Exercendo a sua competência para disciplinar as demonstrações financeiras das companhias abertas (Lei 6.404/76, artigo 177, parágrafo 3º; Lei 6.385/76, artigo 22, parágrafo 1º, incisos II e IV), a Comissão de Valores Mobiliários aprovou o Pronunciamento 30/2012 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, que versa sobre “Receitas”.
O pronunciamento define-as como “o ingresso bruto de benefícios econômicos durante o período observado no curso das atividades ordinárias da entidade que resultam no aumento do seu patrimônio líquido, exceto os aumentos de patrimônio líquido relacionados às contribuições dos proprietários” (item 7). Cuidando das receitas pela venda de bens, determina que sejam reconhecidas quando satisfeitas todas as seguintes condições (item 14):
b) a entidade não mantenha envolvimento continuado na gestão dos bens vendidos em grau normalmente associado à propriedade e tampouco efetivo controle sobre tais bens;
c) o valor da receita possa ser mensurado com confiabilidade;
d) for provável que os benefícios econômicos associados à transação fluirão para a entidade; e
e) as despesas incorridas ou a serem incorridas, referentes à transação, possam ser mensuradas com confiabilidade.
Desdobrando a letra “d” acima, aduz o pronunciamento:
“18. A receita só deve ser reconhecida quando for provável que os benefícios econômicos associados à transação fluirão para a entidade. Em alguns casos específicos isso só pode ser determinado quando do recebimento ou quando a incerteza for removida. Por exemplo, pode ser incerto que uma autoridade governamental estrangeira conceda permissão para que a entidade compradora remeta o pagamento da venda efetuada a um país estrangeiro. Quando a permissão for concedida, a incerteza desaparece e a receita deve ser reconhecida. Entretanto, quando surgir incerteza relativa à realização de valor já reconhecido na receita, o valor incobrável ou a parcela do valor cuja recuperação é improvável deve ser reconhecido como despesa e não como redução do montante da receita originalmente reconhecida.”
O exemplo é eloquente, por deixar claro que a inadimplência não decorrerá de ato ou omissão atribuível ao devedor, mas sim ao Estado em que ele está situado. A teor da orientação, o tratamento a ser dado aos créditos varia segundo o momento em que surja a incerteza quanto ao seu recebimento.
Se esta for anterior à operação (primeira parte do item 18, antes da conjunção adversativa “entretanto”), a empresa fica autorizada a sequer registrar as receitas, deixando para fazê-lo após a remoção do obstáculo decorrente do factum principis estrangeiro. Ao contrário, se a incerteza surgir depois da venda, quando as receitas já terão sido devidamente registradas (segunda parte do item 18, de “entretanto” até o fim), a saída indicada é o reconhecimento de despesa correspondente ao valor cujo ingresso é duvidoso — e não mais a redução direta da receita.
Tais procedimentos contábeis tornaram-se possíveis em 2012, eis que a Resolução CVM 692/2012, que aprovou o CPC 30, determina a sua aplicação “aos exercícios iniciados a partir de 1º de janeiro de 2012”. Tratando do reconhecimento de receitas e decorrendo de regras da CVM, essa modificação de índole contábil era destituída de efeitos tributários, à luz do artigo 16 da Lei 11.941/2009, que definia o Regime Tributário de Transição (RTT)[1].
Foi só com a revogação do RTT pela Lei 12.973/2014 (artigo 117, inciso X), com efeitos a partir de 1/1/2015 (1/1/2014 para o contribuinte que tiver feito a opção prevista no art. 75 do diploma), que as práticas contábeis definidas no item 18 do CPC 30 passaram a refletir-se também no campo fiscal — eficácia direta que só não vale para os pontos ressalvados pelo legislador (o que não é o caso) ou tratados em pronunciamentos posteriores a 13/5/2014 (Lei 12.973/2014, artigo 58[2]).
