Tomando por base a equivocada interpretação judicial de que a preservação da empresa é um princípio quase que absoluto, que se sobrepõe aos demais princípios em eventual rota de colisão, o presente artigo procura demonstrar os problemas e as consequências dessa tese, que enxerga a recuperação judicial como uma barreira praticamente intransponível que impede a efetiva satisfação dos créditos fiscais em face dos devedores em processo de recuperação judicial.
O microssistema de recuperação judicial e a intrincada relação (e possíveis conflitos) entre o processo de recuperação e a execução de débitos fiscais foram alicerçados pelo legislador em três pontos fundamentais: 1) o processamento da recuperação judicial não suspende as execuções fiscais (art. 6º, §7º, da Lei 11.101/05), isso, porque, a recuperação judicial é uma modalidade de renegociação de débitos entre particulares, da qual a Fazenda não participa; 2) a homologação do plano aprovado pelos credores e a concessão de recuperação judicial estão condicionados à prévia apresentação de certidões de regularidade fiscal com a Fazenda Pública (art. 57 e 58 da Lei 11.101/05 e art. 191-A do CTN); c) as Fazendas devem instituir programas de parcelamentos específicos para as empresas em recuperação judicial (art. 68 da Lei 11.101/05).
De forma bem simples: o legislador expressamente condicionou a concessão da recuperação judicial à regularidade fiscal da empresa requerente, facultando à devedora a adesão a programa de parcelamento específico, apto a regularizar sua situação fiscal, possibilitar a concessão da recuperação judicial e suspender o curso dos executivos fiscais. Concordando-se ou não com as escolhas do legislador, não se pode negar que são escolhas razoáveis, que buscaram salvaguardar os interesses das Fazendas e dos credores privados, assim como propiciar a recuperação das empresas em dificuldades.
Nada obstante, a regra que prevê a exigência da certidão de regularidade fiscal para a concessão da recuperação judicial (art. 57 e 58 da Lei 11.101/05), embora de clareza indiscutível, foi afastada pelo Poder Judiciário, sob o fundamento de que não havia ainda a instituição do parcelamento especial às empresas em recuperação judicial, na forma mencionada pelo artigo 68 da referida lei (AgRg no CC 136130 / SP e REsp 1.187.404/MT, dentre outros)1.
O golpe fatal na cobrança dos débitos fiscais, contudo, veio na sequência. Com efeito, a 2ª Seção do STJ, responsável por analisar os conflitos de competência entre o juízo da recuperação judicial e os juízos fiscais, sedimentou o entendimento que, embora o deferimento da recuperação judicial não suspenda a execução fiscal, os atos de constrição e de alienação de bens sujeitos à recuperação submetem-se ao juízo universal (CC nº 153.627/PE e AgInt no CC 145.089/MT, dentre outros). Esse entendimento, na prática, acaba por paralisar milhares de execuções fiscais em todo o país, eis que o juízo da recuperação, em regra, entende que penhoras e leilões realizados no âmbito dos executivos fiscais colocam em risco a viabilidade do plano de recuperação, razão pela qual não devem ser realizados.
Responsável por analisar os casos em que não foi suscitado conflito de competência entre recuperação judicial e execução fiscal, a seção de Direito Público do STJ (1ª Seção), que tinha entendimento pelo prosseguimento das execuções fiscais, sem a interferência do juízo recuperação judicial (AgInt no AgRg no REsp 1.525.114/PE), afetou, em 27/02/2018, o tema “possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal” para julgamento na sistemática dos recursos repetitivos (tema 987), determinando a suspensão nacional de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos que versem sobre o tema (Art. 1.037, II, CPC).
Posteriormente, a Segunda Seção do STJ, admitindo a existência de divergência entre sua jurisprudência e a jurisprudência da Primeira Seção sobre o tema, determinou a afetação à Corte Especial do julgamento de um conflito de competência sobre a matéria, de forma a prevenir/dissipar a divergência jurisprudencial mencionada acima, no âmbito do STJ. (IUJur no CC 144.433/GO, Segunda Seção, DJe 22/03/2018).
