segunda-feira, 5 de junho de 2017

Fato gerador do ISS

A partir deste artigo passaremos a abordar os aspectos fundamentais do ISS e finalmente as questões mais controvertidas em relação a este imposto municipal. Para tanto nos valeremos da nossa obra ISS doutrina e prática, 2ª edição, Atlas, 2014. Iniciarmos a série com a abordagem acerca do elemento nuclear do fato gerador desse imposto.

Dispõe o art. 1º da lei de regência nacional do ISS:

“Art. 1٥ O imposto sobre serviços de qualquer natureza, de competência dos municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.”


Cumpre examinar antes de mais nada os três tipos de fato gerador existentes para a perfeita compreensão da matéria objeto deste estudo.

Na seara do ISS, existem serviços que se iniciam e terminam em um único momento, caracterizando fato gerador instantâneo. É o caso, dentre outros, dos serviços previstos no item 6.01 da lista anexa à Lei Complementar nº 116/03 (barbaria, cabeleireiros, manicuros, pedicuros e congêneres). Existem outros serviços, cuja execução se estende por um tempo mais prolongado. Correspondem ao denominado fato gerador continuado. São exemplos, dentre outros, aqueles previstos nos itens 7.01 (engenharia, agronomia, agrimensura, arquitetura, geologia, urbanismo, paisagismo e congêneres) e 8.01 (ensino regular pré-escolar, fundamental, médio e superior). Finalmente, temos o chamado fato gerador complexo ou complexivo em que diversos atos e fatos interligados envolvem a prestação de serviço. São os casos, por exemplo, dos serviços previstos no item 22.01 da lista de serviços (serviços de exploração de rodovia mediante cobrança de preço ou pedágio dos usuários, envolvendo execução de serviços de conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoramento, assistência aos usuários e outros serviços definidos em contratos, atos de concessão ou de permissão ou em normas oficiais). A execução desses serviços ou obras não podem ser objetos de tributação em separado ainda que tenham enquadramento em outros itens de serviços, exatamente por ser tratar de fato gerador complexo não passível de cisão.

Outro importante aspecto a considerar diz respeito à distinção entre serviços tributáveis e serviços tributados. A expressão “serviços de qualquer natureza” consignada no texto constitucional para definição de competência impositiva municipal não se confunde com “qualquer serviço”, como sustentavam os defensores da tese da exemplificatividade da lista de serviços.

Outrossim, é importante no exame do fato gerador do ISS não confundir a expressão “serviços de qualquer natureza,” que costumava ser invocada pelos defensores da tese da exemplificatividade da lista, com a expressão “qualquer serviço.” Só é relevante para o ISS o “serviço definido em lei complementar,” como consta da dicção constitucional. Disso resulta que o legislador municipal só pode tributar os serviços especificados na lista anexa à LC nº 116/03, salvo naquelas hipóteses onde constam a expressão “congêneres”, quando o legislador local está autorizado a explicitar outros serviços similares ou análogos. Na prática, a legislação municipal limita-se a reproduzir a expressão “congêneres” afrontando o princípio constitucional da legalidade estrita.

Por fim, o serviço tributável pelo ISS há de ter natureza mercantil. O conceito dado pelo direito civil é vinculante dentro do Direito Tributário (art. 110 do CTN). Serviço significa um bem econômico imaterial, fruto de esforço humano aplicado à produção. “É produto da atividade humana destinado à satisfação de uma necessidade (transporte, espetáculo, consulta médica), mas que não se apresenta sob forma de bem material (Cf. Grande Enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A, 1970, vocábulo serviço). Prestar serviço significa servir, isto é, ato ou efeito de servir. É o mesmo que prestar trabalho ou atividade a terceiro, mediante remuneração. O ISS recai sobre circulação de bem imaterial (serviço). Resulta da obrigação de fazer, em contraposição ao ICMS que recai  sobre a  circulação de bem material e resulta da obrigação de dar, algo já feito.

