Semanas atrás, a Fiesp promoveu um encontro sobre o tema Tributação e Concorrência, com enfoque nos impactos da sonegação fiscal no âmbito concorrencial. Tive a honra de ser convidado a falar no evento atendendo a um gentilíssimo convite do professor Celso Campilongo (USP), que, em conjunto com Ruy Coutinho, coordenam o grupo de estudos de Direito Concorrencial daquela instituição, cujo diretor jurídico, Hélcio Honda, também esteve presente.
Foi muito enriquecedor ouvir os palestrantes Alexandre Barreto (presidente do Cade), Polyanna Vilanova (conselheira daquela autarquia), Paulo Ricardo de Souza Cardoso (secretário adjunto da Receita Federal), Antonio Claret Junior (procurador-chefe da Defesa da 3ª Região/PFN) e Roberto Livianu (promotor público e presidente do instituto Não Aceito Corrupção).
Há carência de análise concorrencial no sistema tributário, o que se potencializa em um país federativo, no qual três níveis de governo podem cobrar tributos e conceder renúncias fiscais. O foco central do problema não está na questão da liberdade empresarial, mas na isonomia concorrencial no mercado, pois a mão invisível não funciona se o governo usa o dedo de forma injustificadamente distorcida.
Existe um aspecto que diz respeito aos impactos da sonegação fiscal na concorrência, que tem forte relevância e deve ser tratada no âmbito dos órgãos de fiscalização tributária (Receita Federal, Secretarias de Fazenda ou Finanças estaduais e municipais) e de julgamento (Carf, tribunais administrativos estaduais e municipais, Poder Judiciário) e, quando couber, no âmbito penal (polícia, Ministério Público). De certa forma, o STF já decidiu em favor da concorrência em uma situação de sonegação contumaz (caso American Virgínia, RE 550.769, relator ministro Joaquim Barbosa).
Outro aspecto a ser analisado, e sobre o qual me alonguei um pouco mais naquele evento, diz respeito aos impactos das renúncias fiscais, que podem ser legais e legítimas, mas podem desequilibrar a necessária concorrência empresarial.
O Brasil tem diversos regimes fiscais diferenciados, tais como o MEI, o Simples e o lucro presumido com altas margens, e que nem sempre são usados ou pensados no sentido de manutenção da isonomia concorrencial.
No mesmo sentido, verificam-se os incentivos fiscais de ICMS concedidos a empresas específicas, e não ao um setor, o que distorce fortemente a concorrência – diversos Estados agem assim, mesmo amparados pelo Confaz. Isso vai se intensificar após o cumprimento das diversas etapas previstas na LC 160, pois, em certo momento será possível até mesmo pedir isonomia de tratamento fiscal entre estados da mesma região, mas que não concorrem entre si – não há nenhum estudo sobre mercado geograficamente relevante para a aplicação dessa norma.
Também se vê nos incentivos fiscais regionais um potencial distúrbio concorrencial, como os concedidos no âmbito da Sudam e da Sudene, pois dirigidos a empresas e não a setores econômicos.
Existem incentivos fiscais mal desenhados para fins concorrenciais, tais como a utilização de PIS e Cofins para a zona franca de Manaus envolvendo a concorrência entre o mercado interno e o internacional, além de diversos aspectos das desonerações fiscais das Zonas de Processamento de Exportações.
Existem muitos subsídios e incentivos econômicos e creditícios mal desenhados para fins concorrenciais em setores específicos. Um exemplo se vê na questão da exigência de conteúdo nacional para a indústria petrolífera, pois o governo flexibilizou a exigência, o que é possível, mas a vem impondo de forma retroativa, sem analisar que isso gera um distúrbio concorrencial com as empresas que investiram para cumprir essa norma e agora veem novos atores econômicos disputando espaço nos contratos em curso – essa é uma matéria que mereceria uma coluna específica para melhor análise.
Em todos esses casos a norma que concede o benefício fiscal ou econômico é legal, mas, ou gera, ou tem o potencial de gerar, distúrbios concorrenciais. Esse é um ponto cego nas análises que vêm sendo desenvolvidas isoladamente por diversas disciplinas jurídicas – com o registro das honrosas e pontuais exceções. Os tributaristas analisam a norma tributária isoladamente, em uma relação contribuinte-Fisco; os jusfinancistas analisam as renúncias fiscais pela ótica do Estado e seu impacto nos cofres públicos; e os estudiosos da área concorrencial olham sempre os desvios de conduta dos concorrentes privados, sem se deter com a devida atenção aos impactos das renúncias fiscais nessa relação. Diria mesmo que a relação vertical, entre contribuintes e Estado, tem o potencial de acarretar desvios nas relações horizontais entre partes privadas, entre concorrentes. Assim, mesmo sendo plenamente legais os benefícios fiscais e econômicos concedidos pelo Estado (relação vertical), há sempre um potencial de desequilíbrio nas relações horizontais, isto é, entre empresas concorrentes.
