1. Delimitação da materialidade do ICMS sobre importações
A questão relativa à incidência de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre a importação suscita debates desde a sua introdução no ordenamento jurídico com o advento da Emenda Constitucional 23/83, seja em razão de sua similitude com o então já existente Imposto de Importação, de competência federal, seja em razão das polêmicas envolvendo a questão da importação por arrendamento mercantil (leasing).
Partindo do artigo 155, II, da Constituição de 1988, podemos construir três regras-matrizes para o ICMS-Importação, que abrangem os seguintes antecedentes normativos:
- realizar operações de circulação de mercadorias;
- prestar serviços de comunicação, mesmo que se iniciem no exterior e desde que iniciados ou concluídos nos limites territoriais do estado ou Distrito Federal;
- prestar serviços de transporte interestadual ou intermunicipal.
A possibilidade de tributação pelo ICMS também da entrada de mercadorias e bens importados do exterior, com o alargamento de sua materialidade, foi introduzida pela Emenda Constitucional 23/83, desde que destinados os bens e mercadorias importados a consumo ou ativo fixo das empresas, de modo que somente poderiam figurar como sujeito passivo do tributo os comerciantes, produtores e industriais.
Em relação à materialidade do imposto, o verbo central é importar, que significa introduzir produto estrangeiro no Brasil, com o intuito de fazê-lo ingressar no mercado nacional (artigo 155, II, da CF/88). Assim, o ato de importar é posterior a uma operação mercantil ocorrida no exterior, e a mercadoria importada deve ser utilizada como bem de consumo ou bem de produção. Destarte, pode-se concluir que o critério material dessa exação consiste em importar mercadorias do exterior, isto é, trazer produtos originários de outros países para dentro do território nacional, com o objetivo de permanência.
Note-se que a entrada da mercadoria no território nacional, geralmente identificada pelo desembaraço aduaneiro, é apenas o tempo em que se considera ocorrido. Muito embora o artigo 155, parágrafo 2º, IX, a, da Constituição Federal mencione que o ICMS incidirá também sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior, erro crasso pensar que a mera entrada da mercadoria importada bastaria à caracterização do fato jurídico tributário. Ao interpretarmos o direito posto, não podemos ignorar o forte caráter de heterogeneidade das nossas casas legislativas, e por isso a interpretação dos textos jurídicos deve ser obtida a partir de significações atribuídas pelo discurso científico, e não pela linguagem ordinária.
2. O leasing internacional e a circulação de mercadorias
Uma delimitação precisa da materialidade do ICMS incidente sobre as importações acarreta implicações na solução de diversas controvérsias, entre elas a da importação realizada mediante operação de arrendamento mercantil ou leasing.
O contrato de leasing tem assumido diferentes modalidades, como o operacional, o financeiro e o lease back.
No leasing operacional, o arrendador cede ao arrendatário o direito de uso do bem, obrigando-se a fornecer manutenção e assistência técnica das máquinas, recebendo como contraprestação uma espécie de aluguel mensal, acrescido de valor cobrado pelos serviços prestados e da margem de lucro, com a opção de adquirir o bem ao final pelo valor de mercado. No leasing financeiro, uma instituição financeira adquire o bem e o arrenda ao consumidor, optando o arrendatário ao final do contrato pela devolução do bem, renovação da locação ou, ainda, compra pelo preço residual inicialmente ajustado pelas partes. Por sua vez, o lease back ou sale and lease back é o leasing de retorno, pelo qual, na busca por capital de giro, uma empresa aliena um bem a uma instituição financeira que o arrenda de volta à mesma empresa.
Percebe-se a partir da sistemática de tais negócios jurídicos que no momento da celebração do leasing financeiro e do operacional não há a transferência da propriedade do bem, não há circulação jurídica de mercadoria, razão pela qual o arrendamento mercantil foi expressamente excluído da materialidade do ICMS, ex vi do artigo 3º, inciso VIII, da LC 87/96. Nem mesmo no lease back há essa circulação, pois fornecedor e arrendatário do bem são a mesma pessoa.
