quinta-feira, 14 de junho de 2018

A coisa julgada no processo administrativo fiscal

1. Da coisa julgada no processo administrativo fiscal da União
A Constituição da República Federativa do Brasil adotou como sistema de controle dos atos administrativos ilegais ou ilegítimos o da jurisdição única ou sistema judiciário, pelo qual “todos os litígios — de natureza administrativa ou de interesses exclusivamente privados — são resolvidos judicialmente pela Justiça Comum, ou seja, pelos juízes e tribunais do Poder Judiciário”[1].

Opõe-se a tal sistema o do contencioso administrativo ou sistema francês, em que se veda “à Justiça Comum conhecer de atos da Administração, os quais se sujeitam unicamente à jurisdição especial do contencioso administrativo, que gravita em torno da autoridade suprema do Conselho de Estado, peça fundamental do sistema francês”[2].

Com tais noções claras, é necessário delimitar um conceito de processo administrativo-fiscal, pelo que se toma de empréstimo a conceituação formulada por Hugo de Brito Machado[3], o qual doutrina que em sentido estrito a referida expressão designa a espécie de processo administrativo destinada à determinação e exigência do crédito tributário. Já em sentido amplo, identificar-se-ia no conjunto de atos administrativos tendentes ao reconhecimento de uma situação jurídica pertinente à relação Fisco-contribuinte.

Desse modo, elege-se o procedimento da revisão de lançamento, iniciando-se a partir da impugnação ao lançamento tributário, como está previsto no Decreto 70.235/1972, que instituiu o processo administrativo fiscal no âmbito da União, onde se percebe o cumprimento dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa.

Em tais casos, tanto o contribuinte quanto o Fisco têm acesso ao duplo grau de jurisdição administrativo caso as decisões lhes sejam desfavoráveis, do que decorre que o princípio da isonomia é fielmente observado pela administração.

Interessante notar que o processo administrativo fiscal tem natureza jurídico-formal de procedimento administrativo, embora materialmente se possa entender que há o desenvolvimento pelo Poder Executivo de uma função atípica, qual seja, a julgadora.

Trata-se aqui da concreção da justiça fiscal, ou seja, interpretação e aplicação da legislação tributária no âmbito administrativo, de modo a conferir legalidade aos atos administrativos praticados pelo Fisco.

Por outro lado, a finalidade ínsita ao processo administrativo tributário é de conferir maior segurança jurídica aos atos de lançamento, bem como possibilitar ao contribuinte a apresentação de suas razões para infirmar a veracidade da atividade administrativa.

Exatamente por isso, o artigo 145, I, do Código Tributário Nacional elegeu a impugnação do sujeito passivo como uma das formas capazes de alterar o lançamento do crédito tributário, dando origem à fase contenciosa do procedimento.

Nesse sentido, não se pode conceber a existência de instituto intitulado processo administrativo fiscal sem que nele esteja implícita a garantia do devido processo legal, em ordem a garantir a ampla defesa e o contraditório, com os meios e recursos pertinentes, bem como a ampla instrução probatória cabível na espécie e o duplo grau de jurisdição administrativo, além da razoável duração do processo, uma vez que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, incisos LIV, LV e LXXVIII, dispôs acerca da aplicação de tais princípios aos processos administrativos.

2. Dos efeitos da decisão definitiva em relação ao contribuinte
O debate se mostra importante a esta altura porque efetivamente exerce o Poder Executivo uma função julgadora de revisão dos atos de lançamento, assegurando ao peticionário todos os consectários inerentes à garantia do devido processo legal, donde se vê a possibilidade de ampla dilação probatória, do exercício do contraditório e da ampla defesa, além do duplo grau de jurisdição administrativo.

O processo administrativo fiscal no âmbito da União pode alcançar duas instâncias (delegacias da Receita Federal de julgamento e, conselhos de contribuintes do Ministério da Fazenda e Câmara Superior de Recursos Fiscais) e ainda a instância especial (ministro da Fazenda), nos termos dos artigos 25 e 26, do Decreto 70.235/72.

As decisões proferidas no âmbito de processo administrativo fiscal são atos vinculados com conteúdo jurisdicional, todavia, não se confundem com os atos judiciais próprios do Poder Judiciário. São atos vinculados, porque as decisões exaradas são produto da solução definitiva da controvérsia entre o Fisco e o contribuinte.

É necessário que se esclareça que diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV, da CF), em relação ao contribuinte, a decisão desfavorável proferida na esfera administrativa não o impede de discutir a matéria ali tratada em ação própria perante o Poder Judiciário.