De uma forma ou de outra, portanto, as execuções fiscais da União em face de devedores em recuperação judicial encontram-se, em sua imensa maioria, paralisadas, fato que ocasiona a frustração de substancial volume de receitas para o já combalido orçamento federal. Um exemplo prático que pode ser citado é o caso da operadora de telefonia “OI”, cuja recuperação judicial envolve débitos em torno de R$ 65 bilhões de reais. A citada operadora de telefonia possui débitos com a Fazenda Nacional superiores a R$ 2 bilhões reais, cuja cobrança tem sido bastante dificultada desde a concessão da recuperação judicial.
PROBLEMAS E CONSEQUÊNCIAS DA SUBMISSÃO DO JUÍZO FISCAL AO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
A tese de que os atos constritivos (penhoras e leilões) pretendidos no âmbito da execução fiscal devem se submeter ao juízo da recuperação judicial tem algumas fissuras em sua linha argumentativa, assim como gera graves consequências de ordem prática para a cobrança dos débitos fiscais.
De início, como já dito, é imperioso destacar que os dispositivos legais são extremamente claros, tendo o legislador expressamente consignado que: 1) o crédito fiscal não se submete (ou está sujeito) ao juízo universal; 2) a concessão da recuperação judicial depende da prova da regularidade fiscal; 3) as execuções fiscais não se suspendem pelo deferimento da recuperação judicial, exceto se houver adesão ao parcelamento especial. Dessa forma, exsurge como decorrência lógica do sistema, a possibilidade de atos constritivos contra devedores em recuperação judicial que não parcelaram seus débitos fiscais (arts. 187 e 191-A do CTN; arts. 5º e 29 da Lei 6830/80; art. 6º, §7º, da Lei 11.101/05).
Boa ou ruim, fato é que foi esta a ponderação de princípios que os Poderes Legislativo e Executivo entenderam por bem adotar2, quando editaram a Lei 11.101/05. Afastar essa ponderação dependeria da declaração de inconstitucionalidade das normas acima citadas, na linha do que dispõe a súmula vinculante nº 10 do STF. Contudo, o judiciário tem afastado as citadas normas sem declarar sua inconstitucionalidade, sob o fundamento de que se trata de mera interpretação dos dispositivos legais.
O principal argumento utilizado pelos defensores dessa tese está alicerçado no princípio da preservação da empresa, o qual tem servido para justificar os maiores absurdos, notadamente em virtude da gravíssima crise econômica e do desemprego que assolam o país. Nessa linha, o referido princípio tem sido usado para justificar a concessão de recuperação judicial sem regularidade fiscal, bem como paralisar as execuções fiscais ou impedir atos constritivos sobre o patrimônio dos devedores em recuperação, sob o fundamento de que eventuais penhoras poderiam inviabilizar a recuperação da empresa devedora.
Equivocadamente, o judiciário tem alçado a referida norma à posição de princípio absoluto, olvidando da ponderação de interesses já realizada pelo legislador, bem como da necessária ponderação diante de outros princípios. Ora, como é cediço, não existem princípios absolutos, sendo da natureza desse tipo de norma sua ponderação diante de outros princípios em eventual caso de colisão. De fato, não se pode olvidar que os princípios são “mandados de otimização”, que admitem a satisfação em graus variados, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Nesse contexto, eventual conflito entre princípios deve ser resolvido por meio da ponderação, onde um princípio tem precedência condicionada sobre o outro3.
Veja, a concessão da recuperação judicial, sem a comprovação da regularidade fiscal, e a paralisação das execuções fiscais, sob o fundamento de possível inviabilização do plano aprovado, deixa o credor público de mãos e pés atados, tendo em vista que o mesmo não pode participar da recuperação judicial (que é uma renegociação de créditos privados), tampouco pode tocar suas execuções fiscais. Assim, a Fazenda pública é obrigada a assistir inerte à dissipação do patrimônio do devedor, sob o fundamento de que eventuais atos constritivos colocariam em risco a recuperação judicial.
