômeno da tributação e deveriam estar associados diretamente às normas de incidência tributária, sob pena de contaminar todo o sistema desenhado pala comunidade contábil.

O reconhecimento de receita é um conceito contábil que interfere diretamente na mecânica de tributação de diversos tributos, sobretudo aqueles administrados pela Receita Federal do Brasil, como, por exemplo, PIS, COFINS, IRPJ e CSLL. Por sua vez, também tem reflexos no ISSQN e no ICMS que são administrados pelos Estados e Municípios.

Sobre o tema surge o CPC 47, que trata de receita de contrato com cliente e que entrou em vigor em 01.01.2018, estabelece uma série de normas sobre o reconhecimento de receitas, precipuamente sobre o momento de seu reconhecimento. A norma contábil impõe o reconhecimento da receita no momento em que houver o controle do ativo pelo cliente e destaca a necessidade de separar a receita de acordo com a obrigação de desempenho.

O legislador federal tem editado normas, como, por exemplo, a Lei nº 12.973/2014, que trata dos reflexos das normas contábeis nos tributos federais, sendo certo que aplica, para certos casos, a neutralidade tributária e, para outros casos, regulamenta a incidência tributária de acordo com os novos preceitos contábeis.

Já no âmbito de Estados e Municípios não se vê o mesmo movimento de adequação das normas contábeis àquelas de ordem tributária. Esta inércia impõe uma série de dúvidas ao contribuinte e gera insegurança jurídica.

Com isso, as prescrições do CPC 47, principalmente aquelas decorrentes da separação das obrigações de desempenho, podem acirrar a guerra fiscal entre Estados e Municípios. Algumas operações nas quais a receita era reconhecida de acordo com a entrega da operação principal e a natureza desta dava ensejo à competência tributária do ente federativo, passaram a ser reconhecidas a cada obrigação de desempenho. Sob essa ótica, a natureza de cada uma das obrigações de desempenho pode ser entendida como um fato isolado e dar ensejo à incidência ora do ICMS e ora do ISSQN.

De uma maneira geral a pessoa jurídica deve reconhecer receita sempre que cumprir a obrigação estipulada no contrato firmado com o cliente ou quando fizer a tradição completa do bem.

A entrega do bem pode ser feita de uma única vez e, consequentemente, o reconhecimento de receita refletirá apenas um lançamento contábil, ou pode se dar por meio de entregas contínuas, hipótese em que o reconhecimento de receita deverá ser feito em cada uma das etapas em que ocorrer o cumprimento da obrigação de desempenho.

No reconhecimento da obrigação de desempenho reside o problema!

Na separação por obrigação de desempenho, para uma grande maioria de contratos, o reconhecimento individualizado de receita não traz qualquer dificuldade, como, por exemplo, na venda de uma caneta por uma papelaria. Neste caso, o reconhecimento da receita ocorre com a entrega da mercadoria para o cliente, normalmente coincidente com a emissão da nota fiscal, o que faz incidir o ICMS.

Por sua vez, para tantas outras operações de maior complexidade, o reconhecimento de receita não é tarefa fácil e implica em uma maior dedicação do profissional contábil. Nestes casos, uma operação de compra e venda ou de prestação de serviços pode conter mais de uma operação que se traduz em obrigação principal.

Para estas operações que comportam o “fatiamento” do objeto do contrato em várias obrigações de desempenho, a norma contábil determina o reconhecimento da receita a cada operação entregue ao cliente.

Em suma, sempre que o cliente possa usufruir do bem ou do serviço independentemente do outro ainda não recebido, e ambos – serviço e bem – possam ser identificados separadamente no contrato, restará identificada individualmente a obrigação de desempenho.

Neste aspecto é que a nova regra de reconhecimento de receita poderá trazer consequências danosas ao contribuinte, pois o dito “fatiamento” de receita implicará no reconhecimento de operações que, isoladamente, são fatos geradores de tributos distintos (ICMS ou ISSQN).

Desta forma, as inovações trazidas pelo CPC 47 são muito prejudiciais à guerra fiscal entre Estados e Municípios, haja vista que as operações continuadas restarão sujeitas ao alvedrio das autoridades tributantes, as quais poderão exigir tributos em operações cuja competência tributária seja de outro ente federativo.

A chave para a aplicação do CPC 47 está na interpretação do contrato de venda e compra de mercadorias ou prestação de serviços firmados com os clientes. Por essa razão, uma especial atenção na redação de suas cláusulas pode ser um bom começo para mitigar a insegurança jurídica da guerra fiscal entre Estados e Municípios.

A redação de cláusulas diretas e sem detalhamento excessivo evitará, na maioria das vezes, a identificação de diversas obrigações de desempenho, o que evitará que operações acessórias se sobressaiam à operação principal. Para tanto, a assistência de um profissional do Direito capacitado será crucial para percorrer os meandros causados pelo CPC 47.

O CPC 47 entrou em vigor 01.01.2018 e todas as empresas devem, a partir desta data, reconhecer suas receitas de acordo com a obrigação de desempenho. Os Estados e Municípios estarão ávidos a incrementar suas receitas com as transações contabilizadas de forma individualizada.

O problema está lançado!

Fonte Oficial: Jota.info

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