Daí se verificar que o único efeito que a decisão definitiva do processo administrativo fiscal pode causar é impedir a rediscussão do processo na esfera administrativa, o que seria muito mais que uma simples coisa julgada formal, a qual só impede a continuação da discussão no mesmo processo.

Buscando o Poder Judiciário, poderá o contribuinte discutir novamente as questões postas à apreciação da administração e obter, se for o caso, provimento no sentido almejado, desconstituindo-se o crédito tributário total ou parcialmente, declarando-se a nulidade da obrigação tributária, ou mesmo a inconstitucionalidade de sua cobrança em determinado exercício etc.

3. Dos efeitos da decisão definitiva em relação ao Fisco
Deve-se dizer que a melhor doutrina entende que a solução definitiva em processo administrativo-fiscal favorável ao contribuinte tem força de coisa julgada material em relação à administração, o que a impede de submeter ao Judiciário a revisão de seus próprios atos.

Aliar-se a essa posição não é apenas defender que os princípios da inafastabilidade da jurisdição e da isonomia seriam inaplicáveis ao Estado/Fisco, mas sustentar a própria unidade do regime administrativo.

Com efeito, parece inconcebível, por exemplo, que a União proponha ação para discutir questão já exaustivamente decidida pelos órgãos por ela mesma instituídos, mormente no que diz respeito ao lançamento, que é atividade administrativa vinculada.

A esse respeito, o artigo 45, do Decreto 70.235/72 (com força de lei), é muito claro ao dispor que, “no caso de decisão definitiva favorável ao sujeito passivo, cumpre à autoridade preparadora exonerá-lo, de ofício, dos gravames decorrentes do litígio”.

O Código Tributário Nacional também contém dispositivo na mesma linha do que aqui se defende, consistente no artigo 156, IX, que estabelece como causa de extinção do crédito tributário a “decisão administrativa irreformável”, assim entendida a definitiva na órbita administrativa.

Comentando sobre o referido dispositivo legal, Leandro Paulsen[4] citou trecho da obra de Paulo de Barros Carvalho para se alinhar à corrente da coisa julgada material administrativa para o Fisco, senão vejamos:

Ajuizamento de ação anulatória pelo Fisco. “Percorrido o iter procedimental e chegando a entidade tributante ao ponto de decidir, definitivamente, sobre a inexistência de relação jurídica tributária ou acerca da ilegalidade do lançamento, cremos que não teria sentido na propositura, pelo fisco, de ação anulatória daquela decisão” (Paulo de Barros Carvalho, Curso de Direito Tributário, 8ª edição, Ed. Saraiva, p. 323).

Já o professor José Eduardo Soares de Melo, em seu Curso de Direito Tributário[5], embora tenha consignado a possibilidade jurídica de que a Fazenda Pública possa questionar judicialmente as decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, deixou registrado que “não é tradição em nosso direito a Fazenda Pública postular judicialmente a anulação de seus próprios atos, em razão do que se pode cogitar da efetiva existência de coisa julgada administrativa”.

Assim, não se é de admitir a existência de uma ação ajuizada pela União em face da própria União, pois os órgãos julgadores são instituídos pela administração para rever os atos de lançamento quando houver impugnação por parte dos contribuintes insatisfeitos, e são organizados em instâncias, aplicando-se-lhes todos os princípios atinentes à administração pública.

Ademais, o processo administrativo fiscal e o sistema tributário nacional estão sistematizados de modo que as decisões proferidas pelos órgãos colegiados de julgamento sejam efetivamente seguidas pela administração, o que gera uma tradição jurídica de não questionamento judicial pelo Fisco nos casos concretos.

Por outro lado, mesmo que caiba à administração rever seus atos de ofício, revogando-os quando por conveniência e oportunidade; e anulando-os quando ilegais (Súmula 473, STF e artigo 53, Lei 9.784/99), isso não serve de fundamento para impedir o efeito material da coisa julgada administrativa em relação ao Fisco, uma vez que a ressalva à apreciação judicial contida em tais dispositivos refere-se apenas aos atos praticados com desrespeito aos direitos adquiridos.

Desse modo, não é admissível que a administração/Fisco, que tem o poder-dever de rever seus atos, instituindo órgãos e instâncias para tanto, submeta ao Poder Judiciário, no campo do processo de revisão de lançamento, uma questão já decidida por ela mesma. Trata-se muito mais de coerência, bom senso, moralidade e segurança jurídica do que propriamente de desrespeito a garantias individuais.

Em trabalho de Luiz Fernando Mussolini Júnior[6], encontra-se menção ao XXIV Simpósio Nacional de Direito Tributário, realizado em São Paulo em 1999, sob a coordenação de Ives Gandra da Silva Martins e com o tema “Processo Administrativo Tributário”, em cujo evento de plenária se debateu sobre a seguinte questão: “A Fazenda Pública pode ir a juízo pedir a anulação de decisão administrativa a ela contrária?”.

