A realidade corporativa atual desafia os envolvidos a solucionar problemas jurídicos complexos envolvendo institutos de direito público e privado. O direito penal empresarial é um dos principais espaços de incertezas e conflitos entre sócios, sócios e administradores e administradores e o Estado. Especificamente no âmbito do direito penal tributário, assistimos o conflito de interesses entre as atuações empresarial e estatal.
Sabemos que o cumprimento das diretrizes constitucionais dos fundamentos e objetivos da República[1] impõe diversas questões de ordem prática que demandam efetivo trabalho integrado e colaborativo de diferentes profissionais da prática e da teoria dos direitos tributário e penal.
O direito tributário e direito penal são disciplinas com histórico de limitação das tendências de abuso e arbítrio no exercício dos poderes públicos. Os dois ramos apresentam semelhanças científicas com origem na noção de Estado de Direito moderno, atento à proteção da liberdade e da segurança dos direitos do cidadão diante de abusos dos poderes públicos.[2] A importância da lei e da metodologia jurídica rigorosa de interpretação são pontos comuns da prática e da teoria do direito tributário e penal.
Não é por acaso que o direito penal tributário assume protagonismo e coloca em evidência potenciais antinomias. A constitucionalidade dos crimes contra ordem tributária (Lei 8.137/90) foi discutida pelo Supremo Tribunal Federal,[3] por eventual violação ao impedimento de prisão por dívidas do art. 5º, LXVII, da CF.[4] A Corte Constitucional rejeitou a alegação dizendo que os crimes contra a ordem tributária não são apenas dívidas do cidadão com o fisco, mas antes protegem valores fundamentais para a manutenção do Estado.
O Estado Contemporâneo é sabidamente um “Estado Fiscal”[5] que tem os tributos como fonte primária de receitas. Nesse sentido, as condutas capazes de elidir, reduzir ou eliminar o recolhimento dos tributos tendem a ser fortemente combatidas e criminalizadas, mesmo quando legítimas.
As técnicas de planejamento fiscal, leia-se adoção de formas lícitas capazes de promover economia tributária, são “crucificadas” pelas autoridades fiscais e enquadradas, no curso do processo administrativo tributário, como práticas evasivas – incidência da multa qualificada do art. 44, § 1º, da Lei 9.430/96[6]. Será que cabe ao direito penal (ultima ratio) coibir condutas alinhadas aos valores constitucionais da livre-iniciativa e da autonomia privada para preservar o suposto interesse público?
O avanço qualitativo do cruzamento de dados oriundos de grandes operações policiais, de delações premiadas e acordos de leniência, da Receita Federal do Brasil (RFB), das Receitas Estaduais, do Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) tem aumentado as hipóteses de incidência da legislação penal tributária no cotidiano. Cada vez mais vivenciamos casos concretos que ampliam a diversidade de desafios relacionados ao direito penal e a preservação de garantias constitucionais.
Há questões que demandam respostas adequadas, dentre elas: (i) a distinção prático-conceitual entre as figuras da elisão, elisão e evasão e a delimitação técnica de quais podem ou não ser consideradas crime; (ii) as semelhanças e diferenças entre o ilícito tributário e o ilícito penal; (iii) as consequências penais do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT); (iv) as consequências tributárias do Acordo de Leniência (art. 87, § único, da Lei 12.529/11) para os crimes contra a ordem econômica (art. 4º, da Lei 8137/90) e diretamente relacionados à prática de cartel e associação criminosa (art. 288, do CP); (v) as consequências tributárias da delação premiada nos crimes de corrupção (art. 4º, da Lei 12.850/2013); (vi) a eventual responsabilidade dos contadores, advogados, conselho de administração; (vii) a tributação do proveito econômico decorrente de prática criminosa; (viii) a necessária observância da súmula vinculante nº 24 do STF.
São temas práticos profundamente relevantes para a justiça e o desenvolvimento econômico que exigem a reflexão do jurista, a fim de bem orientar os poderes públicos na melhora da legislação e na atuação administrativo-judicial.
Neste cenário incerto e bastante desafiador, inauguramos a iniciativa “Crimes Contra Ordem Tributária: Do Direito Tributário ao Direito Penal”. Os coautores da obra coletiva, assim intitulada e com previsão de lançamento para final novembro de 2018, vão participar do sequencial de artigos no JOTA com o objetivo de destacar problemas práticos e trazer provocações aos leitores acerca dos temas desenvolvidos no contexto do projeto.
Com análises de tributaristas e criminalistas reconhecidos nacional e internacionalmente buscamos superar a superficialidade na avaliação de problemas complexos e evitar teorizações e classificações excessivas que se distanciem da realidade prática dos fenômenos. O trabalho interdisciplinar de reconhecimento e solução dos problemas é nosso objetivo para poder indicar caminhos promissores à economia com justiça social.
A preservação dos valores segurança, equidade e efetividade na resolução de conflitos de interesse depende da maior aproximação e interação dos agentes envolvidos: professores especializados, players de mercado e representantes das três esferas de poder. Equalizar é dialogar. Negociar significa estar pronto para ceder.
Este artigo é parte integrante da iniciativa “Crimes Contra Ordem Tributária: Do Direito Tributário ao Direito Penal”, coordenada por Gisele Barra Bossa (FDUC, CARF) e Marcelo Almeida Ruivo (FDUC, FEEVAL).
Organização Executiva: Luiz Roberto Peroba e Mariana Monte Alegre de Paiva (Pinheiro Neto Advogados), Eduardo Perez Salusse (Salusse, Marangoni, Parente e Jabur Advogados), Mônica Pereira Coelho de Vasconcellos (Barros de Arruda Advogados) e Alexandre Wunderlich (Alexandre Wunderlich Advogados).
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[1] Arts. 1º, III e IV e 3º, I, II e III, da CF/88.
[2] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das penas, Trad. José de Faria Costa, 3º ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 63.
[3]STF, ARE 999425, Min. Lewandowski, Tribunal Pleno virtual, Julg. 02/03/2017, DJe-050, Divulg 15/03/2017, Pub. 16/03/2017.
[4] “art. 5º, (…) LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”
[5] CASALTA NABAIS, José, “O princípio da legalidade fiscal e os actuais desafios da tributação”, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Gráfica Coimbra, 2003, p. 1060.
[6] “Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas:
I – de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata; (…) § 1º O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis.” Tais artigos conceituam a sonegação (art. 71), a fraude (art. 72), e o conluio (art. 73).
GISELE BARRA BOSSA – Mestre e Doutoranda em Ciências Jurídico-Econômicas pela Universidade de Coimbra (Portugal). Coordenadora de Pesquisa na FGV/Direito SP e Professora de Direito Tributário. Conselheira da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).
MARCELO ALMEIDA RUIVO – Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), Visiting Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Turim (Itália), Pesquisador convidado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrecht (Alemanha), Professor do Curso de Direito da FEEVALE, Advogado Criminalista em Porto Alegre e São Paulo.
Fonte: Jota
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