segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A prova emprestada na constituição do crédito tributário

1. Introdução
Um Auto de Infração pressupõe dois esforços interpretativos do agente fiscal: (i) a compreensão, pautada na orientação ditada pela Administração Pública, acerca das características que tipificam a hipótese de incidência tributária e, (ii) a construção do fato jurídico tributário, fundada na valoração dos documentos que relatam a atividade desempenhada pelo contribuinte.

Logo, tão importante quanto a formulação da norma jurídica geral e abstrata na consciência do fiscal, é o desenho dos fatos concretizados pelos sujeitos de direito. Essas breves reflexões visam a explorar a temática da prova emprestada nos fatos jurídicos, mais especificamente, evidenciando o contexto normativo vigente que dispõe sobre a prova emprestada na constituição do crédito tributário e apontando algumas balizas (limites) para a sua utilização.

2. A prova emprestada na Constituição do Crédito Tributário – fundamento normativo
A prova é o meio competente para outorgar status de fato jurídico tributário a um evento submetido à apreciação do intérprete. A partir do conjunto probatório de um Auto de Infração, torna-se possível controlar a validade da exigência fiscal, avaliando a (in)existência dos critérios formadores da relação jurídico-tributária.

No plano da experiência, nota-se o aproveitamento de prova emprestada na constituição do crédito tributário de modo amplo e abrangente: documentos fiscais são partilhados entre os entes políticos tributantes, dados bancários são transferidos de instituições financeiras para agentes fiscais1, investigações criminais são encaminhadas para a Receita Federal do Brasil2, autuações fiscais e acórdãos das instâncias judiciais e administrativas fundamentam novas exigências, dentre outras hipóteses. Estas medidas estão respaldadas no ordenamento jurídico.

Desde a sua redação original, o Código Tributário Nacional já prescrevia no seu artigo 199 a mútua assistência das autoridades administrativas fazendárias para a fiscalização dos tributos e a permuta de informações, sendo que, em 2001, esta colaboração se estendeu a Estados estrangeiros3. No mesmo sentido, é o teor do art. 37, XXII, da Constituição Federal, acrescido pela Emenda Constitucional nº 42/2003, que enuncia o compartilhamento de informações fiscais entre as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Com base nesses dispositivos legais, subsiste um aumento da gama dos entes políticos que podem analisar documentos fiscais produzidos pelos particulares. É uma via de mão dupla: os documentos decorrentes do cumprimento dos deveres instrumentais afetos ao relato da obtenção de rendimentos tributáveis pelo Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (“IRPJ”) e pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (“CSLL”) pode ser acessado não somente pela Fazenda Nacional, mas, também, pelas Autoridades Fiscais Estaduais, Municipais e Distrital; assim como os Agentes Fiscais de Rendas têm à sua disposição a consulta de dados de operações de circulação de mercadorias e de prestações de serviços.

Paralelamente, sob a bandeira da eficiência, para evitar a repetição de diligências e ensejar a economia de recursos e tempo, o empréstimo de prova está cravado nas regras que regem os processos judicial e administrativo federal.

Segundo prescreve o artigo 372 da legislação adjetiva, o juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório. Na mesma toada, o Decreto 70.235/72 enuncia o empréstimo de laudos e pareceres, desde que aproximados os seus objetos de análise. É o teor da legislação, in verbis:

Art. 30. Os laudos ou pareceres do Laboratório Nacional de Análises, do Instituto Nacional de Tecnologia e de outros órgãos federais congêneres serão adotados nos aspectos técnicos de sua competência, salvo se comprovada a improcedência desses laudos ou pareceres. (…)

§ 3º Atribuir-se-á eficácia aos laudos e pareceres técnicos sobre produtos, exarados em outros processos administrativos fiscais e transladados mediante certidão de inteiro teor ou cópia fiel, nos seguintes casos: 

a) quando tratarem de produtos originários do mesmo fabricante, com igual denominação, marca e especificação; 

b) quando tratarem de máquinas, aparelhos, equipamentos, veículos e outros produtos complexos de fabricação em série, do mesmo fabricante, com iguais especificações, marca e modelo.

Esses dispositivos da legislação adjetiva corroboram a previsão constitucional e complementar (Código Tributário Nacional) sobre o uso da prova emprestada na constituição do crédito tributário e destacam importantes aspectos condicionantes da sua legitimidade: o Decreto 70.235/72 aponta a relevância da similitude fática entre a prova emprestada e o fato probante e, o Código de Processo Civil evidencia a observância do contraditório.

