Cumprir a lei é obrigação de todos; uma situação jurídica consolidada não poderá ser revista após o passar de anos; e na dúvida sobre a autoria ou materialidade de um crime, não há por que se condenar alguém.
Esses são apenas três dos setenta e oito direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição da República de 1988. No dia a dia do mercado financeiro, esses mandamentos também devem ser observados. No dia 27 de maio, foi exatamente isso que fez o Conselhinho (Conselho Administrativo de Recursos do Sistema Financeiro Nacional). Absolveu, aplicando o princípio do in dubio pro reo, uma empresa de auditoria independente e dois de seus auditores.
Nota de rodapé: os auditores independentes são profissionais com formação contábil que têm como objetivo principal validar ou não resultados financeiros de uma empresa. No caso de a empresa possuir ações em bolsa de valores, o relatório elaborado por um auditor independente indica aos demais acionistas, principalmente aos minoritários, a verdadeira situação econômica da empresa auditada.
Por supostamente a empresa de auditoria e seus auditores não terem verificado o descumprimento das disposições legais e regulamentares aplicáveis às atividades da entidade auditada, o colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) havia lhes condenado pela emissão de parecer sem ressalva em relatório de revisão limitada quanto às informações trimestrais encerradas em 30.6.08 de uma companhia aberta.
Nota de rodapé: pelo teor da Resolução CFC nº. 830, o parecer sem ressalva implica afirmação de que, tendo havido alterações em procedimentos contábeis, os efeitos delas foram adequadamente determinados e revelados nas demonstrações contábeis.
Segundo a CVM, a infração administrativa teria ocorrido a partir da adoção de procedimento contábil inadequado quando da amortização integral do ágio oriundo de expectativa de rentabilidade futura em companhia controlada, em função de sua incorporação. O ágio, aqui, pode ser entendido como o valor adicional pago por um ativo.
Nota de rodapé: o artigo 248, da Lei da Sociedades Anônimas, prevê o método de equivalência patrimonial nos casos de avaliação do investimento em empresas que compõem um mesmo grupo econômico. Pelo método de equivalência patrimonial, um investimento em coligada e em controlada é inicialmente reconhecido pelo custo, e o seu valor contábil será aumentado ou diminuído pelo reconhecimento da participação do investidor nos lucros ou prejuízos do período, gerados pela investida após a aquisição. Não há, contudo, regra expressa para a contabilização do ágio.
No âmbito do Conselhinho, em sede recursal, ficou decidido que o conteúdo no parágrafo de ênfase ao relatório produziu o mesmo efeito prático de eventual ressalva em parecer emitido por auditor independente, com fundamento no artigo 14, § 2º, letra “a”, da IN CVM nº. 247/96.
“A contabilidade é uma foto. Na academia, aprendemos que, a depender da sistemática adotada para a realização da apuração contábil, há duas fotografias: uma boa e outra ruim. No caso, a empresa de auditoria adotou a pior delas, o que demonstrou a correta avaliação dos investimentos”, registrou o Conselheiro Antonio Augusto de Sá Freire Filho, representante do Ministério da Fazenda.
O Conselhinho entendeu, portanto, que apesar de não existirem ressalvas no parecer, os auditores não deixaram de levar ao conhecimento dos acionistas a correta avaliação dos investimentos feitos pela companhia. Assim, por maioria de votos e aplicando o princípio do in dubio pro reo, absolveu a empresa de auditoria independente e dois de seus auditores.
Na dúvida, é melhor absolver.
Por Tiago Severo - Professor da FGV-RJ
Fonte: Jota
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