A situação mostra-se ainda mais grave quando se constata que apenas 5% (cinco por cento) das empresas que pedem recuperação judicial voltam efetivamente a operar. Com efeito, segundo um estudo do Instituto Nacional da Recuperação Empresarial (INRE), desde que a lei foi criada, em 2005, até 2015, foram registrados 6.938 pedidos de recuperação judicial, mas somente 5% das empresas que ingressaram com o pedido judicial voltaram a operar efetivamente como empresas regulares4.
Na verdade, a realidade mostra que grande parte dos pedidos de recuperação judicial não busca efetivamente restabelecer as empresas devedoras, mas somente renegociar dívidas e ganhar tempo, postergando-se ao máximo a falência ou dissolução irregular da pessoa jurídica. Em outras palavras: Na imensa maioria dos casos, as empresas conseguem a recuperação judicial, negociam com os credores privados, alienando valores e direitos, mas, ao final, acabam não voltando a operar ou, até mesmo, falindo5.
A Fazenda, por sua vez, assiste a tudo sem nada poder fazer, correndo sério risco de, quando, finalmente, puder voltar a tocar suas execuções fiscais, não encontrar mais patrimônio do devedor a ser atingido. Na prática, a concessão da recuperação judicial sem a comprovação da regularidade fiscal e a paralisação das execuções fiscais dos devedores equivale a uma moratória ou mesmo a uma remissão dos créditos fiscais. Tudo isso com a chancela do Poder Judiciário!
O princípio da preservação da empresa, contudo, não tem estatura axiológica superior aos demais princípios, tampouco pode se sobrepor prima facie sobre os princípios da supremacia do interesse público e da gestão fiscal responsável (art. 1ª, §1º, da LC 101/2000). A supremacia do interesse público impõe que os créditos fiscais sejam resguardados, mesmo porque possuem privilégios em face de diversos outros credores privados (art. 30 da Lei 6830/80 e 186 do CTN). A responsabilidade na gestão fiscal (art. 1ª, §1º, da LC 101/2000) prescreve que as renúncias de receitas devem estar previstas em lei (em regra – art. 150, §6º, da CF/88), bem como devem ser compensadas com redução de despesas ou aumento de outros tributos (art. 14, da LC 101/2000).
As decisões judiciais que concedem recuperação judicial, sem a comprovação de regularidade fiscal, ou impedem a prática de atos constritivos, em face de empresas em recuperação judicial, desconsideram totalmente os princípios da supremacia do interesse público e gestão fiscal responsável, impondo à coletividade o ônus de arcar com um plano de renegociação de dívidas privadas em detrimento dos créditos fiscais.
Por certo, considerando que o Brasil se insere dentre aqueles tipos de Estado onde a principal fonte de receita advém da tributação, o não ingresso de recursos, em virtude da paralisação de milhares de execuções fiscais, impõe, em contrapartida, a restrição de despesas anteriormente previstas (por exemplo, com programas sociais e investimentos) ou o aumento de tributos, para que seja compensada a frustração das receitas anteriormente estimadas. É uma questão matemática: se o tamanho do Estado continua o mesmo, despesas precisam ser cortadas ou tributos majorados, pois a conta precisa fechar! Quem você acha que acaba pagando essa conta?
CONCLUSÕES
Ao final desse pequeno texto, é possível apresentar as seguintes conclusões:
1) O microssistema da recuperação judicial foi pensando de forma a equilibrar e proteger diversos interesses potencialmente conflitantes, quais sejam: empresa em recuperação, credores privados e credores fiscais.
2) O sopesamento entre os diversos interesses em jogo já foi realizado pelo legislador e pelo executivo, não se podendo sustentar que as escolhas realizadas sejam flagrantemente desproporcionais ou evidentemente desarrazoadas.