Dessa constatação surge uma dúvida: o que fazer quando esse potencial desequilíbrio concorrencial se identifica em concreto? Quem deve agir, isto é, fiscalizar e julgar?
O artigo 146-A da Constituição[1] prevê a edição de uma lei complementar para regular essa matéria, o que ainda não ocorreu.
O que fazer enquanto essa lei complementar não surge?
Pelas normas atuais não me parece que esse assunto seja da alçada dos órgãos de fiscalização tributária. A relação deles com os contribuintes é vertical e, como padrão, nas questões envolvendo incentivos fiscais, pautada em normas editadas de forma quase individualizada. Para os Fiscos, é difícil até mesmo identificar as relações horizontais, concorrenciais, decorrentes de sua atuação.
Os órgãos de controle financeiro e orçamentário não têm alçada para tratar dessa matéria, cingindo-se a analisar o impacto das renúncias fiscais sobre os cofres públicos – outra relação vertical.
A alternativa que vislumbro está na Lei 12.529/11, artigo 13, que trata da competência da Superintendência Geral do Cade, literis: ”II - acompanhar, permanentemente, as atividades e práticas comerciais de pessoas físicas ou jurídicas que detiverem posição dominante em mercado relevante de bens ou serviços, para prevenir infrações da ordem econômica, podendo, para tanto, requisitar as informações e documentos necessários, mantendo o sigilo legal, quando for o caso”.
A norma acima transcrita deve ser lida em conjunto com a do mesmo artigo 13, VI, verbis: “a) requisitar informações e documentos de quaisquer pessoas, físicas ou jurídicas, órgãos, autoridades e entidades, públicas ou privadas, mantendo o sigilo legal, quando for o caso, bem como determinar as diligências que se fizerem necessárias ao exercício de suas funções”.
A leitura conjunta dos incisos acima outorga competência à Superintendência do Cade para “determinar diligências que se fizerem necessárias ao exercício de suas funções”, dentre as quais está a de “prevenir infrações da ordem econômica”, devendo, para tanto, “acompanhar, permanentemente, as atividades e práticas comerciais de pessoas físicas ou jurídicas que detiverem posição dominante em mercado relevante de bens ou serviços”. Em síntese, a norma determina que a Superintendência do Cade fiscalize essas condutas.
Por outro lado, o julgamento dessas condutas anti-concorrenciais deve ocorrer pelo Cade, conforme determina a Lei 12.529/11, artigo 9º, quando estabelece dentre suas competências, a de: “II - decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei; III - decidir os processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica instaurados pela Superintendência-Geral; IV - ordenar providências que conduzam à cessação de infração à ordem econômica, dentro do prazo que determinar”.
Haveria aí uma infração concorrencial? A resposta depende da análise de cada caso concreto, porém o artigo 36 da Lei 12.529/11 aponta como sendo “infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – (...) de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”, ou ainda “II - dominar mercado relevante de bens ou serviços”.
Existe um instrumento ao alcance da mão para facilitar essas análises, que é o convênio firmado em março de 2016 entre a Receita Federal do Brasil e o Cade, visando o intercâmbio de informações de interesse recíproco. Em sua cláusula quarta estabelece que as partes podem utilizar os dados fornecidos “somente nas atividades que, em virtude de lei, sejam de sua competência, não podendo transferi-los a terceiros”.
Esse é um caminho a ser seguido enquanto não for editada a lei complementar prevista no artigo 146-A da Constituição.
Comparando o sistema de defesa da concorrência com o sistema de fiscalização tributária e o de controle financeiro e orçamentário no Brasil atual, constata-se seu menor poder de fogo, também em razão de ser pouco conhecido, porém talvez essa seja uma oportunidade para reverter essa situação. É imperioso que as regras do jogo sejam cumpridas, e uma delas é a da paridade de armas, o que implica em tratamento isonômico entre os concorrentes no mercado. Se o Estado age de modo a desequilibrar a concorrência empresarial, o eventual dano ocasionado deve ser minorado ou compensado, através da imposição de medidas compensatórias econômicas em prol do consumidor, que é, ao fim e ao cabo, o elo fraco de toda essa cadeia, o que deve ser melhor analisado em cada situação concreta envolvendo matéria tributária e financeira, sob a ótica concorrencial.
[1] Constituição, artigo 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.
Fernando Facury Scaff é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados e professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: Conjur
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