Não obstante, a operação de importação fundada em contrato de leasing internacional ainda permaneceu objeto de discussão, ante a alteração da redação do artigo 155, IX, parágrafo 2º, da Constituição Federal pela Emenda Constitucional 33/01, que passou a prever a incidência do ICMS sobre a entrada de bem ou mercadoria “qualquer que seja sua finalidade”, invocando-se, assim, que a incidência do ICMS-Importação independeria da natureza jurídica do negócio que fundamentou a entrada do bem no país.
Ocorre que, considerando-se a regra-matriz de incidência do ICMS em geral, mesmo no ICMS-Importação, sua materialidade requer a realização de operação de circulação de mercadorias, compreendida esta como negócio jurídico entre particulares para a transferência de titularidade de mercadorias, isto é, de bens adquiridos com o escopo de serem revendidos com intuito de lucro[1].
No entanto, o contrato de leasing, ou arrendamento mercantil, apesar de consistir em negócio jurídico, trata-se de mera locação de bem móvel, sem transferência de titularidade entre arrendador e arrendatário, e por isso escapando à incidência do ICMS. Mister ressaltar que o mesmo vale para a importação feita pelo intermédio do leasing internacional. Afinal, a não incidência do imposto independe da origem dos bens, sejam provenientes do exterior ou não, sendo relevante nesse caso apenas que não se perfaz operação de “circulação de mercadoria” e, por conseguinte, tampouco a “importação” que consiste no critério material do ICMS-Importação.
Destarte, a importação de equipamento por meio do contrato de leasing, por si só, não consubstancia hipótese de incidência do ICMS-Importação, sendo a entrada no país ou o desembaraço aduaneiro apenas o critério temporal da hipótese de incidência, e não o fato jurídico eleito como critério material do imposto. Mesmo no ICMS-Importação, para que esteja configurada sua hipótese de incidência, assim como no ICMS em geral, requer-se operação jurídica de circulação de bens ou mercadorias, isto é, mudança de titularidade do arrendador para o arrendatário, o que não ocorre como regra no leasing, simples locação de bem móvel, e sim apenas quando da opção de compra.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que o ICMS não incide sobre operação de leasing em que não houve transferência de titularidade do bem, mesmo sendo caso de ICMS-Importação, isto é, em que o bem arrendado seja proveniente do exterior (MC 13.236/RJ, j. em 18/12/2012). Por sua vez, quando na importação feita por leasing o bem arrendado se destina ao ativo fixo da empresa importadora, passa a estar caracterizada a circulação mercantil, com mudança de titularidade do bem, pois nesse caso se faz necessária a opção do arrendatário pela compra do bem, razão pela qual incide o ICMS-Importação, que é excepcionado, contudo, quando se tratar de locação de aeronaves, equipamentos e peças adquiridas por empresas de transporte aéreo (STJ – AgRg nos EAREsp 83.402/SP, j. 12/12/2012).
Assim, cumpre ressalvar que, caso exercida a opção pela compra, o ICMS-Importação admite em sua materialidade a operação de importação tanto de bens quanto mercadorias, ou seja, sem o necessário intuito de revenda, bastando a finalidade de circular como mercadoria, bem de consumo ou bem de produção, tendo em vista o teor do artigo 155, parágrafo 2º, inciso IX, da Constituição Federal, no que se distingue o ICMS-Importação do ICMS-mercadoria em geral[2].
A questão relativa à incidência de ICMS sobre a importação realizada por intermédio de arrendamento mercantil também pode ser examinada a partir do próprio quadro de competências tributárias estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
A discriminação de competências tributárias, acompanhada da autonomia financeira atribuída às pessoas jurídicas de direito público, são requisitos para a sobrevivência de um sistema federal, sendo que no Brasil sempre se optou por uma repartição rígida das competências, atribuindo-se a cada um dos entes federativos a sua parcela competencial[3].
