Uma das principais propostas que integram a reforma trabalhista é no sentido de a negociação coletiva estabelecer disposições que prevaleçam sobre a lei.
Evidentemente, as normas coletivas negociadas, quando preveem direitos de forma mais favorável aos trabalhadores, são plenamente aplicáveis, em consonância com a determinação constitucional de melhoria de suas condições sociais (art. 7º, caput, da Constituição da República).
Nesse aspecto, é importante registrar que a Constituição da República prevê as hipóteses em que, de forma excepcional e justificada, em situações de crise econômica, admite-se a flexibilização das condições de trabalho, envolvendo redução de salário, jornada de trabalho e turnos ininterruptos de revezamento (art. 7º, incisos VI, XIII e XIV), com o objetivo de proteção ao emprego.
O aprimoramento das condições de trabalho, adaptando-as à realidade de cada momento, grupo ou setor, é função a ser exercida, com responsabilidade, pelos entes sindicais, por meio da negociação coletiva de trabalho.
Ainda assim, cabe verificar se os instrumentos normativos negociados, de forma ampla e genérica, podem estabelecer condições de trabalho inferiores ao determinado pela legislação trabalhista.
A verdade é que algo nesse sentido apenas tem condições de ser legitimamente defendido em sistemas de plena liberdade sindical.
Isso, entretanto, não é o que ocorre no Brasil, em que se adota a unicidade sindical.
No sistema brasileiro, apenas se admite um único sindicato que represente certa categoria em determinada base territorial, não por escolha dos interessados, mas sim por imposição legal e constitucional[1].
Efetivamente, o art. 8º, inciso II, da Constituição da República, veda a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município.
Além disso, o sindicato representa todos os integrantes da categoria, independentemente da manifestação de vontade dos trabalhadores e empregadores abrangidos, e não apenas os filiados (art. 8º, inciso III, da Constituição da República).
Sendo assim, é evidente que a negociação coletiva de trabalho realizada por sindicato único não possui legitimidade democrática para dispor de forma contrária à lei, em prejuízo dos trabalhadores, mesmo porque estes não têm assegurada a liberdade sindical de constituir e se filiar a outras entidades sindicais concorrentes, relativas à mesma atividade desenvolvida na base territorial.
Portanto, é manifestamente insustentável pretender que a norma coletiva negociada disponha sobre condições de trabalho em patamar inferior ao legal, fora das hipóteses admitidas na Constituição, por meio de entidades sindicais sem efetiva representatividade, a qual exige a ampla liberdade sindical em suas diferentes dimensões, quais sejam: de associação, fundação, filiação, administração, organização e exercício de funções.
O sistema sindical brasileiro, mesmo com a Constituição de 1988, ainda impõe diversas restrições à liberdade sindical, com destaque à mencionada unicidade sindical, à base territorial mínima municipal e à adoção do critério categoria, inviabilizando até mesmo a ratificação da Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho, de 1948.
Não há como se admitir que a convenção e o acordo coletivo estabeleçam direitos em patamar inferior ao legal, e isso se aplique a empregados que nem sequer se filiaram à entidade sindical envolvida, ou mesmo que não tiveram a possibilidade de se associar a sindicato diverso, em razão da ausência de representatividade e legitimidade do ente pactuante que caracteriza o sistema de unicidade sindical.
Desse modo, antes de se propor a prevalência da negociação coletiva em face da legislação trabalhista, é imprescindível a instituição, de forma plena, da liberdade sindical, como requisito para a legitimidade democrática do que vier a ser autonomamente pactuado.
[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 1347-1348.
por Gustavo Filipe Barbosa Garcia
Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidad de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito pela Universidad de Sevilla. Professor Universitário em cursos de graduação e pós-graduação. Advogado e Consultor jurídico. Foi Juiz do Trabalho das 2.ª, 8.ª e 24.ª Regiões, Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e Auditor-Fiscal do Trabalho. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, titular da Cadeira nº 27. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro de Conselhos Editoriais de diversas Revistas e Periódicos especializados na área do Direito. Autor de vários livros, estudos e artigos jurídicos.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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