quarta-feira, 5 de julho de 2017

Panorama da litigiosidade tributária

São recorrentes projetos de lei de mudanças das regras tributárias. Em torno dessas modificações costuma-se propor também anistia de dívidas tributárias contraídas no passado. Em meio a isso tem sido propalada a intenção de, entre outros efeitos, diminuir a litigiosidade entre Fisco e contribuintes. Resta saber se tal intenção se confirma no dia a dia da relação entre jurisdição e jurisdicionados.

A União tem revelado preocupação com potenciais questionamentos. Exemplo disso é a aplicação da lei tributária no tempo em termos de observância dos princípios da anterioridade e anualidade, os quais por sua vez se ligam intimamente à não surpresa. É o que se passou com o artigo 75 da Lei nº 12.973/14, que na época permitiu que a adesão ao Regime Tributário de Transição (RTT) para o ano de 2014 fosse opcional.

São Paulo, entre outros Estados, por sua vez, vem revisando legislação que rege a aplicação de multas. Isso faz parte do Programa de Conformidade, que deve vigorar ainda este ano, tendo o governador se pronunciado por meio do site da Secretaria da Fazenda: " Tínhamos multas que chegavam a 300%, então foi estabelecido teto. Segundo os juros, que ficou limitado à taxa Selic, com piso de 1% ao mês. Terceiro é a diminuição da litigiosidade. Aquele que confessar a dívida, além do teto da multa, poderá ter ela reduzida a 35% do valor devido na multa principal e até 50% na multa acessória."

Seria mais eficaz verificar o quanto os órgãos de fiscalização exercem a função de orientação, além da postura em campo

A evolução jurisprudencial vem sendo positivada para acabar com abusos. O Supremo não chegou a uma fórmula geral, até por que não lhe cabe legislar, mas definiu que multas acima do patamar de 100% do valor do imposto não têm respaldo Constitucional no que se refere ao não confisco, e diria também em razão da proporcionalidade e razoabilidade (RE 833.106/GO). Pelo mesmo fundamento a multa moratória foi limitada a 20% (AgReg em AI 727.872/RS). A partir dessas balizas alguns Estados estão se mobilizando para evitar multas inconstitucionais.

Com efeito, São Paulo experimentou uma avalanche de ações para discutir autos de infração de ICMS após a fase administrativa de julgamento, pois mesmo reconhecendo ser devido o tributo, o contribuinte se viu na contingência de juros e multas absolutamente ilegais e inconstitucionais.

Desde 2009 os juros passaram a ser aplicados por São Paulo com índices diários acima da Selic e a base de cálculo da multa foi atualizada desde o fato gerador do tributo com índice confessadamente de juros, o que não é admitido. Assim, é racional que a jurisprudência seja assimilada. Não nos parece, até aqui, que tenhamos uma mudança de postura, e sim mandatória aceitação dos precedentes.

Outro incentivo para este cuidado, que não tem exatamente relação com uma postura mais amigável, vem do Código de Processo Civil com as novas regras de fixação de sucumbência da Fazenda pública, de tal forma que toda a atenção é exigida para evitar litígios em que sejam potenciais perdedores.

Para aferir a mudança de comportamento dos entes públicos, em desfavor da beligerância, seria mais eficaz verificar o quanto os órgãos de fiscalização exercem a sua função de orientação, além de examinar a postura da fiscalização em campo. Infelizmente, os departamentos fiscais das empresas têm dificuldade extrema de obter orientações do Fisco. Na outra ponta, fiscalizações se mostram agressivas, com lançamentos distorcidos, mesmo quando evidenciado que há erro. Alega-se que o contribuinte pode se defender.

Já o órgão administrativo, seja o Carf, seja o Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) de São Paulo e afins, acabam adotando linha muitas das vezes fiscalista, pois é certo que nessa esfera a relação é de jurisdição e jurisdicionado, sem que tenhamos um Estado Juiz – é precisamente esta a diferença técnica entre os termos "procedimento" e "processo" (formado a partir do tripé processual).

Além disso, em alguns órgãos de julgamento existe o voto de desempate. Sendo os órgãos paritários, importa dizer que no empate de votos mantem-se a autuação sempre que o presidente da sessão for a favor do Fisco. No Carf os presidentes são representantes do Fisco. Há tese para que julgamentos empatados favoreçam o contribuinte, segundo o princípio do "in dubio pro contribuinte".

Diversos desses órgãos têm sido incentivados e/ou exigidos por conta de produtividade. Esta matéria rendeu amplo debate, pois em tese tornaria os julgadores interessados, afetando a sua imparcialidade. Ainda quanto aos órgãos de julgamento administrativo, a operação Zelotes e outras frentes policiais em diversos órgãos de julgamento deixaram os julgadores em estado de alerta, perdendo com isso os contribuintes de boa-fé que apenas buscavam o exercício da sua plena e ampla defesa.

Todos esses ingredientes afetam negativamente a função precípua do órgão de julgamento administrativo. Lançamentos ruins serão chancelados em um primeiro momento, para depois desaguarem no Judiciário.

Há conflito interno na administração pública. Se de um lado existe um incipiente movimento de diminuição da litigiosidade, isso não será alcançado se a fiscalização não for orientada a buscar autuações sustentáveis, ao invés de lançar tributos que cedo ou tarde são desafiados na Justiça.

Da mesma forma, quanto mais os órgãos de julgamento administrativo exercerem plena e imparcialmente a revisão dos lançamentos que chegam para o seu crivo, menos o estado-juiz será chamado para revisar lançamento de tributos e suas inúmeras penalidades.

por Flávio de Haro Sanches é sócio responsável pela área tributária do CSMV Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte : Valor

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