3) O princípio da preservação da empresa não tem caráter absoluto, devendo ser ponderado com outros princípios, notadamente a supremacia do interesse público e responsabilidade na gestão fiscal.
4) A concessão de recuperação judicial, sem a comprovação da regularidade fiscal, e a paralisação de milhares de execuções fiscais, em face de devedores em recuperação, provocam enorme prejuízo financeiro à União, frustrando o ingresso de substancial parcela de receita estimada, com violação flagrante dos princípios da supremacia do interesse público e da responsabilidade na gestão fiscal ou gestão fiscal responsável.
5) Não se pode admitir que a regularização do estabelecimento empresarial seja feita somente com relação aos credores privados, e, ainda assim, às custas dos créditos fiscais. A paralisação de milhares de execuções fiscais provoca a frustração de receitas que serão compensadas, invariavelmente, com cortes em despesas de programas sociais ou investimentos, ou, ainda, com o aumento de tributos. Não se pode considerar legítimo que toda sociedade arque com os custos da recuperação judicial de empresas privadas, motivo pelo qual, nos casos que o devedor em recuperação não parcela seus débitos, as execuções fiscais devem seguir tramitando normalmente.
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1 Em 2014, a Lei 13043/2014 acrescentou o art. 10-A à Lei 10522/2002, estabelecendo uma modalidade específica de parcelamento (no âmbito federal) para as empresas em recuperação judicial. Mesmo após a edição da referida lei, a 2ª Seção do STJ tem decidido que sua jurisprudência não sofre os influxos do citado diploma legislativo, sob o fundamento de que deve ser prestigiado o princípio da preservação da empresa (AgInt no CC 147814 / GO). Alguns, inclusive, entendem que o referido diploma é de constitucionalidade duvidosa. Nessa linha, conferir Luis Felipe Salomão e Paulo Penalva Santos, “A Lei de Recuperação Judicial e a questão tributária: Parcelamento instituído para empresas em recuperação não é um direito do contribuinte ao prever requisitos de duvidosa constitucionalidade (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lei-de-recuperacao-judicial-e-questao-tributaria-24022015)
2BOCCATO, Esdras. Quando a recuperação judicial vira moratória tributária: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/contraditorio/quando-recuperacao-judicial-vira-moratoria-tributaria-12122016
3 ALEXY, Robert. (2008). Teoria dos Direitos Fundamentais (2ª ed.). (Tradução de Virgilio Afonso da Silva.) São Paulo: Malheiros, p. 90-94.
4 Contábeis. O portal da profissão contábil: Brasil registra recuperação judicial para cerca de sete mil empresas Em 10 anos de vigência da lei, 5% das empresas voltaram a operar normalmente, 2015. Acesso em 12-06-2018 em: http://www.contabeis.com.br/noticias/24460/brasil-registra-recuperacao-judicial-para-cerca-de-sete-mil-empresas/
5 Ganha cada vez mais destaque a figura das empresas zumbis. Trata-se de empresas que ingressam com o pedido de recuperação judicial, que se arrasta durante anos, sem que a empresa se recupere ou decrete a falência. Viram, em suma, zumbis que nem morrem nem voltam à vida. A multiplicação dessas espécies de mortos-vivos torna o processo de recuperação judicial mais caro, assim como cria um ambiente perigoso e propício para quem quer se dar bem de forma ilícita. Conferir: BAUTZER, Tatiana. Revista Exame. Poucas empresas em recuperação judicial se salvam no Brasil. A lei aprovada em 2005 para facilitar a recuperação de empresas quebradas foi saudada como um avanço. Mas poucas conseguem se reerguer — e acabam enriquecendo aqueles que deveriam salvá-las, 2013. Acesso em 12-06-2018 em: https://exame.abril.com.br/revista-exame/a-intencao-era-boa/
GILSON PACHECO BOMFIM – Mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento – UERJ. Procurador da Fazenda Nacional
Fonte: Jota
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