terça-feira, 16 de junho de 2015

16/06 O novo CPC e a desconfiança nos juízes

Fato, valor e norma. Miguel Reale, na sua teoria tridimensional do direito, realçava como a realidade (mundo dos fatos) forma valores e influencia a criação e a aplicação de normas. O direito decorre do fenômeno social e, portanto, os valores cultivados em determinado contexto são determinantes para o modo de ser e, principalmente, para a aplicação dos seus enunciados.

É bem verdade que, quando analisamos o Novo Código de Processo Civil, vemos um grande número de influências distintas (algumas até inconciliáveis), cada qual em um diferente artigo. O Novo CPC é pródigo na absorção dessas influências, em visão acentuadamente pragmática, pelo que inclusive se debate sobre sua matriz ideológica.

Já dissemos nesta coluna, em artigo anterior de um dos autores deste texto (NCPC: ideologia e museu de grandes novidades), que o Código busca uma ideologia no meio de grandes contradições. Mas, olhando de perto, e especialmente se comparamos com o Código de 1973, um conjunto de dispositivos chama atenção para um fenômeno completamente novo: a desconfiança legislativa nos juízes.

Não se trata do “populacho”, que generaliza casos isolados e critica os juízes e a magistratura. Tampouco de denúncias pontuais, fundamentadas ou não, que cuidem de irregularidades de conduta. Muito menos da crítica aos benefícios dados de acordo com o direito, mas de questionável consenso social. Nada disso. Esta desconfiança é antiga e dela não trataremos. Nem para discordar, nem para concordar.

O nosso ponto é outro. Falaremos de preceptivos legais que têm como premissa a falta de confiança na conduta ordinária dos magistrados. Quem “diz” não confiar nos juízes agora é a própria lei processual civil. Em alguns dispositivos, de modo evidente. Em outros, de modo dissimulado. Os exemplos abaixo parecem inequívocos na exposição desse fenômeno.

1. O art. 905, parágrafo único, do CPC/15, de todos, é o mais explícito dos exemplos. Diz ele: “durante o plantão judiciário, veda-se a concessão de pedidos de levantamento de importância em dinheiro ou valores ou de liberação de bens apreendidos”. Evidentemente, como regra geral, é desaconselhável a tomada de decisões de tal natureza em plantão judiciário, quando o juiz natural do processo está ausente. Mas a norma representa desconfiança grave, tanto no sentido de se coibir a prática de ilícitos (enquanto o resto do Judiciário “dorme”), quanto no sentido de que, nos casos absolutamente excepcionais em que tais medidas se julgarem legítimas, não ser possível confiar nos juízes para efetivar tal distinção.

2. O artigo 12 do CPC/2015 também é significativo. Sobre o pretexto de preservar a isonomia, determina que a sentenças e os acórdãos sejam proferidos em ordem cronológica de conclusão. Ora, aplicar a isonomia é tratar os diferentes na exata medida da sua diferença. E é o juiz, diante das nuances do caso concreto, que deve fazer esse juízo de distinção: julgando antes casos similares para gerar economia; elegendo processos prioritários conforme as características da parte e do conflito a bem do estabelecimento da igualdade material (não a formal ortodoxamente tutelada pelo dispositivo); e exatamente, naqueles casos que não merecem distinção, julgá-los na ordem de chegada. Isso é o que se espera de um juiz comprometido com os valores republicanos.

No entanto, a lei não mais confia no juiz para fazer esse julgamento, conferindo comando estanque, frio, rígido, e obrigando-o a julgar na ordem cronológica casos absolutamente distintos, conforme a chegada em seu gabinete. Ou seja, a lei, que confia no juiz para o julgamento do próprio conflito, contraditoriamente não confia no juiz para fazer escolhas quanto à racionalidade na ordem de julgamento das causas, comprometendo a gestão da Justiça, conforme já apontado nesta mesma coluna por um dos autores deste texto (O novo CPC e o fim da gestão da Justiça).

3. Outros dois dispositivos que revelam o vacilo da legislação com os juízes – e nesse caso com o Poder Judiciário como um todo –, são os dos artigos 334, § 12 e 357, § 9º, ambos do CPC/2015. O primeiro, estabelece que a audiência de conciliação/mediação, realizável nos processos que seguirem o rito comum, só poderá ser marcada, pelo setor próprio ou pelos próprios juízes, com intervalo mínimo de 20 minutos entre o início de uma e o início da seguinte. O segundo – ainda mais grave – cogentemente anuncia: “juízes, vocês estão proibidos de designar audiência de saneamento do processo em intervalo menor do que 01 (uma) hora”. Tem-se, então, que CPC/2015 não permite mais que os juízes, ou o setor próprio para a realização de mediações/conciliações, controlem sua pauta de audiências, calibrando-a conforme as particularidades da causa (complexidade do conflito, qualidade das partes, etc.). Não que seja necessariamente correto a designação de audiências de cinco em cinco minutos, ou que o saneamento seja feito, em audiência, sem qualquer tipo de debate. Mas o que salta aos olhos é a necessidade de positivação desta regra. Ademais, já basta a regra que dispensa as partes da audiência, quando transcorrido mais de trinta minutos para seu início (artigo 362, inciso III), para evitar a prática de atrasos injustificados decorrentes da má gestão da pauta.

