sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A substituição tributária talvez continue se justificando

O Supremo Tribunal Federal, no último dia 19, mudou radicalmente seu entendimento sobre um dos regimes tributários mais polêmicos do Brasil nas últimas décadas. Ao julgar a ADI 1851, aquele tribunal afirmou expressa e categoricamente que o imposto recolhido por antecipação era “definitivo”, em termos de valores; ou seja, mesmo que a estimativa dos preços pelos quais os produtos são vendidos fosse maior que o valor efetivo dessas vendas, os Estados não precisariam devolver a diferença (equivalente ao imposto antecipado a maior) aos contribuintes substituídos. Não obstante ali não se tivesse decidido ainda se os Estados tinham a faculdade de devolver a diferença, uma coisa ficou definida, obrigados a isto eles não eram.

Com o julgamento do RE 593.849, decidiu-se exatamente o contrário. Os Estados agora são obrigados a devolver esta diferença entre o imposto antecipado com base em preços estimados e o imposto considerado devido com base nos preços efetivamente praticados.

O efeito prático e imediato disso é quase intuitivo: o universo de contribuintes sujeitos à fiscalização vai se multiplicar. Se antes o aparato fiscalizador do Estado centrava suas atenções naqueles primeiros agentes da cadeia de cada produto (os substitutostributários), agora vai precisar também fiscalizar todos os demais elos (os substituídos).

Em um exemplo bem simples: antes os Estados fiscalizavam os fabricantes de cervejas, já que eles recolhiam o imposto devido por si e por todos os demais comerciantes da cadeia, como distribuidores e varejistas, inclusive restaurantes e bares. Hoje, sempre que estes varejistas venderem aquela cerveja por preços inferiores ao estimado para antecipação do imposto, poderão recuperar esta diferença e, claro, o farão, em regra, se creditando destes valores em sua escrita fiscal e os compensando com seus próprios débitos de imposto.

O ponto é: quantos fabricantes de cerveja existem no Brasil? E quantos supermercados, mercearias, restaurantes e bares existem no país? Esses últimos todos poderão buscar a recuperação da diferença de imposto e, portanto, os valores que apurarem e recuperarem precisarão agora ser fiscalizados. Ainda que se considerem realidades como o avanço da tecnologia da informação e as escriturações digitais, contábil e fiscal, é inegável que os órgãos de fiscalização tributária terão um aumento de demanda brutal e a complexidade do sistema como um todo será também intensificada.

Em outros termos, a praticabilidade da tributação, ao menos sob certa perspectiva, será fortemente mitigada pelo “novo regime”. Sim, porque praticabilidade pode ser encarada sob duas perspectivas, próximas, mas não idênticas. A praticabilidade tributária pode significar tornar a apuração e arrecadação mais prática, mais simples, mais eficiente, mas também pode significar torná-la possível, tornar exequível o que, de outro modo, seria simplesmente impossível. Sob esta última perspectiva, impede-se a sonegação. Sob a primeira, torna-se a prática do sistema mais simples.

É claro que os Estados cometeram nos últimos 10 anos abusos quase chocantes (basta mencionar terem tornado substitutos tributários varejistas que vendem a consumidores finais e, portanto, não têm umsubstituído, isso mesmo é quase um exercício de surrealismo). Mas, tirando esses e vários outros abusos, a substituição poderia sim simplificar o sistema. Com a obrigatoriedade da devolução de diferença, esta simplificação, se não é anulada, é fortemente reduzida. Em suma: a devolução não só aumenta o número de contribuintes que precisam ser fiscalizados, como intensifica muito a complexidade do sistema.

Mas, uma coisa não se pode negar. Mesmo que todos os supermercados, mercearias, bares e restaurantes do Brasil agora precisem ser fiscalizados em relação à cerveja que vendem, as chances deles sonegarem continuam bem pequenas. Sim, porque o imposto relativo às suas operações continua sendo recolhido antecipadamente pelos fabricantes, que lhes cobram este reembolso junto com o preço.

Este é um cenário que evidencia aquilo que tenho defendido ultimamente[1], a praticabilidade é termo que denota dois atributos distintos dos regramentos tributário sem geral: praticabilidadesimplificadora e praticabilidade viabilizadora. Elas podem sim não coincidir. Agora ficou evidente que combater a sonegação pode ser algo bem diferente de simplificar o sistema.

A nova feição que o STF deu ao regime de substituição tributária só tem praticabilidade viabilizadora, mas não a simplificadora.

Uma das justificativas para este tipo de regramento, de certo modo, se perdeu. E isto precisa agora ser objeto de profundas reflexões por aqueles responsáveis pela política fiscal. O tipo de regramento em discussão continua cumprindo sua função de combate à sonegação, mas não cumpre mais sua função simplificadora, ao contrário, provavelmente até a contraria.

Sabendo tratar-se de um sistema que muitas vezes restringe tanto uma série de direitos fundamentais dos contribuintes e que não mais o faz sob a justificativa simplificadora, é preciso saber até que ponto ele poderá ser justificado “apenas” com a justificativa do combate à sonegação, afinal, quando o STF decidiu em 2002, que que os Estados não eram obrigados a devolver a diferença de imposto apoiou-se igualmente nessas duas justificativas juntas, sem que desse qualquer sinal sobre qualquer prevalência ou maior importância de uma em relação à outra. Por isso, a pergunta que fica é: o combate à sonegação, sozinho, é justificativa suficiente para um regime com tantos contrapontos negativos?
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[1] VIEIRA DA ROCHA, Paulo Victor. Teoria dos direitos fundametais em material tributária: restrições a direitos do contribuinte e proporcionalidade. No prelo.

Por Paulo Victor Vieira da Rocha
Advogado, Professor Adjunto da Universidade do Estado do Amazonas e Coordenador do Programa de Especialização em Direito Tributário do IBDT.

Fonte: Jota

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