No último dia 30 de maio, o Congresso Nacional derrubou os vetos presidenciais aos incisos XXIII, XXIV e XXV do artigo 3º da Lei Complementar n° 157/2016, a qual trouxe alterações à Lei Complementar nº 116/2003, que regula o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).
Os referidos incisos tratam da sistemática de recolhimento do ISSQN para serviços de planos de saúde, planos odontológicos e planos veterinários, administradoras de cartão de crédito e operadoras de leasing, entre outros.
As manifestações das empresas dos setores afetados são no sentido de que o custo para reestruturar a operação será tão elevado que pode tornar inviável manter a prestação de serviços em diversos municípios brasileiros.
Cientes desses impactos, parece-nos inevitável uma reflexão acerca da constitucionalidade dos novos incisos XXIII, XXIV e XXV do artigo 3ºda Lei Complementar n° 157/2016 sob o prisma do postulado da proporcionalidade.
A proporcionalidade é um postulado normativo[2], amplamente reconhecido pela doutrina pela jurisprudência, que visa a solucionar o conflito de diferentes princípios que se imbricam, como resultado de uma lei ou ato administrativo que estabelece uma relação de causalidade entre um fim e o meio escolhido para que este fim seja atingido. Trata-se de verdadeira restrição às restrições[3], ao exigir que os meios não sejam desproporcionais ao ponto de limitarem outros direitos e bens constitucionais na sua busca em atingirem o fim escolhido.
Um exame da proporcionalidade divide-se em três exames distintos: 1) a medida escolhida pelo legislador para atingir o estado visado é capaz de fomentar esse fim, isso é: a adoção da medida é capaz de levar ao fim escolhido?; 2) a medida é necessária para a promoção desse fim? Não haveria outras medidas capazes de fomentar o fim sem restringir tanto outros direitos ou bens juridicamente protegidos? 3) as limitações que a medida escolhida traz em relação a outros direitos é proporcional (proporcionalidade em sentido estrito) ao fim que ela promove?
No caso em tela, o legislador escolheu um fim, qual seja a redistribuição do ISSQN arrecadado atualmente pelos municípios em relação a determinados serviços[4] e escolheu a atribuição da competência para cobrar o ISSQN incidente sobre estes serviços ao município onde está localizado o tomador dos serviços como meio para se atingir esse fim.
Tal meio, como já dito, cria custos de conformidade consideráveis às empresas prestadoras dos serviços afetados[5], atingindo-as em sua propriedade e livre iniciativa, bem como afeta os tomadores dos serviços, também em sua propriedade, uma vez que estarão sujeitos a repasses dos custos nos quais as empresas incorreram e – portanto – a serviços mais caros.
A determinação precisa do fim perseguido e dos direitos fundamentais e bens jurídicos que podem ser atingidos pelo meio escolhido, como se verá, é essencial para que seja possível exercer um controle por meio do postulado da proporcionalidade[6].
Diante do arcabouço teórico acima desenhado, é possível argumentar que a medida escolhida pelo legislador para promover a redistribuição dos recursos advindos da arrecadação do ISSQN não passa pelos exames de adequação, de necessidade e de proporcionalidade em sentido estrito.
Não se trata de medida necessária, pois, para se atingir a finalidade de redistribuição do ISSQN incidente sobre os serviços mencionados, bastaria que se editasse norma de direito financeiro, fixando a forma como o ISSQN arrecadado em relação a esses serviços seria distribuído aos municípios, como já existe em relação a outros tributos.
Uma alteração normativa contemplando essa repartição seria um meio menos gravoso, tanto às empresas prestadoras de serviços, que não se veriam sujeitas a consideráveis custos de conformidade inerentes à adaptação a sistemática de recolhimento do ISSQN instituída na Lei Complementar nº 157/2016, quanto aos tomadores de serviços, que não estariam sujeitos aos aumentos de custos dos serviços prestados ou, em alguns casos, à extinção da prestação dos serviços.