4. Não é lógico obrigar o vencedor da ação em primeira instância a esperar o tempo do duplo grau de jurisdição quando o juiz já declarou a existência do direito postulado. A sentença deveria ter em regra, assim, executividade imediata, mesmo que em caráter provisório. Afinal, em um sistema de Justiça civil que se deseja (e se projeta) efetivo, a sentença não pode ter o mesmo efeito de um parecer; o primeiro grau não pode ser mera instância de passagem; e o juiz monocrático não pode ser responsável, simplesmente, por decidir quem vai recorrer de sua decisão.

Exatamente por isso a expectativa legislativa era a de supressão da suspensão automática (ex lege) dos efeitos da sentença apelável, nos moldes do que já ocorre no recurso ordinário da Justiça do Trabalho (art. 899 da CLT), na apelação nos processos regidos pela Lei de Locações (art. 58, V, da Lei n. 8.245/91), Lei de Ação Civil Pública (art. 14 da Lei 7.347/85) e Juizados Especiais Cíveis, Federais e da Fazenda Pública (art. 43, da Lei n. 9.099/95). A atribuição do efeito suspensivo restaria, assim, ao ponderado arbítrio do juiz, que o concederia, apenas, nos casos de recurso com fundamentação consistente e risco de dano grave pela possibilidade de início da execução provisória.

Contrariando, contudo, (i) a tendência nacional e internacional a respeito da temática; (ii) a proposta do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil (IBDP) gestada desde a década de 1990; (iii) a sugestão da Comissão de Juristas nomeada para a elaboração do anteprojeto do CPC (art. 908); (iv) o próprio projeto aprovado no Senado (art. 949); e (v) o coro quase que uniforme da doutrina especializada no assunto; o Novo CPC, a partir da versão aprovada pela Câmara, manteve a vetusta regra do CPC/73 (art. 520, caput), que, como regra geral, torna automaticamente sem efeito a sentença de primeiro grau sujeita a recurso de apelação (art. 1.012).

Mesmo havendo dados estatísticos seguros de que, de modo geral, o número de reformas das decisões de 1º grau é consideravelmente menor dos que o de manutenções, os cultores do Novo CPC deixaram a seguinte mensagem para os juízes de primeiro grau: “não confiamos em vocês e, por isso, vossas decisões não podem valer imediatamente”.

5. A onda de desconfiança na magistratura é acentuada, ainda, pela recorribilidade quase geral das interlocutórias e apelações sem filtros. É interessante notar que nenhuma decisão do juiz, nenhuma (repita-se), é definitiva por si só no sistema processual. Mais cedo ou mais tarde, por mais irrelevante que seja a causa, tudo é passível de revisão na via recursal e sem quaisquer limites. Inclusive quanto à matéria fática, mesmo se admitindo que é o juiz quem se encontra mais próximo das provas produzidas. Quem decide mesmo é o tribunal e, alguns casos, apenas os superiores.

6. Por fim, há desconfianças que não brotam originariamente da lei, mas da interpretação que alguns cultores do Novo CPC têm dado aos seus dispositivos. Exemplificativamente, a admissão de limitação dos poderes instrutórios do juiz, ou da imposição do dever de produzir prova reputadas inúteis, através de convenção processual atípica (art. 190 do CPC/2015); a afirmação, já reputada incorreta por um dos autores deste texto (O livre convencimento motivado não acabou no Novo CPC), de que o juiz não teria mais, no Novo CPC, liberdade para, fundamentadamente, valorar a prova do processo.

Em um sistema republicano de Justiça a limitação dos poderes do juiz é essencial. A questão que se coloca aqui, no entanto, é a natureza de tais limitações, que não devem e não podem estar pautadas na lógica da desconfiança.

Daí a necessidade de revisitarmos os fatos e os valores que levaram à positivação das normas citadas no Novo Código de Processo Civil, especialmente, quanto à viabilidade de um sistema que não confia nos indivíduos dotados da missão de aplicar o direito ao caso concreto.

Até porque, se de fato temos defeitos dessa gravidade no mundo dos fatos, o texto da norma não será capaz de remendá-los, e outras aproximações para os problemas terão de ser cogitadas. Como apontava Carnelutti, o resultado do processo depende muito mais da qualidade e da quantidade dos instrumentos, pessoas e bens de que possa dispor, do que propriamente da qualidade das normas processuais que regulem o seu emprego.

*Andre Vasconcelos Roque é Doutor e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor Adjunto em Direito Processual Civil da FND-UFRJ. Membro do IIDP, IBDP, CBAr, IAB e CEAPRO. Advogado.

* Fernando Gajardoni é Professor Doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Doutor e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP (FD-USP). Juiz de Direito no Estado de São Paulo.

*Marcelo Pacheco Machado é Doutor e mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP. Professor da FDV – Faculdade de Direito de Vitória. Advogado.

*Zulmar Duarte é advogado. Professor. Pós-Graduado em Direito Civil e Processual Civil. Membro do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) e do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo).

Fonte: Jota

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