Um dos problemas da legislação tributária brasileira atual é a falta de sistematicidade, gerando soluções ad hoc, de improviso, a depender da demanda da arrecadação ou dos segmentos interessados — quando não das empresas interessadas, o que é mais perverso, pois deixa de levar em conta um setor ou segmento, mas apenas uma pessoa jurídica isolada, usualmente gerando problemas concorrenciais.
Isso salta aos olhos na questão da legislação tributária do Pis e da Cofins não-cumulativas, que se transformou em uma colcha de retalhos, sem qualquer lógica aparente. Observando as normas atinentes à matéria, constata-se que muitos produtos estão obrigatoriamente submetidos a tais regras, sem que haja uma razão sistêmica que justifique sua inclusão, ou a exclusão de produtos semelhantes.
Isso salta aos olhos quando se verifica que as empresas tributadas pelo sistema de apuração de lucro real do Imposto de Renda são obrigadas a apurar o Pis e a Cofins pelo sistema não-cumulativo[1].
Traduzindo: Existem empresas que são obrigadas apurar o Imposto de Renda pelo sistema de lucro real, pois faturam acima de R$ 78 milhões por ano, porém existem aquelas que, em razão de baixa margem de lucratividade, optam por declarar seu Imposto de Renda por esse sistema. Todavia, ambas, optantes e obrigadas, são obrigadas a pagar Pis e Cofins não-cumulativos.
O erro está no fato de vincular obrigatoriamente um sistema a outro, pois, em um, se apura uma base impositiva — renda; enquanto no outro a base impositiva é o faturamento — Pis e Cofins.
Qual o fundamento disso? Absolutamente nenhum. Nenhuma sistematicidade. Poderia se dizer, à moda do Conselheiro Acácio, personagem de Machado de Assis: renda é renda e faturamento é faturamento. Uma empresa pode ter grande faturamento, e pagar Pis e Cofins, mas não ter lucro — base do imposto sobre a renda, que não será devido. Porque, então, o faturamento deverá estar necessariamente vinculado à renda? Não tem resposta.
O fato é que isso gera problemas de grande monta, em especial para aquelas empresas que se utilizam de mão de obra intensiva, isto é, que geram muito empregos, pois a sistemática não-cumulativa para a apuração do Pis e da Cofins configura um verdadeiro sistema legal de abatimento dos créditos taxativamente previstos na norma. E a contratação de mão de obra não gera crédito. Isso ocorre tanto nas empresas do setor de serviços, como naquelas dos demais setores, que empregam mão de obra de forma intensiva.
Eis o ponto. O principal insumo dessas empresas que se utilizam de mão de obra intensiva não gera nenhum crédito[2], e isso impacta fortemente a carga tributária com essas duas contribuições não-cumulativas. Para essas empresas, o que as Leis 10.637/02 e 10.833/03 criaram não foi um sistema não-cumulativo, mas um brutal aumento de alíquota com restritíssimo direito a crédito. Observe-se que a Cofins passou de 3% (cumulativa) para 7,6% (não-cumulativa), e o Pis de 0,65% para 1,65% sobre o faturamento — porém o principal insumo não gera crédito, o que sobreonera a carga fiscal das empresas que se utilizam de mão de obra intensiva.
De acordo com estas normas, a geração de emprego e a manutenção no quadro de pessoal de um grande número de trabalhadores penaliza o contribuinte, gerando, como consequência um verdadeiro desestímulo às empresas para criar e manter empregos.
Esta norma vai de encontro ao que determina a Constituição brasileira e os Pactos Internacionais a que o Brasil aderiu, como o artigo 6º do Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[3]. Este artigo consagra a obrigação que cada Estado têm de garantir pleno emprego, através de normas e outras medidas legislativas necessárias à sua implementação.
A não-concessão de crédito vai na contramão do que determina este preceito consagrador de direitos e liberdades fundamentais, inclusive o direito ao trabalho. Outras normas do mesmo Tratado (ler o artigo 2º e o artigo 5º, para conferir[4]) asseguram sua validade e obrigatoriedade, o que foi contrariado pelas normas tributárias acima transcritas.
Estas normas internacionais, além de estarem plenamente integradas no ordenamento jurídico brasileiro, fazem coro ao que determina a Constituição em vários de seus preceitos, como os artigos 1º, IV; o artigo 3º, III; o artigo 5º, §§ 1º e 3º; o artigo 7º, XXVII; o artigo 170, VIII, e o artigo 193.
Este conjunto de normas constitucionais e internacionais amparam e projetam sua sombra protetora sobre os trabalhadores, não apenas no que se refere ao “direito do trabalho”, mas também sobre o que se denomina de “direito ao trabalho”.
Com a edição da EC 42, a não cumulatividade do Pis e da Cofins foi elevada ao nível constitucional, através da inclusão do §12 no texto do artigo 195 da CF, determinando: “... A Lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, “b”; e IV do caput, serão não-cumulativas.”.
Assim, mesmo tendo sido incorporada ao texto constitucional, a não cumulatividade não pode ser analisada fora do seu contexto, vale dizer, a verificação do seu conteúdo deve ser buscada na própria Constituição. E a Lei que “definir os setores da atividade econômica” deverá estar pautada pelas disposições constitucionais — o que não ocorre no caso em apreço.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região já decidiu sobre o tema de forma amplamente favorável aos contribuintes, em acórdão da lavra do desembargador federal Leandro Paulsen[5], afirmando que “O critério de discriminação (regime de tributação pelo Imposto de Renda, se pelo lucro real ou não), no caso concreto, mostra-se falho e incapaz de levar ao resultado pretendido de distribuição do ônus tributário ao longo de uma cadeia de produção e circulação, comprometendo a própria função do regime não-cumulativo, o que evidencia violação não apenas à isonomia como à razoabilidade”.
Por tudo isso causa surpresa a decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 570.122, de relatoria do ministro Edson Fachin, condutor da divergência. O acórdão ainda não foi publicado, e nem assentado o texto da repercussão geral (tema 34), porém, foi divulgado ter sido mencionado “não haver ofensa ao princípio da isonomia ou da capacidade contributiva. Uma vez que há possibilidade de a empresa optar por diferentes regimes de recolhimento de Imposto de Renda, no regime real ou presumido, ela também poderia optar pelo regime da Cofins, se cumulativo ou não”[6], e afirmando “que a sujeição pelo sistema do Imposto de Renda sob o lucro real ou presumido é uma escolha da empresa, inserida em seu planejamento tributário.”[7]
Está incompleta a análise, pois os preceitos são onerosos para a contratação de pessoal, atacando a Constituição, em diversos pontos, conforme acima assinalado.
Está em curso o julgamento do RE 607.642, que tem por relator o ministro Dias Toffoli, cujo voto já foi disponibilizado[8], e que se refere às empresas prestadoras de serviços, o qual apresentou o seguinte texto para assentar a tese de repercussão geral (tema 337): “Não obstante as Leis 10.637/02 e 10.833/03 estejam em processo de inconstitucionalização, é ainda constitucional o modelo legal de coexistência dos regimes cumulativo e não cumulativo, na apuração do PIS/Cofins das empresas prestadoras de serviços.”
Compulsando as informações disponíveis, constata-se que os argumentos acima destacados, referente aos direitos humanos, em especial ao direito ao trabalho, consubstanciados no Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, não foram apreciados.
É muito importante que o STF se debruce sobre esta questão, que diz respeito à empregabilidade por parte das empresas. O casamento entre a sistemática do Pis e da Cofins não-cumulativas, com o sistema de lucro real, desestimula a contratação e manutenção do quadro de pessoal por parte das empresas, em especial daquelas que efetivamente mais usam mão de obra. Se estas são desestimuladas a contratar, pois seu custo fiscal está sobreonerado, por qual motivo ampliarão as vagas existentes? É bem possível que a cada duas vagas abertas, uma seja cortada.
O direito tributário não é uma ilha isolada, que gira apenas sobre suas premissas. Ele está conectado ao mundo, e as normas infraconstitucionais ora mencionadas estão em descompasso com a Constituição e os Tratados internacionais que regem a matéria.
Não se trata de um raciocínio consequencialista, pautado pelo enorme desemprego hoje existente, que engolfa 14% da população brasileira, mas uma análise jurídica, com forte amparo constitucional, conforme acima demonstrado.
A completa desconexão sistêmica entre o regime de apuração do imposto sobre a renda pelo lucro real, com a imposição da adoção do Pis e Cofins não-cumulativos, já seria motivo suficiente para invalidar as normas que determinam tal vinculação, porém a situação se torna ainda mais premente quando os direitos humanos estão sendo afetados.
É preciso conectar o direito tributário aos Direitos Humanos, com especial ênfase nos compromissos internacionais dos quais o Brasil faz parte, e que se encontram plenamente adequados aos preceitos constitucionais.
Espera-se que o STF aja com plena convicção de que é o guardião da Constituição — de toda a Constituição —, e não apenas de parte dela, analisando de maneira apenas formal a matéria que lhe é colocada sobre a mesa.
[1] Para uma leitura a contrario senso, pois as Leis referidas mantém a apuração cumulativa do Pis e da Cofins apenas para as empresas que apuram o lucro presumido ou arbitrado, o que obriga as empresas que apuram o imposto de renda pelo lucro real a adotarem a sistemática não-cumulativa do Pis e da Cofins. Para o Pis, ver Lei nº 10.637/02 - “Art. 8o - Permanecem sujeitas às normas da legislação da contribuição para o PIS/Pasep, vigentes anteriormente a esta Lei, não se lhes aplicando as disposições dos arts. 1o a 6o: II – as pessoas jurídicas tributadas pelo imposto de renda com base no lucro presumido ou arbitrado”. Para a Cofins, ver Lei nº 10.833/03 – “Art. 10. Permanecem sujeitas às normas da legislação da COFINS, vigentes anteriormente a esta Lei, não se lhes aplicando as disposições dos arts. 1o a 8o: II - as pessoas jurídicas tributadas pelo imposto de renda com base no lucro presumido ou arbitrado;”
[2] Inciso I, §2º, art. 3º da Lei nº 10.637/02 e inciso I, §2º, art. 3º da Lei nº 10.833/03.
[3] Norma integrada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 591, de 6/7/92: “Os Estados partes do presente pacto reconhecem o direito ao trabalho, que compreende o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito, e tomarão medidas apropriadas para salvaguarda esse direito. As medidas que cada Estado parte do presente pacto tomará a fim de assegurar o pleno exercício desse direito deverão incluir a orientação e a formação técnica e profissional, a elaboração de programas, normas e técnicas apropriadas para assegurar um desenvolvimento econômico, social e cultural constante e o pleno emprego produtivo em condições que salvaguardem aos indivíduos o gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais.
[4] Art. 2º: “Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o, pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. Art. 5º: Nenhuma das disposições do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou de praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhes limitações mais amplas do que aquelas nele previstas. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer País em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau.
[5] Apelação Cível 2004.71.08.010633-8, Segunda Turma, Relator Leandro Paulsen. 25/04/2007.
[6] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=344370&caixaBusca=N
[7] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=327801&caixaBusca=N
[8] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE607692.pdf
Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.
Fonte: Conjur
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