O professor Luís Eduardo Schoueri observa que a rigidez na discriminação das competências impositivas entre os entes tributantes decorre da teoria das causas, aplicável não somente no Direito Privado como também em matéria tributária, e pela qual se deve investigar e ter em mente a justificação econômica de cada espécie exacional, o que conduziu mais recentemente ao desenvolvimento das teorias do sacrifício e do benefício, ambas com abordagem econômica, mas aquela exigindo o pagamento de tributos para que se possa manter o Estado, e esta última defendendo, sob óptica diversa, a participação do Estado no sucesso do particular, justamente por ter o Estado uma contribuição para o sucesso individual dos agentes privados. À luz da teoria das causas, conclui-se que a figura dos impostos se assenta no poder de império do Estado, de um lado, e, de outro, na possibilidade do contribuinte, que é revelada pela manifestação de uma capacidade contributiva.
Deve-se reconhecer ao assim chamado ICMS-Importação o caráter de uma norma tributária indutora, pois tradicionalmente composta de hipótese e consequente, tem em destaque a função indutora, isto é, de intervir sobre o domínio econômico influenciando comportamento no mercado, servindo tanto para corrigir as deficiências do mercado quanto para implementar a ordem econômica prescrita na Constituição. Disso decorre que normas como a do ICMS-Importação não são dotadas apenas da função arrecadadora comum aos demais impostos, mas também da função extrafiscal de intervenção estatal sobre o domínio econômico, o que impõe ao ICMS-Importação um regime próprio. Assim, a interpretação da abrangência do chamado ICMS-Importação deve ser feita com cautela, considerando-se que uma legislação simplesmente regional poderia produzir efeitos para além das fronteiras do Estado-membro tributante, tendo em vista a intervenção no domínio econômico[4].
Quanto ao ICMS-mercadorias em geral, tem como justificação econômica para tributação a realização de operação de circulação de mercadorias, compreendida esta como negócio jurídico entre particulares para a transferência de titularidade de mercadorias, isto é, de bens adquiridos com o escopo de serem revendidos com intuito de lucro[5]. Contudo, a nova norma constitucional do artigo 155, inciso IX, a, passa a prever também como materialidade a conduta de importar bens ou mercadorias do exterior, ou seja, de realizar operações de importação de bens ou mercadorias. Ao contrário do que possa parecer a partir da precária redação do dispositivo, contudo, o fato jurídico ensejador da incidência não será precisamente a entrada do bem no território nacional, correspondendo tal momento apenas ao critério temporal da hipótese, que coincide com a justificação econômica do imposto federal de importação.
Por conseguinte, especificamente quanto à operação de leasing de bens trazidos do exterior pelo arrendatário, geralmente ao final do prazo contratual este pode devolvê-los ao arrendador no exterior ou exercer a opção de compra, sendo a hipótese de compra a única em que se transfere a titularidade da mercadoria.
Tal posição continua predominante no Supremo Tribunal Federal, conforme se verifica do recente julgamento do RE 540.829-SP, julgado em 11/9/2014, que continua a exigir como materialidade a circulação com mudança na titularidade do bem, o que inocorre no mero leasing para importação de mercadoria, que implica simples locação de bem móvel. Reiterou, assim, o entendimento já manifestado no RE 461.968/SP, rel. min. Eros Grau, DJ 24/8/2007.
Lícito inferir, portanto, que sob todos os ângulos acima analisados, escapa à materialidade do ICMS-Importação a operação de importação mediante simples leasing internacional em que não há opção de compra, o que configura simples locação de bem móvel sem a circulação jurídica caracterizada pela mudança na titularidade do bem, não bastando para tanto a mera entrada da mercadoria no país.
[1] SALOMÃO, Marcelo Viana, op. cit., pp. 32-34, e Paulo de Barros Carvalho, Direito Tributário – Linguagem e Método, São Paulo: Noeses, 2013, pp. 732-737.
[2] SALOMÃO, Marcelo Viana, op. cit., pp. 58-60.
[3] SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 342-353.
[4] Ibid., pp. 1-40 e 355-358.
[5] SALOMÃO, Marcelo Viana, op. cit., pp. 32-34. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método, São Paulo: Noeses, p. 732-737.
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Nathália Ayres Queiroz da Silva é mestranda em Direito Tributário na PUC-SP, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: Conjur
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