Após os debates, segundo o autor[7], que cita a publicação das conclusões no IOB Comenta 48/99, 1ª Sem./dez./1999, p 7-10, a proposta vencedora (aprovada por 127 votos a favor e 7 votos contrários) consignou que: “A Fazenda não pode ir a Juízo pedir a anulação da decisão administrativa a ela contrária”.

O Superior Tribunal de Justiça, embora não tenha precedente recente sobre processo ajuizado pela própria União para discutir decisão de seu órgão julgador administrativo, já teve a oportunidade de firmar precedente em que afirma a impossibilidade de a administração pública ingressar em juízo para discutir decisões administrativas firmadas no âmbito de processo administrativo fiscal, in verbis:

RECURSO ORDINÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - CONSELHO DE CONTRIBUINTES DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - RECURSO HIERÁRQUICO - SECRETÁRIO DE ESTADO DA FAZENDA DO ESTADO - EXPRESSA PREVISÃO LEGAL - LEGALIDADE - PRECEDENTES.
[...]
Nesse sentido, assevera Hely Lopes Meirelles que os recursos hierárquicos impróprios "são perfeitamente admissíveis, desde que estabelecidos em lei ou no regulamento da instituição, uma vez que tramitam sempre no âmbito do Executivo que cria e controla essas atividades. O que não se permite é o recurso de um Poder a outro, porque isto confundiria as funções e comprometeria a independência que a Constituição da República quer preservar".
Além disso, o contribuinte vencido na esfera administrativa sempre poderá recorrer ao Poder Judiciário para que seja reexaminada a decisão administrativa. Já a Fazenda Pública não poderá se insurgir caso seu recurso hierárquico não prospere, uma vez que não é possível a Administração propor ação contra ato de um de seus órgãos.
Recurso não provido (RMS 12.386/RJ, Rel. Ministro Franciulli Netto, 2ª Turma, julgado em 19/2/2004, DJ 19/4/2004, p. 168) (grifou-se).

Perfeitamente demonstrado, portanto, que as decisões definitivas proferidas em sede de processo administrativo fiscal de revisão de lançamento, regra geral, vinculam a administração, a qual não pode desrespeitar, muito menos questionar judicialmente o entendimento esposado pelos órgãos julgadores administrativos, pelo que tais decisões fazem coisa julgada material em relação à União.

Ressalva-se, todavia, para não pecar por omissão, a apreciação judicial dos atos praticados pelos conselhos ou autoridades julgadoras e por seus membros, em sede de ação popular (regida pela Lei 4.717/1965) ou de ação de improbidade administrativa (regida pela Lei 8.429/1992), desde que fique configurado: i) que a decisão do órgão julgador configura ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe e à moralidade administrativa, nos casos de nulidades definidos no artigo 2º da Lei 4.717/65, caso em que é possível a anulação da decisão administrativa, mesmo que o resultado do processo judicial favoreça a União; ou ii) a lesão aos princípios constitucionais da administração pública ou ao erário público, ou importe em enriquecimento ilícito dos membros dos colegiados administrativos, caso em que deverão responder pessoalmente por seus atos, nos termos da Lei 8.429/92, sujeitando-se às penas de suspensão dos direitos políticos, de perda da função pública, de indisponibilidade dos bens e de ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25. ed. atual. por Eurico Andrade de Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p. 49.
[2] In Direito Administrativo Brasileiro, p. 47.
[3] In Curso de Direito Tributário. 26. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 443.
[4] In Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 8. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado: ESMAFE, 2006, p. 1.159.
[5] MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 6. ed. rev. atual. São Paulo: Dialética, 2005, p. 334.
[6] MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. Processo Administrativo Tributário. Das decisões terminativas contrárias à Fazenda Pública. Baureri – SP: Manole, 2004, p. 58.
[7] In Processo Administrativo Tributário. Das decisões terminativas contrárias à Fazenda Pública, p. 58.

Referências bibliográficas
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2005.
MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 6. ed. rev. atual. São Paulo: Dialética, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25. ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. Processo Administrativo Tributário. Das decisões terminativas contrárias à Fazenda Pública. Baureri – SP: Manole, 2004.
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
PONTES, Helenison Cunha Pontes. Coisa Julgada Tributária. In: MACHADO, Hugo de Brito (Org.). Coisa Julgada: constitucionalidade e legalidade em Matéria Tributária. São Paulo: Editora Dialética, 2006.

Francisco Armando de Figueirêdo Melo é procurador do estado do Acre.

Fonte: Conjur

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