3. Primeiro Limite da Prova Emprestada: Estrita Legalidade e Tipicidade
A estrita legalidade e a tipicidade tributária são desdobramentos da legalidade, que podem ser sintetizados na seguinte ideia: a cobrança tributária conflita com uma garantia fundamental, pois avança sobre o patrimônio do particular; por isso, é o rigor do tratamento da tributação, que deve representar a exata medida da regra legal que a institui, se constatada a ocorrência do fato gerador da obrigação de recolher o tributo. A autoridade fiscal tem o dever de demarcar rigorosamente o fato jurídico tributário, sendo que a ausência de sintonia do Auto de Infração com a materialidade do fato tido como tributário é causa de nulidade do trabalho fiscal.

Daí a consequência lógica do primeiro limite da prova emprestada: é essencial a conexão entre a prova emprestada e o caso concreto. A remissão ampla e genérica a material emprestado não é suficiente para subsidiar uma autuação fiscal, é imprescindível a sua valoração.

Dois acórdãos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), tirados do contexto da operação Beacon Hill e com desfechos opostos ilustram bem essa assertiva. Em razão da força-tarefa CC5 do Banestado, foi realizada a quebra de sigilo de sociedade sediada nos Estados Unidos, identificando-se transações não declaradas por contribuintes brasileiros. Como consequência, foram lavradas autuações para a cobrança de IRPJ e CSLL, sob a acusação de omissão de receitas, na medida em que teriam sido omitidas remessas de divisas para o exterior.

Num dos casos4, na posse de informações das contas bancárias estado unidense, a fiscalização se debruçou sobre o caso e relacionou a prova emprestada com a situação concreta: demonstrou que no laudo de exame econômico-financeiro, elaborado pela Promotoria do Distrito de Nova York com a consolidação da movimentação financeira das contas e subcontas administradas pela Beacon Hill, constava o contribuinte como remetente de numerário para o estrangeiro. À parte de desajustes na grafia do nome do autuado na documentação emprestada, o cenário conduzia à conclusão de se tratar de operações realizadas pelo autuado. A autuação restou lastreada em outras constatações: a autoridade fiscal destacou confissão firmada pelo autuado em sede de fiscalização, no sentido de que de fato operou com algumas das sociedades cujas contas bancárias eram geridas pela Beacon Hill; e, pontou que as empresas estrangeiras comercializavam equipamentos relacionados ao objeto social do autuado, o que reforçaria o esquema fraudulento para compras de mercadorias à margem de escrituração.

Já, em sede de um trabalho mais displicente5, as autoridades fiscais lavraram Auto de Infração para exigir os tributos incidentes sobre rendimentos sob o mesmo racional, contudo, em referência a transações realizadas por pessoas físicas, sem vínculos com a pessoa jurídica autuada. A acusação fiscal sequer se empenhou em validar a prova emprestada com a análise do quadro dos diretores e representantes do autuado para, então, relacionar a identidade dos remetentes do dinheiro com a personalidade do contribuinte autuado.

Tão somente a prova emprestada trabalhada diante do caso concreto acabou sendo admitida pelo CARF como apta a sustentar a infração tributária, pois foram acrescentados outros elementos probantes a elementos indiciários caracterizadores do fato jurídico tributário, para, então, lavrar-se Auto de Infração.

Outro caso no qual o CARF homenageou a contextualização da prova emprestada e a investigação dos fatos e que merece destaque, se situava no âmbito de uma operação de comércio exterior. Os sujeitos declarados como intervenientes seriam, de acordo com as autoridades fiscais, sociedades de fachada, apresentadas aos controles aduaneiros e fiscais para ocultar os reais mandantes das importações. Com um trabalho voltado à conveniência arrecadatória, lavrou-se autuação tomando emprestadas conclusões firmadas em torno de idêntico importador, contudo, distinto interveniente oculto6. Ao apreciar o processo, o CARF foi categórico em fazer prevalecer a estrita legalidade no ato do lançamento em detrimento da multa substitutiva da pena de perdimento constituída em acervo probatório que não foi objeto de valoração para conexão com o caso concreto, ipsis litteris:

“Em suma, a questão controvertida neste processo é justamente a fraude atribuída às empresas Gradiente e Cotia Trading, matéria totalmente vinculada à produção de prova pela autoridade administrativa (ônus da fiscalização). Então, considerando o império da estrita legalidade, tipicidade tributária, motivação do lançamento tributário, devido processo legal e ampla defesa, diante da gravidade da fraude aduaneira imputada às oras Recorrentes, o lançamento tributário desprovido de provas cabais deve ser cancelado, conforme as justificativas tratadas no corpo deste voto.

