A viabilização da oferta de energia de geração distribuída está no topo da agenda política do país. Trata-se de ação que contribui para garantir o abastecimento de energia e evitar potenciais cortes de carga. Para incentivar a expansão da oferta, o governo anunciou recentemente a desoneração de PIS e Cofins para a microgeração distribuída. Também anunciou o esforço para articular os Estados para a concessão de benefícios fiscais em relação ao regime de incidência do ICMS.
Tal iniciativa é importante e urgente. No entanto, a questão vai além da concessão de um benefício fiscal – precário, por natureza. Deve ser encarada sob a perspectiva do descompasso entre o tratamento regulatório dado à medição líquida e o tratamento tributário de incidência do ICMS dado pelo Convênio Confaz nº 6/2013.
Para a regulação, é classificada como microgeração distribuída a central geradora de pequeno porte ( ? 100 kW) e que utilize fontes renováveis (hidráulica, solar, eólica ou biomassa). É o caso da maioria dos painéis solares instalados. O sistema de medição líquida permite que seja feita a compensação de energia: o faturamento da unidade geradora conectada à rede resulta da diferença entre a energia consumida e a gerada. Em razão do custo evitado, quanto maior a tarifa paga à distribuidora, mais economicamente atrativo.
O ‘repasse’ da energia pela distribuidora não a transforma em uma operação comercial para o microgerador
No tratamento dado pela Res. Aneel nº 482/2012 há um sistema de compensação no qual a energia injetada pelo consumidor no sistema é cedida, a título gratuito, à distribuidora. Gera-se um crédito para o consumidor, válido por 36 meses, que pode ser compensado com débitos de unidades consumidoras do mesmo CPF/CNPJ atendidas pela mesma distribuidora. Caso o excedente não seja compensado no prazo, é canalizado para a redução das tarifas.
Na contramão do estabelecido pela regulação, o Convênio Confaz nº 6 determinou que a base de cálculo do ICMS deve considerar o valor integral da operação, antes de qualquer compensação, correspondente à quantidade total de energia entregue. Logo, a tributação pelo ICMS do valor integral da operação faz com que o investimento realizado com a instalação do sistema de medição líquida leve mais tempo para se pagar, porque a energia injetada será contabilizada pelo valor sem tributos e a energia consumida pelo seu valor pós-incidência de ICMS. Esse acréscimo de tempo será levado em conta pelos consumidores, o que criaria desincentivos à expansão da microgeração distribuída.
Após diversos pleitos, o Convênio Confaz nº 16/2015 autorizou a concessão da isenção do ICMS pelos Estados que tenham interesse, inicialmente Goiás, Pernambuco e São Paulo. Minas Gerais já havia concedido a possibilidade de redução da base de cálculo para incidir apenas sobre a diferença positiva resultante da compensação. Tais medida, no entanto, se dão a título precário, como benefício fiscal, e não corrigem estruturalmente a distorção.
No que diz respeito à energia injetada na rede e posteriormente devolvida à unidade consumidora, argumentamos que inexiste uma operação comercial, mercantil, de compra e venda dessa energia. Ela é injetada no sistema tão somente por uma realidade física, sua não estocabilidade. A distribuidora, enquanto operadora das redes de distribuição, ocupa posição oportuna no sentido de viabilizar instantaneamente o consumo do excedente gerado pela microgeração. O "repasse" da energia pela distribuidora não a transforma em uma operação comercial para o microgerador. As redes da distribuidora funcionam como uma bateria virtual que permite ao microgerador consumir posteriormente o excedente da energia gerada e não utilizada em um dado momento. Tanto é assim que a regulação restringe a possibilidade de compensação a estabelecimentos de mesma titularidade atendidos pela mesma distribuidora.
Para a técnica jurídico-tributária, a solução adequada para o problema seria o reconhecimento da não incidência do ICMS na hipótese. O caso é análogo a outros precedentes já firmados, a exemplo da não incidência de ICMS na transferência de mercadoria entre estabelecimentos de mesma titularidade, exatamente por não haver uma circulação econômica da mercadoria. Dessa forma, entende-se que o Convênio Confaz nº 6 abrangeu situação não alcançada pela hipótese de incidência abstratamente definida em lei. Isso porque, em relação à parcela injetada na rede e posteriormente consumida pelo microgerador, não há uma circulação de titularidade, ou qualquer outra forma de transferência de propriedade do bem. Além do reconhecimento jurisprudencial, está em trâmite no Senado o PLS nº 294/2014, que emenda a LC nº 87/1996 e arrola o sistema de compensação como uma das hipóteses de não incidência de ICMS sobre o montante compensado.
O tratamento tributário dado à microgeração distribuída vai de encontro ao objetivo no âmbito da regulação de promover a oferta de energia de modo descentralizado e com ganhos ambientais. Chamamos atenção para a necessidade de corrigir essa distorção não somente em uma perspectiva de curto prazo e a título precário, mas também estruturalmente. O reconhecimento de que o ICMS não incide sobre a parcela injetada na rede corrigiria essa distorção. Certamente, essa medida contribuiria para aumentar a segurança do sistema, preocupação que inclusive motivou a contratação da geração própria trazida pela Portaria MME nº 44/2015; porém, o faria de modo mais econômico e eficiente. Além de representar uma mudança estrutural, trata-se de proposta na direção das transformações experimentadas pela indústria de eletricidade no mundo.
por Lívia Amorim e Romilson Volotão são, respectivamente, pesquisadora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (Ceri) da FGV e mestrando em regulação pela FGV Direito Rio
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Fonte: Valor |
Via Alfonsin.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário