Que decisão deve ser proferida em um julgamento quando ocorre empate na votação? Suponhamos um órgão colegiado composto de três membros, e que cada um adote posição distinta quanto ao tema em debate — por hipótese: um voto reconhecendo o direito do autor, um voto reconhecendo o direito do réu e um voto extinguindo o processo em razão de uma falha processual. Como decidir o caso?
Esta é uma questão que se coloca desde a origem dos tempos, conforme bem apontou Regis Fernandes de Oliveira em texto inédito. Na Grécia clássica este tipo de preocupação já estava presente, como se pode ver na peça Eumênides, de Ésquilo, representada pela primeira vez 458 anos antes de Cristo. Nessa peça de teatro, Orestes é perseguido pelas Fúrias por ter matado sua mãe (Clitemnestra), a qual havia matado seu marido e pai de Orestes (Agamênon). Orestes é réu confesso, mas pede absolvição por ter agido para vingar a morte de seu pai, cometida pela mãe. Levado à presença de Minerva, deusa da sabedoria, ela cria e convoca um tribunal dentre os habitantes da cidade de Atenas (Aerópago) para julgar o acusado, e menciona “Serei a última a pronunciar o voto, e o somarei aos favoráveis a Orestes. Para que este vença, basta que os votos se dividam igualmente”. Não precisa ser nenhum oráculo para adivinhar que este julgamento acabou empatado e o voto da deusa Minerva foi pela absolvição do acusado. Surge daí a expressão “voto de minerva” que é a regra usada nos órgãos colegiados para decidir um processo em caso de empate.
Da peça de teatro acima resumida pode-se tirar pelo menos duas conclusões, que são adotadas pelo Direito contemporâneo. A primeira é que, em caso de empate, a decisão caberá a quem presidir a corte. A segunda indica que, em algumas matérias jurídicas, havendo empate, a decisão de quem preside não é discricionária, mas vinculada a uma das partes em litígio. Ou seja, quem presidir a Corte não poderá decidir a seu bel prazer, devendo fazê-lo em um sentido pré-estabelecido.
Em matéria penal, por exemplo, é conhecido o aforisma do in dubio pro reo, fazendo com que o Estado (representado pelo Ministério Público) deva comprovar além de qualquer dúvida razoável a culpa do acusado, para condená-lo. Havendo empate na decisão, o réu é absolvido. Isso ocorreu recentemente no julgamento do mensalão, sem que tenha se constituído em uma novidade, exceto para os jornalistas jurídicos de plantão. Para que não reste dúvida: é pacífico que em matéria penal o voto de minerva será sempre pela absolvição do acusado — tanto assim que é até mesmo dispensável sua declaração, pois, havendo empate, pressupõe-se absolvição, uma vez que o voto de minerva não poderá ser dado em outro sentido. Pode-se aplicar esta mesma teoria para o direito tributário e financeiro? Entendo que sim, conforme já expus em texto mais detalhado[1]. Observe-se que estas áreas do Direito, em certos aspectos/procedimentos, também possuem caráter acusatório.
Vejamos como ocorre a formação de um título executivo extrajudicial em favor do Fisco. A autoridade fiscal identifica a possível existência de uma irregularidade tributária e a aponta ao contribuinte (o acusa de tê-la cometido) através de um Auto de Infração para que este se defenda. Este embate é decidido por uma autoridade fiscal incumbida de apreciar esta matéria — que pode ser singular ou coletiva, a depender do ente federativo em questão. Havendo recurso, a segunda instância administrativa é sempre composta por órgãos colegiados paritários de auditores fiscais e contribuintes. Ocorrendo empate em qualquer uma dessas instâncias, é possível aplicar algumas das conclusões acima? O voto de minerva do presidente daquela corte administrativa será necessariamente vinculado à absolvição (desoneração) ou discricionário (o que permitiria ao presidente votar conforme sua convicção)?
Entendo que em caso de empate no julgamento de matéria tributária, por cortes administrativas ou judiciais, a decisão deverá ser obrigatoriamente vinculada à absolvição (desoneração), à semelhança do que ocorre em Direito Penal, em face da identidade entre as duas situações. Tal como no Direito Penal, no Direito Tributário o Estado acusa o contribuinte/réu alegando que este cometeu uma irregularidade contra o patrimônio do Fisco (ou, no caso penal, contra a vida ou outro bem que essas normas assegurem). O Fisco terá que fazer prova de que suas alegações são verdadeiras, e contribuinte/réu só poderá ser condenado em caso de haver a mais completa certeza da incorreção de seu procedimento. Caso a dúvida persista — ter havido empate no julgamento — a decisão só pode ser pela desoneração/absolvição do contribuinte/réu injustamente acusado. Observe-se que nesta situação não se pode falar em voto de minerva pró-Fisco; ele necessariamente deve ser pró contribuinte. Trata-se de uma decisão que vincula o voto de minerva do presidente em favor do contribuinte, não lhe permitindo outra decisão que não seja o desempate em favor da parte acusada, mas que não teve contra si a maioria dos votos ordinários daquela corte — ou seja: in dubio pro contribuinte.
Observe-se que tal conclusão atinge em cheio os Tribunais Administrativos, em especial o CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), e seus correlatos estaduais e municipais, em que predominam o entendimento de que o voto de minerva é discricionário, e não vinculado ao contribuinte, em caso de empate. Normas editadas nesse sentido violam o princípio da presunção de inocência, que preside a acusação — tanto assim que esta sempre deverá ser cabalmente comprovada.
O mesmo esquema lógico deve ser aplicado aos julgamentos dos Tribunais de Contas, que apontam seus dedos para os administradores indicando que existem irregularidades a serem sanadas em suas prestações de contas, sob pena de sanções administrativas, financeiras e até mesmo eleitorais.
A procedência de qualquer acusação deve ser reconhecida além de qualquer dúvida razoável, e a ocorrência de um empate é uma clara demonstração de que este patamar não foi ultrapassado, motivo pelo qual o voto de minerva deve ser necessariamente dado no mesmo sentido da Minerva grega: pela absolvição. Por certo, esse entendimento não é aplicável quando se discute controle de constitucionalidade, seja pela via direta ou difusa, que possui outro enquadramento.
Assim, em toda disciplina jurídica em que as partes estiverem em desequilíbrio, e em que uma acuse a outra do cometimento de alguma irregularidade, havendo empate, o voto de minerva sempre deverá ser vinculado à absolvição da acusação apontada, não podendo ser ministrado de forma discricionária. Esse entendimento abrange não só o Direito Penal, locus habitual desse entendimento desde priscas eras, mas também as matérias tributária e financeira, conforme exposto. Em síntese, in dubio pro acusado, o que implica em dizer pro reo e pro contribuinte, dentre outros “acusados” em geral.
[1] Fernando Facury Scaff Processo Fiscal, Princípio Inquisitivo e Teoria da Prova ou Por que a Execução Fiscal deve ter como Legislação Subsidiária o CPP e não o CPC, Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. Rocha, Valdir de Oliveira (org.). SP: Editora Dialética, 2010.
por Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.
Fonte: Conjur
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