Por fim, não é plausível e lícito concluir que o modus operandi adotado pelas autuadas era idêntico àquele constatado no processo n° 12466.002687/200976, modificando apenas o “importador”, que neste caso é a Cotia, sob pena de se autuar com base em presunção, ao arrepio da lei.”7 (grifos nossos)

4. Segundo Limite da Prova Emprestada: Due Process of Law
Maior conhecedor dos fatos não há, senão o contribuinte. Por isso é, inclusive, a tendência registrada na Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.169, de 29 de junho de 2011, que regulamenta procedimentos especiais de controle em operações de comércio exterior e prescreve a notificação acerca do início da fiscalização com a indicação das possíveis irregularidades que motivaram a sua instauração.

A segunda condicionante da legitimidade da prova emprestada é o devido processo legal, na medida em que deve ser assegurada a oportunidade de o contribuinte se manifestar acerca da prova emprestada. Essa providência de oitiva do contribuinte, lhe franqueando a possibilidade de exercer sua ampla defesa e conferindo efetividade ao contraditório, deveria ser viabilizada desde a fase inicial de investigação para que a colaboração do particular possa resultar na ideal construção de um juízo consistente, justo e abalizado.

Ao analisar o uso da prova emprestada em face ao due process of law, o CARF já exarou manifestações no sentido de que os elementos probatórios, cujas conclusões são moldadas pela participação dos envolvidos no processo de sua construção, tal como a formulação de quesitos em perícia e a inquirição e prestação de informações na forma de testemunho, não seriam passíveis de empréstimo. Isso porque a refutação do material, pronto e acabado, não equivaleria aos questionamentos que poderiam ser deduzidos no curso da formação da prova.

Nessa linha, o CARF firmou a ilegalidade da prova emprestada produzida à margem do devido processo legal, condenando o empréstimo de prova pericial, na qual “a ciência da parte, sua participação nos trabalhos e a oportunidade de apresentar quesitos e indicar assistente técnico, tem significativa influência”8. Igualmente, o Conselheiro Diego Diniz Ribeiro reconheceu a nulidade de prova testemunhal emprestada: “Por se tratar de uma prova dinâmica, ou seja, que garanta, na realização do ato (colheita dos depoimentos), a oportunidade para que a parte interessada efetivamente participe da produção da prova, ou seja, do seu processo de enunciação. Simplesmente permitir que o contribuinte se manifeste a respeito das declarações já enunciadas, ou seja, depois de já produzidas e materializadas de forma documental, é apequenar indevidamente as garantias aqui tratadas e reduzi-la a uma questão de forma”9.

5. Conclusões
A prova é o meio competente a outorgar status de fato jurídico tributário a um evento submetido à apreciação do intérprete, sendo que o atual ordenamento jurídico brasileiro autoriza o emprego da prova emprestada na lavratura de Autos de Infração. Dois parâmetros são de fundamental respeito nessa empreitada: (i) a conexão entre a prova emprestada e o caso concreto, como desdobramento da estrita legalidade e a tipicidade tributária; e, (ii) o devido processo legal, devendo ser assegurada a oportunidade de o contribuinte se manifestar acerca da prova emprestada.

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1 RE 601314, Relator(a):  Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-198 DIVULG 15-09-2016 PUBLIC 16-09-2016.

2 Decreto nº 7.574, de 29 de setembro de 2011, artigos 47 e seguintes.

Veja-se, mais recentemente, a Corte Suprema afetou, sob rito da repercussão geral, recurso que trata do compartilhamento dessas informações obtidas pela Administração Tributária com o Ministério Público Federal, para a persecução criminal (RE 1055941).

3 São numerosos os tratados internacionais que foram incorporados pela ordem jurídica Nacional e que disciplinam a permuta de informações entre os Estados, tais como os firmados entre Brasil e Chile (Decreto nº 4.852, de 02 de outubro de 2003), Israel (Decreto nº 5.576, de 08 de novembro de 2005), Finlândia (Decreto nº 2.465, de 19 de janeiro de 1998) e Portugal (Decreto nº 4012, de 13 de novembro de 2001).

4 Acórdão 1102-001.114.

5 Acórdão 1201-001.134.

6 Acórdão 3301-003.975.

7 Acórdão nº 3301-003.975, julgado pela 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 3ª Seção, em 30.08.2017.

8 Acórdão 3401-003.864.

9 Voto declarado no Acórdão nº 3402-002.86.

MAURÍCIO PEREIRA FARO – Mestre Gama Filho, Professor PUC/RJ e FGV/RJ e Advogado.
MARIANA ARITA SOARES DE ALMEIDA – Mestre PUC/SP e Advogada.

Fonte: Jota

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