A abordagem positivista nas “ciências humanas” cria divórcios incompreensíveis e distâncias inexistentes entres os diversos estudos pelos humanistas. Isso acontece no que diz respeito à relação entre direito e contabilidade. Não há como analisar o conteúdo jurídico da empresa, tanto no seu viés privado, tal como o direito societário e o direito comercial, quanto no seu viés público, principalmente o direito tributário, dissociado da contabilidade e das demonstrações financeiras. A regulamentação do capitalismo assim como o seu próprio desenvolvimento são dependentes do desenvolvimento do direito e da contabilidade, que aconteceram juntos e interligados. Enquanto o direito, por meio dos contratos, estabelece as responsabilidades da atividade econômica, a contabilidade revela essa mesma atividade, classificando-a de maneira racional. O negócio empresarial, dessa forma, completa-se e se formaliza pelo direito e pela contabilidade.
Se a contabilidade segue a economia (accounting follows economics), talvez tenha sido o direito o principal “culpado” pela separação do estudo do fenômeno empresarial. Ao priorizar o estudo do texto legal e da formalização do negócio (tido como jurídico), a dogmática jurídica isolou o direito de outras matérias do conhecimento humano. Com isso, a abordagem positivista do direito permitiu que essas outras matérias, dentre elas a contabilidade, seguissem sua evolução sem ter contato com a matéria jurídica. No Brasil, a imposição dogmática do direito foi tão forte que pareceu submeter essas citadas matérias. A contabilidade mesmo, durante aproximadamente trinta anos, esteve sob o jugo da legislação tributária. Nesse período, no que as “ciências contábeis” se desenvolveram foi ao largo das demonstrações financeiras tidas como “oficiais”, aquelas que seriam apresentadas ao fisco. Veja-se a importância dada ao controle gerencial da atividade empresarial, não necessariamente conforme os ditames da regulação tributária.
Com a mudança do marco regulatório contábil brasileiro, em 2008, a relação entre direito e contabilidade foi significativamente alterada. Mas, mesmo no início desse processo, as “ciências contábeis” tentaram se proteger, estabelecendo expressamente a primazia da essência sobre a forma. Esse fundamento da “nova contabilidade”, baseada nos “International Financial Reporting Standards” (IFRS), à época implicava o afastamento da forma jurídica escolhida pela empresa e por seus contratantes. Nesse sentido, a preocupação contábil mirava a substância econômica desses mesmos contratos. Com o passar do tempo (momento e processo em que vivemos hoje), a “revolução contábil” trazida com a adoção dos IFRS, cunhados na tradição do “commom law”, impactou sensivelmente o estudo do direito, seja comercial ou tributário, no Brasil, um país de tradição do “civil law”.
Iniciemos por confirmar essa assertiva com a verificação do objetivo da contabilidade (ou das demonstrações financeiras de propósito geral): “O objetivo do relatório contábil-financeiro de propósito geral é fornecer informações contábil-financeiras acerca da entidade que reporta essa informação (‘reporting entity’) que sejam úteis a investidores existentes e em potencial, a credores por empréstimos e a outros credores, quando da tomada da decisão ligada ao fornecimento de recursos para a entidade”. As demonstrações contábeis servem, basicamente, à tomada de decisão, de terceiros interessados em contratar com a empresa (credores em geral) e dos próprios administradores. Nesse sentido, a contabilidade apresenta o patrimônio da pessoa jurídica, que não se confunde com o patrimônio dos seus sócios.
Esse patrimônio da pessoa jurídica é composto pelas diversas relações econômicas que ela mantém com outras pessoas físicas e jurídicas. Tais relações econômicas são classificadas, normalmente, por natureza (contas), e arranjadas conforme a posição em que os terceiros se encontram em relação à empresa considerada: devedores (ativos) e credores (passivo) e sócios (patrimônio líquido). Note-se que essas relações econômicas não são apresentadas de maneira estanque, mas estão dinamicamente interligadas: o que acontece em uma delas impacta todas as demais, em maior ou menor grau. Por exemplo, uma contingência trabalhista que seja paga pela empresa afeta, diretamente, a sua relação com os sócios (redução do lucro e, por consequência, de prováveis dividendos) e com o fisco (redução da base de cálculo dos tributos sobre o lucro); indiretamente, o referido pagamento pode afetar algum empréstimo ou fornecimento a prazo.
Finalmente, ao apresentar o patrimônio da empresa através da classificação das suas relações jurídicas, a contabilidade procura reduzir – se não é possível evitar completamente – o conflito de interesses dos diversos terceiros que mantém negociação com ela. Em linguagem técnica, é o que se chama “assimetria de informações”. Para a tomada de decisão sobre se relacionar ou não com a empresa, os credores em geral devem se munir de informações sobre a sua condição econômico-financeira. Daí o objetivo da contabilidade.
Nessas três abordagens, a saber: (i) identificação do patrimônio da empresa, (ii) que é composto pelo conjunto interligado das suas relações econômicas e (iii) prestação de informações necessária à redução do conflito de interesses (assimetria), a contabilidade concretiza a regulamentação jurídica. Na primeira, por segregar o patrimônio dos sócios do patrimônio da pessoa jurídica, que é o conhecido princípio da autonomia patrimonial. Na segunda, organizando os contratos (relações jurídicas) firmados pela empresa, ainda que não necessariamente formalizados. Na terceira, suportando o que hoje é conhecido como governança corporativa, isto é, a redução do conflito de agência, de maneira restrita, ou dos conflitos de interesses dos diversos contratantes, de maneira mais ampla. A contabilidade recebe o conteúdo jurídico dos negócios empresariais, organiza-os e os devolve aos contratantes e potenciais contratantes da empresa para que decisões sejam tomadas. Em suma, a contabilidade organiza os riscos e os benefícios (remuneração) da empresa em cada uma das suas relações jurídicas.
O direito, então, recebe as informações organizadas para determinar a forma de gerenciamento dos riscos e benefícios (remuneração) da empresa. Por exemplo, quanto maior o risco apresentado na concessão de crédito por um banco à empresa considerada, maiores serão a proteção e a garantia do empréstimo firmado: com base na análise desse risco, as cláusulas contratuais serão redigidas, prevendo covenants mais restritos, se for o caso. Por seu turno, a disciplina formal (jurídica) dada ao contrato, ao regular os riscos e os benefícios (remuneração), deverá ser observado no momento do registro contábil. Dessa forma, mesmo a segregação proposta pela primazia da essência sobre a forma é relativizada. O que há, em verdade, é a consideração, pela contabilidade, dos efeitos econômicos do contrato (relação jurídica) firmado pela empresa, que, eventualmente, podem diferir dos efeitos da proteção jurídica pretendida.
Muito tem se falado e escrito que a evolução do direito, de maneira geral, e da advocacia, de maneira particular, caminha no sentido do desenvolvimento tecnológico, o que há de mais “contemporânea” na automação da atividade jurídica. Acredito, porém, que para a evolução do direito (e da advocacia) faz-se necessária uma volta ao passado, ao tempo em que se estudava o direito juntamente com outros conteúdos das ciências humanas. A interdisciplinaridade é imprescindível na busca do direito, da justiça, da pacificação dos conflitos e da evolução da humanidade. E, no que diz respeito à segurança jurídica em âmbitos econômico e empresarial, essa interdisciplinaridade passa pelo diálogo entre direito e contabilidade.
Edison Carlos Fernandes - Doutor em Direito pela PUC/SP, diretor acadêmico do CEU Escola de Direito, professor do GVlaw e sócio do Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados (FF)
Fonte: Jota.info/
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