Vale nesse caso, o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 855, em que considerou inconstitucional lei do Estado do Paraná que, buscando promover a proteção do consumidor, criava regras na comercialização de Gás Liquefeito de Petróleo, as quais o tribunal entendeu serem desnecessárias, pois o consumidor poderia ser protegido por outras medidas que restringissem menos a liberdade, a livre iniciativa e a igualdade das empresas.
Não bastasse a ausência de necessidade do meio escolhido pelo legislador, a alteração trazida pela Lei Complementar nº 157/2016 demonstra-se desproporcional em sentido estrito.
Com efeito, para se alcançar uma suposta melhor redistribuição dos recursos advindos da arrecadação do ISSQN, o legislador agiu em detrimento da livre iniciativa e da garantia ao direito de propriedade, possivelmente tornando inviável, em muitos casos, a atuação realizada por esses prestadores e colocando em risco, inclusive, o próprio acesso dos consumidores a esses serviços.
Pode-se recorrer, novamente, ao posicionamento seguido pelo STF na já citada ADI n° 855, em cujo julgamento o tribunal entendeu ser desproporcional a relação estabelecida pela lei do Estado do Paraná, pois a proteção ao consumidor que ela buscava era desproporcional às limitações à livre iniciativa e à garantia do direito de propriedade que dela adviriam.
Finalmente, cabe lembrar que, caso os custos que as empresas terão para se adequar à nova sistemática se provem excessivos ao ponto de desestimular as empresas a prestarem o serviço em alguns municípios, então não só o fim da alteração legislativa sob análise não será, de modo algum, fomentado, pois não haverá prestação de serviço no município, logo não haverá imposto a ser recolhido, como também, consequentemente, os munícipes serão privados do serviço que, até a alteração era prestado.
As mudanças trazidas pela Lei Complementar 157/2016 ao artigo 3º da Lei Complementar 116/2003 devem, portanto, enfrentar questionamentos em relação a sua constitucionalidade, uma vez que exibem uma relação desproporcional entre os meios escolhidos para atingir o fim ao qual visam e os direitos que restringem para promoção de tal fim.
[1] Tais considerações estão, inclusive, nas “Razões do Veto”, conforme consta da Mensagem nº 720, de 29 de dezembro DE 2016, editada pela Presidência da República.
[2] Ávila, Humberto, Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios constitucionais, 16ªed.São Paulo: Malheiros, 2015, p.204 e ss. Esse artigo adotará a classificação proposta por Humberto Ávila e tratará a proporcionalidade como um postulado.
[3] PIEROTH, Bodo, SCHLINK, Berhard, KINGREEN, Thorsten e POSCHER, Ralf, Grundrechte- Staatsrecht II, 30ªed. Heidelberg: C.F. Müller, 2014, p. 71 e ss.
[4] Conforme pleito da Confederação Nacional dos Municípios (http://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/vitoria-municipalista-parlamentares-derrubam-veto-do-iss-e-garantem-r-6-bi-aos-cofres-municipais)
[5] A esse respeito vide texto de Alberto Macedo “Vetos na LC 157/2016 evitam explosão de custos de conformidade” (http://www.conjur.com.br/2017-mar-14/alberto-macedo-vetos-lc-1572016-evitam-explosao-custos)
[6] CLÉRICO, Laura, Die Struktur der Verhältnismäβigkeit, 1ªed. Baden-Baden: Nomos, 2001, p. 29 e ss e ÁVILA, Humberto, Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios constitucionais, 16ªed.São Paulo: Malheiros, 2015, p.206-207
Giácomo Paro é mestre em Direito Tributário pela USP, professor do curso de atualização em Direito Tributário do IBDT e na pós-graduação em Direito Tributário do IBDT e sócio do escritório Souto Correa Advogados.
Augusto Bercht é bacharel em direito pela UFRGS, sócio do escritório Souto Correa Advogados.
Fonte: Conjur
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