Em síntese, o legislador ordinário não pode incluir na lista de serviços uma atividade que não configura um esforço humano aplicado à produção. Não pode ser considerado serviço aquilo que contraria as balizas constitucionais e legais, conferindo-lhe natureza de serviço onde não há qualquer esforço humano aplicado à produção, como no caso, por exemplo, de locação de bem móvel considerado inconstitucional pelo STF, hoje, objeto da Súmula vinculante nº 31. É que embora seja de alçada do legislador complementar na definição do fato gerador dos impostos previstos na Constituição Federal (art. 146, III, a ) ele não é livre para estabelecer definições que atritem contra conceitos albergados pelo texto constitucional. Ademais, à luz do próprio art. 110 do CTN os conceitos que derivam do direito privado são vinculantes. Não se pode transformar a locação de bem móvel em prestação de serviços, nem a locação de andaimes, muito menos os fornecimentos de urnas funerárias, flores e demais bens materiais que resultam da obrigação de dar, ensejando a tributação pelo ICMS.

Feitas essas considerações já podemos definir o aspecto nuclear, objetivo ou material do fato gerador do ISS.

Alguns autores, com suposto amparo na doutrina de Bernardo Ribeiro de Moraes, indiscutivelmente, grande mestre do imposto municipal sob comento, afirmam que o ISS incide sobre o “serviço de qualquer natureza” e não sobre a prestação desse serviço. Ora, isso é confundir o objeto do imposto que é, de fato, o “serviço,” um elemento extrajurídico e econômico, com o fato gerador do ISS, que é um elemento jurídico, deflagrador de efeito jurídico.

Realmente, Bernardo Ribeiro de Moraes examinando o objeto do ISS afirma:

“De acordo com seu objeto, o ISS se apresenta como um imposto que grava os ‘serviços de qualquer natureza’, conforme discriminação constitucional de renda tributárias (Emenda Constitucional n. 1, de 1969, art. 24, n. II).

Devemos observar que o ISS não recai sobre a prestação de serviços, mas, sim, sobre serviços de qualquer natureza. A norma constitucional outorgou aos municípios competência para onerar o serviço.” [1]

Porém, mais adiante, referindo-se ao fato gerador do ISS assevera:

“Já dissemos que o ISS o que se grava “é a efetiva prestação de serviços”, a venda efetiva de um bem imaterial.

Embora as legislações dos municípios, via de regra, não tenham se utilizado da expressão “efetiva prestação de serviço”, mas apenas “prestação de serviço”, para o conceito de incidência do ISS, o elemento efetiva prestação não pode ser dispensado. Quem ler “prestação de serviço” na legislação municipal, deve entender atividade efetiva de prestação de serviço.” [2]

Nem poderia ser de outra forma, pois quando a norma definidora do fato gerador refere-se à “prestação de serviços constantes da lista” está expressando a ideia de real execução de um determinado serviço incluído na lista. Por isso, a jurisprudência tem exigido a presença de efetiva atividade não bastando o lançamento do ISS referir-se a estabelecimento ou profissional autônomo que presta serviço de qualquer natureza, sem especificar o serviço prestado. [3]

O ISS é um imposto de natureza mercantil que resulta da obrigação de fazer como dito anteriormente. Sua prestação pressupõe um contrato celebrado entre o prestador do serviço e seu tomador. E três são os elementos estruturais do contrato: as partes representadas por agentes capazes; o objeto lícito, possível e suscetível de apreciação econômica (preço); e a forma prescrita em lei, podendo ser incluído, também, o elemento volitivo, pois ninguém pode ser compelido a firmar contrato. Daí porque sem preço não há contrato, vale dizer, não há prestação de serviço a ser alcançada pela norma tributária. Disso resulta a intributabilidade dos serviços prestados gratuitamente, assim como aqueles executados em benefício próprio, pois ninguém celebra contrato consigo próprio.

O novo texto do art. 1º, de um lado, deixou de referir-se à prestação de serviços “por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo,” que constava do art. 8º do Decreto-lei nº 406/68 e, de outro lado, acrescentou a expressão “ainda que esses serviços não se constituam como atividade preponderante do prestador”.

Apesar da diferença redacional, nada mudou. O elemento material do fato gerador do ISS continua sendo a prestação de serviço que corresponde a uma circulação de bem imaterial pertinente a uma obrigação de fazer. A supressão da expressão “por empresa ou profissional autônomo”, que qualifica o contribuinte do imposto, não significa alargamento da hipótese de tributação.  O campo abrangido pela imposição do ISS continua limitado aos serviços prestados mediante remuneração, porque ínsita a natureza mercantil desse imposto.

