A aposentadoria aos 60 anos de uma pessoa que começou a trabalhar no campo aos sete não deveria ser difícil, tendo em vista o tempo de serviço de sobra e o fato de a aposentadoria em questão fazer parte de um regime especial, a dos trabalhadores rurais.
Entretanto, a comprovação do tempo de serviço na área rural nem sempre é fácil. No caso de João de Matos, trabalhador rural desde a infância, o obstáculo foi a comprovação de todo esse tempo. Caso houvesse documentação, seriam 53 anos de serviço, superando com folga o mínimo exigido.
“Quando tinha sete anos, eu levava a janta pro meu pai na roça, e depois que ele terminava de jantar já deixava uma beiradinha de terra pra eu capinar. Não podia demorar muito. Brincar era só no domingo. Era desse jeito que era a vida”, relata João de Matos, atualmente aposentado em virtude de decisão judicial.
Todo esse tempo trabalhando na roça não foi devidamente documentado. Sua chácara (onde até hoje trabalha) só passou para o seu nome após a morte do pai, em 2007. Até então, ele não tinha nenhuma comprovação documental da atividade rural desempenhada.
Para conseguir provar o tempo de serviço, João contou com a ajuda do sindicato, juntou notas fiscais, deu depoimento ao INSS e, após a decisão administrativa de indeferimento por falta de comprovação do tempo de serviço, viu seu caso chegar à Justiça.
Depoimentos sub judice ajudaram a comprovar o que todos os familiares sabiam: seu João trabalhava e sempre trabalhou no campo. Diversos casos como o dele chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), pondo em debate os critérios para demonstração do atendimento aos requisitos da aposentadoria.
Prova testemunhal
Em 2016, a Primeira Seção do tribunal aprovou a Súmula 577, segundo a qual é possível reconhecer o tempo de serviço rural anterior ao documento mais antigo apresentado, desde que amparado em convincente prova testemunhal colhida sob contraditório. Foi exatamente o caso de João de Matos.
Em outros julgamentos, como nas Ações Rescisórias 857 e 3.921, os ministros discutiram a produção de provas com base em testemunhos e em documentos, para o início do marco temporal da atividade rural para fins de aposentadoria.
Tal situação é a vivida atualmente pela esposa de seu João, Maria Aparecida de Matos. No processo de aposentadoria em trâmite, o problema, segundo ela, é conseguir comprovar que durante toda a sua vida de casada (mais de 30 anos) trabalhou na roça com o marido.
“O meu trabalho sempre foi aqui, mas conseguir provar isso é difícil”, comenta dona Maria ao explicar que semanalmente conversa com a advogada do sindicato para saber em que ponto está o seu processo.
Assim como ocorreu com o esposo, ela espera que seu caso possa ser solucionado tendo como amparo a Súmula 577 do STJ, já que os depoimentos de compradores, fornecedores e até mesmo de familiares são essenciais para atestar o tempo de serviço.
Carteira assinada
O trabalho formal fez parte da vida de João e Maria após uma crise na plantação de café no Espírito Santo, em 1988. O casal vivia e trabalhava em uma chácara da família no estado quando a crise chegou à lavoura.
Ambos acabaram procurando emprego de carteira assinada: João, em uma fazenda; e Maria, no hotel fazenda estabelecido na propriedade.
“Eu trabalhava no pesado, fazendo de tudo. A mesma coisa com a minha mulher”, lembra João sobre a experiência de ser empregado formal.
A comprovação do tempo de serviço na lavoura, seja mediante prova exclusivamente documental ou com apoio em testemunhos, nos termos da Súmula 577, não é importante apenas para a aposentadoria rural.
Ao analisar um caso de aposentadoria híbrida no REsp 1.367.479, o ministro Mauro Campbell Marques destacou que inúmeros segurados da Previdência Social que trabalharam no meio rural por longo tempo posteriormente buscam melhores condições de vida na área urbana. Segundo ele, ao fazer o cômputo do tempo de serviço para fins de aposentadoria, o tempo de trabalho rural não pode ser ignorado.
Segurança familiar
João conta que, aposentado, está mais tranquilo, mas não parou completamente de trabalhar. “Agora não aguento mais muita coisa, mas parado não dá pra ficar” – comenta o produtor ao supervisionar o crescimento de tomates, alface e outros hortifrutigranjeiros que cultiva em sua propriedade, na zona rural de Planaltina (GO).
Ao falar sobre a aposentadoria, João de Matos destaca a importância da proteção social para quem dedica a vida ao campo.
“Quem trabalha na roça é quem mais sofre no Brasil. O trabalhador pega sol, pega chuva, e ele está ali do mesmo jeito. Não pode mexer na previdência da área rural”, diz ele, diante das notícias sobre a reforma em discussão no Congresso Nacional.
O agricultor lembra que já de pequeno percebeu a importância da aposentadoria no meio rural, quando viu seu avô dar uma festa ao se aposentar, na década de 60. Depois viu o pai completar 60 anos e se aposentar também, em 1990, o que melhorou a qualidade de vida da família.
Questionados sobre o futuro que enxergam para os netos, João e Maria destacam a importância do estudo, mas sem desprezar as origens.
“Eu quero que eles estudem, que tenham qualificação, mas que não esqueçam da roça”, afirma o produtor. “Espero que eles gostem um pouco. Todo mundo depende da roça, senão ninguém come nada.”
A série 30 anos, 30 histórias apresenta reportagens especiais sobre pessoas que, por diferentes razões, têm suas vidas entrelaçadas com a história de três décadas do Superior Tribunal de Justiça. Os textos são publicados nos fins de semana.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):
AR 857
AR 3921
REsp 1367479
Fonte: STJ
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