Em 13 de março passado foi publicada a Lei 13.419 (Lei 13.419), que introduziu novas regras para o tratamento das gorjetas dos pontos de vista trabalhista, previdenciário e tributário. E, quem diria, todo esse cenário jurídico trará reflexos importantes para a contabilidade também.
A natureza das gorjetas para fins trabalhistas já está disciplinada há bastante tempo pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O art. 457 da CLT, caput e § 3º, estabelecem que as gorjetas serão consideradas “salário”, não importando se foram concedidas de forma espontânea ou se foram cobradas pelo empregador como adicional. A Lei 13.419 introduziu, além do adicional, os valores cobrados por meio de “taxa de serviço” .
Há desafios relevantes a depender da forma do pagamento das gorjetas (facultativa, fixa ou variável). No formato mais conhecido, ou seja, cobradas pelo empregador sob a forma de “taxa de serviço” no montante de 10%, há mais facilidade no controle, mas a destinação e a forma de repasse tornam-se determinantes para fins contábeis e tributários.
Os termos negociados com as entidades sindicais e a forma de implementação dos mecanismos de recebimento e repasse dessas gorjetas vai determinar a contabilização desses montantes como receita e, consequentemente, seus impactos tributários.
De acordo com o que já escrevemos aqui, parece óbvia a premissa de que o dinheiro tem que pertencer à pessoa jurídica para que seja contabilizado como receita e, consequentemente, sofrer impactos tributários. O dinheiro pertencente a outrem (terceiro) tem que ser registrado por esse outro como receita e por ele deve ser tributado. O trânsito de dinheiro não equivale a receita nem do ponto de vista contábil e nem do ponto de vista tributário. A questão, então, é definir quando a receita pertence ou não pertence à pessoa jurídica. E é aqui que entra o tema das gorjetas.
A titularidade do dinheiro depende da análise das relações jurídicas que existem entre o pagador (cliente), o recebedor (fornecedor) e o terceiro. É preciso analisar quem ocupa, juridicamente, o lugar de mero agente nesta relação triangular. A condição de agente é que fará com que o empregador receba um dinheiro que não é seu, desobrigando-o de registrá-lo como receita. Isso fará com que esse montante não integre seus resultados e, portanto, não deva ser tributado. Embora impróprio tecnicamente, o termo que tem sido usado para retratar esse dinheiro repassado é receita de terceiros (na verdade, ele sequer é receita).
Essa discussão sobre as receitas de terceiros denota um falso problema: se o dinheiro não é do empregador, na situação das gorjetas que estamos analisando, ele não é tecnicamente receita (conforme Pronunciamento do Comitê de Pronunciamentos Contábeis n. 47) e lhe é inerente a obrigação de repasse, no caso, aos empregados. Há, aqui, uma conclusão simples, mas que geralmente decorre de uma análise complexa dos documentos jurídicos e da situação fática relativa. São os acordos coletivos, os contratos de trabalho, os mecanismos internos de gestão das informações sobre empregados, pagamentos, recebimentos etc. e, finalmente, a realidade prática das empresas que vai determinar a titularidade do dinheiro.
A Lei 13.419 tentou evitar essa discussão sobre as receitas de terceiros. De acordo com o novo parágrafo 4º, incluído no art. 457 da CLT, as gorjetas não constituem receita dos empregadores. Essa disposição não é necessária para os casos em que as gorjetas são integralmente distribuídas (repassadas) aos empregados. Entretanto, para casos cujas variáveis coloquem a situação em uma zona de penumbra (como no caso em que as gorjetas cobradas formarem um fundo, que será parcialmente distribuído aos empregados após a avaliação de diversos critérios), ela será muito útil, pois traz segurança jurídica, eliminando tentativas de inclusão dos valores nas bases de cálculo do Imposto de Renda (IRPJ), da Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL), das Contribuições ao Programa de Integração Social (PIS) e ao Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e na base de cálculo do SIMPLES Nacional.
Nesta zona cinzenta, entre serem as gorjetas receitas próprias ou de terceiros, está também a situação de retenção dos 20% ou 33% dos valores recebidos pelos empregadores, o que é permitido pela nova lei. Conforme a redação do novo parágrafo 6º do art. 457 da CLT, para fazer frente aos custos sociais, previdenciários e trabalhistas incidentes sobre as gorjetas, as empresas poderão reter esses percentuais, que variam conforme o seu regime de tributação. Para aquelas inscritas no chamado “regime de tributação federal diferenciado”, o percentual será de até 20%; nos outros casos, a retenção poderá ser de até 33%. Os tetos estão estabelecidos legalmente (20% e 33%), mas os percentuais efetivos deverão constar das convenções ou acordos coletivos.
Embora a previsão expressa de que as gorjetas não constituem receita do empregador vá ser utilizada nesta situação, isso não torna clara a natureza desses percentuais e, portanto, não exclui a necessidade de ter-se o tema em mente quando da negociação dos acordos com os sindicatos e quando da implementação dos sistemas gerenciais de controle. São esses elementos que determinarão a contabilização das gorjetas e das parcelas retidas como receita e trarão segurança jurídica para seu não oferecimento à tributação.
* A produção deste artigo contou com a colaboração de minha sócia na área trabalhista, Thereza Cristina Carneiro, no CSMV Advogados.
por Vanessa Rahal Canado - Professora da FGV DIREITO SP. Mestra e Doutora pela PUC/SP. Coordenadora do GEDEC – Grupo de Estudos em Direito e Contabilidade. Membro do GAJ-CCiF – Grupo de Arquitetura Jurídica do Centro de Cidadania Fiscal. Advogada em São Paulo.
Fonte: Jota.info/
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