Por outro lado, alguns autores de nomeada costumam apontar a habitualidade da atividade desenvolvida pelo contribuinte para qualificação do serviço onerado pelo ISS. Discorrendo sobre o assunto preleciona Bernardo Ribeiro de Moraes:

“Em verdade, a habitualidade qualifica as atividades oneradas pelo ISS. O elemento habitualidade é essencial para a concretização do fato imponível do ISS. Tal elemento deve ser levado em conta no exame da incidência do tributo. Esta exige prestação de serviço habitual, reiterada, com ideia de atividade permanente, sistemática, de reprodução continuada. A reiteração das operações constitui parte integrante do ciclo orgânico da atividade. Sem a menor dúvida, é importante que o serviço prestado seja em caráter habitual ou permanente. ” [4]

Entendemos que a habitualidade não é essencial para a tributação pelo ISS, mas apenas para a caracterização de profissional autônomo, que exerce determinada profissão com certa continuidade. O requisito da habitualidade não tem fundamento na Constituição Federal que em matéria de ISS só estabeleceu três restrições: a) exclusão dos serviços abrangidos na competência dos Estados; b) definição de serviços tributáveis por lei complementar; c) fixação de alíquotas máximas do imposto por lei complementar (fixação de alíquotas mínimas também, a partir da EC nº 37/02).

Outrossim, nem o art. 71 do CTN e nem o art. 8º do Decreto-lei nº 406/68 faziam referência à habitualidade como condição para tributar o serviço prestado. Diferente será se o próprio município tributante inserir, em sua lei tributária, o requisito da habitualidade do serviço prestado, hipótese em que caracterizada estaria a auto-limitação de competência impositiva, legítima e constitucional.

Portanto, a inclusão da expressão final do art. 1º (“ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador”) em nada altera em relação ao fato gerador definido no diploma legal antecedente, pois a prática continuada de um mesmo ato nunca foi requisito para a incidência do ISS. Prestado determinado serviço especificado na lista, concretiza-se o fato gerador, dando nascimento à obrigação tributária, não importando saber se a prestação daquele serviço constitui ou não atividade preponderante do prestador. Essa expressão acrescida está simplesmente explicitando, enfaticamente, o critério norteador das múltiplas incidências tributárias relativamente a distintas atividades realizadas por uma mesma pessoa. O exercício de determinada atividade pode ensejar a deflagração do fato gerador de diversos impostos (IPI, ICMS, IOF), impondo-se a separação da atividade correspondente à prestação de serviço constante da lista, para o fim de incidência do ISS. Uma empresa concessionária de veículos, normalmente, sujeita-se ao pagamento de ICMS pelas operações de venda, mas deve recolher o ISS nas prestações de serviços de tapeçaria, de borracharia, de funilaria etc. Outrossim, uma empresa comercial especializada em venda de máquinas e implementos agrícolas, por exemplo, está sujeita ao recolhimento do ICMS pela venda dos maquinários, porém, se promover o conserto desses maquinários deverá sujeitar-se, também, ao pagamento do ISS.

E aqui é oportuno não confundir prestação de serviço enquanto obrigação principal, da prestação de serviço enquanto atividade-meio. Essa confusão ocorre com frequência na prestação de serviços pertinente a um fato gerador do tipo complexo a que aludimos no início deste tópico. Na prestação de serviços advocatícios, por exemplo, o profissional utiliza-se de um computador para digitar textos, bem como empreende atividades de pesquisas de jurisprudência e de doutrina para analisar e interpretar textos legais sem que tais serviços, abrangidos pelos serviços de advocacia, possam ser tributados separadamente. Não pode haver bis in idem e muito menos bitributação jurídica, para tentar alcançar serviços tributáveis pela outra esfera política.

Kiyoshi Harada - Jurista, com 31 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

[1] Doutrina e prática do imposto sobre serviços. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 81.

[2] Ob. cit., p. 114-5.

[3] RDA 99/79, RF 227/199.

[4] Doutrina e prática do iss. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 119.

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