Dando um passo além, cabe observar que a interpretação literal do pronunciamento autoriza a conclusão de que este excepciona a regra de que os custos só são dedutíveis como despesas no período em que reconhecida a receita de venda dos bens para cuja produção contribuíram (CPC 16/2009, item 34). Em outras palavras: a empresa poderia postergar as receitas, mas apropriar desde logo os custos, inclusive para efeitos fiscais.
De fato, o CPC 30 — à diferença do artigo 409 do RIR[3] — não difere a tributação dos lucros, o que exige a escrituração paralela de receitas e despesas e a postergação tão-somente da incidência de IRPJ e CSLL sobre a diferença positiva entre elas. A menção aqui é à escrituração das receitas, sem nenhuma ressalva quanto à apropriação dos custos.
Isso, somado ao caráter protetivo da regra, que vem em socorro de quem se viu prejudicado por ato soberano de país estrangeiro, pode autorizar a leitura radical acima enunciada.
Uma interpretação mais moderada, e de aceitação talvez mais fácil, seria a equiparação do regime em comento àquele válido para os fornecedores do Poder Público nacional, vazado no já mencionado artigo 409 do RIR.
O tratamento fiscal aqui exposto aplica-se, por exemplo, às receitas de exportação de empresas brasileiras para a Venezuela, cuja economia derivou para o colapso, com escassez generalizada de produtos básicos e, no domínio cambial, maxidesvalorização do bolívar em fevereiro de 2015 – a qual, somada à queda no ingresso de divisas decorrente da redução da quantidade e do preço do petróleo exportado pela PDVSA, conduziu a uma virtual impossibilidade de pagamento, pelas empresas venezuelanas, de seus fornecedores no exterior (insuficiência de dólares para a realização das remessas).
O tema de não é dos mais amenos, mas serve para lembrar que, no seu aparente tecnicismo, o Direito Tributário não fecha os olhos à realidade nacional ou mesmo à conjuntura de outros países.
A globalização do Direito é uma realidade inescapável, o que avulta a importância dos grandes congressos de Direito Internacional e Comparado que se realizam mundo afora. O maior de todos em matéria tributária, organizado pela International Fiscal Association, ocorrerá este ano no Rio de Janeiro, de 27 de agosto a 1º de setembro próximos. Eu recomendo!
1 “Art. 16. As alterações introduzidas pela Lei nº 11.638, de 28 de dezembro de 2007, e pelos arts. 37 e 38 desta Lei que modifiquem o critério de reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro líquido do exercício definido no art. 191 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica sujeita ao RTT, devendo ser considerados, para fins tributários, os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo às normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários, com base na competência conferida pelo § 3º do art. 177 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e pelos demais órgãos reguladores que visem a alinhar a legislação específica com os padrões internacionais de contabilidade.”
2 “Art. 58. A modificação ou a adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos emitidos com base em competência atribuída em lei comercial, que sejam posteriores à publicação desta Lei, não terá implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria.
Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, compete à Secretaria da Receita Federal do Brasil, no âmbito de suas atribuições, identificar os atos administrativos e dispor sobre os procedimentos para anular os efeitos desses atos sobre a apuração dos tributos federais.”
3 “Art. 409. No caso de empreitada ou fornecimento contratado, nas condições dos arts. 407 ou 408, com pessoa jurídica de direito público, ou empresa sob seu controle, empresa pública, sociedade de economia mista ou sua subsidiária, o contribuinte poderá diferir a tributação do lucro até sua realização, observadas as seguintes normas (Decreto-Lei nº 1.598, de 1977, art. 10, § 3º, e Decreto-Lei nº 1.648, de 1978, art. 1º, inciso I):
I – poderá ser excluída do lucro líquido do período de apuração, para efeito de determinar o lucro real, parcela do lucro da empreitada ou fornecimento computado no resultado do período de apuração, proporcional à receita dessas operações consideradas nesse resultado e não recebida até a data do balanço de encerramento do mesmo período de apuração;
II – a parcela excluída nos termos do inciso I deverá ser computada na determinação do lucro real do período de apuração em que a receita for recebida. (...)”
Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Fonte: Conjur
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