A gravidade revelada em matéria recentemente publicada pela ConJur, intitulada “Riscos jurídicos somam até R$ 2,6 trilhões por provisionamentos inadequados”, sugere urgência em avaliar se o sistema vigente, deliberadamente subjetivo, presta-se a determinar os riscos e a necessidade de provisões nas demonstrações financeiras quando se trata de débitos decorrentes de obrigações tributárias. É inequívoco que às dívidas de natureza tributária, pela diversidade e relevância dos valores, algo em torno de 1,5 trilhão de reais, não se pode dar o mesmo tratamento empregado para dívidas de cunho sinalagmático e que geram vantagens financeiras contra perdas de terceiros.
A grande questão está em saber mensurar, segundo o princípio de proporcionalidade, pela “necessidade” e “adequação” da medida adotada para limitação de direitos individuais, se o atual regime de controles dos riscos e provisões atende às suas finalidades, diante de invulgar impacto na economia nacional, e se estas não poderiam ser alcançadas com menores repercussões, de modo a garantir a proteção do crédito ou da solvibilidade das obrigações, mas sem que isso iniba o fluxo financeiro das companhias brasileiras.
De fato, persistem peculiaridades nas hipóteses de processos tributários, as quais mereceriam tratamento mais abrangente pela regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e cuja ausência agrava a situação do contribuinte e afeta a isonomia entre empresas que se encontram em situações equivalentes, por não distinguir a natureza das ações tributárias, como ações do Fisco e ações do contribuinte, por via administrativa ou judicial, quanto à fase processual ou o entendimento prevalecente na jurisprudência, cabível ou não repetição de indébito. Tampouco os valores envolvidos são levados em conta.
Deveras, a maioria das obrigações tributárias são dívidas formadas “ex lege”, por interpretações conflitantes entre Fisco e contribuinte (afastados os casos de sonegação deliberada), e na medida em que estas dívidas são suportadas sem qualquer contraprestação direta para as empresas, tem-se notória divergência com as dívidas privadas ou de caráter sinalagmático.
A avaliação de riscos derivada de questões tributárias não se pode converter em um instrumento de opressão financeira para as empresas, com agravamento das dificuldades daquelas que decidem discutir suas dívidas tributárias, em muitos casos totalmente indevidas ou com jurisprudência amplamente favorável ao contribuinte. Essa atitude da CVM, ao não distinguir, pela especificidade, os processos tributários dos demais, impõe um ônus agravado a quem recorre ao Judiciário e sofre com sua morosidade, dada a diferenciação patrimonial dos respectivos débitos.
Além dos custos altíssimos das garantias financeiras a serem suportadas em processos tributários, com o mesmo regime de calculabilidade de riscos em vigor, a empresa passa a sujeitar-se ao ônus indireto derivado da existência do débito ou dos depósitos, a restringir sua capacidade de financiamento (no caso de provisões desnecessárias), de repercussões das informações e do limite na sua disponibilidade de pagamento de dividendos aos seus sócios ou acionistas.
Tudo bem entendido. Não se propõe aqui qualquer recuo no controle de riscos, de fundamental importância para o compliance no mercado, mas sim que este controle se faça, nas matérias tributárias, em conformidade com suas circunstâncias especiais nas repercussões patrimoniais, sem agravar as condições econômicas dos contribuintes. Foi sempre o reconhecimento dessas peculiaridades típicas do processo tributário que justificou os privilégios do Fisco ou a diferenciação procedimental, como se tem na Lei de Execuções Fiscais.
No que concerne aos demonstrativos financeiros das empresas, estes têm como objetivo prover informações para a tomada de decisões econômicas[1]. Em si mesmos, não conferem natureza jurídica ao conteúdo das contas ou informações que fornece, pois a linguagem da contabilidade é apenas um modo de interpretar a realidade financeira da empresa. O fundamento é a segurança, a redução de riscos e a atribuição da função-certeza ao quanto seja inscrito nas demonstrações da entidade.
O Código Civil, no artigo 1.179, ao prescrever que o empresário e a sociedade empresária são obrigados a seguir um sistema de contabilidade (i), que este deva basear-se na escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação respectiva (ii), para compor as contas do balanço patrimonial anual (iii), a exprimir a situação real da empresa (iv), predispõe um dever de ordenação das contas a serem apuradas, com um sentido bem marcado, qual seja, o da classificação objetiva dos direitos e obrigações do patrimônio da entidade por cada uma destas.
Para atingir estes fins, o princípio do conservadorismo e aquele da prudência impõem cautelas aos lançamentos, de sorte a evitar situações de risco e fornecer informações que visem a proteger a vida financeira da empresa contra incertezas e contingências decorrentes de eventos futuros que possam resultar em perdas para a empresa, para credores, para seus investidores ou para o mercado em geral.
Desse modo, pelo princípio da prudência, necessariamente deve constar da contabilidade da empresa informações que permitam acautelar a todos os interessados sobre riscos ou contingências em dado exercício financeiro, a exigir da empresa reservas de disponibilidades financeiras no mesmo montante representativo de créditos para os quais persista alguma margem de risco para o seu recebimento ou para algum desembolso. Evitam-se riscos,[2] prejuízos difusos para acionistas, credores e investidores[3].
Nesse universo de riscos empresariais, de se ver, contingências decorrentes da inexecução de obrigações ex voluntate ou ex lege, ou ainda da alegação de interesses fundados em discussões sobre a legitimidade ou validade da legislação aplicável, essas situações não têm que ver com fatos relativos a autuações de duvidosa fundamentação. São hipóteses com riscos diversos para o mercado.
Para que sejam ponderadas as classificações de riscos e contingências, a Deliberação CVM 489, de 3 de Outubro de 2005, que aprovou o Pronunciamento Ibracon NPC 22, sobre “Provisões, Passivos, Contingências Passivas e Contingências Ativas”, foi o documento que orientou os pressupostos para determinar a qualificação dos riscos sobre a incerteza de fatos futuros. Mais adiante, aquela foi revogada pela Deliberação CVM 594/09, que, por sua vez, aprovou o Pronunciamento Técnico CPC 25 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, com os novos “critérios de reconhecimento e bases de mensuração apropriados a provisões e a passivos e ativos contingentes e que seja divulgada informação suficiente nas notas explicativas para permitir que os usuários entendam a sua natureza, oportunidade e valor”. O regime é de uma complexidade desmedida.
Segundo as definições utilizadas na Deliberação CVM 594, de 15 de setembro de 2009, “provisão” é um passivo de prazo ou de valor incertos. Assim, qualifica-se a provisão como típico “passivo”, na forma de obrigações presentes e com possibilidade de saída de recursos para liquidar a obrigação. Em matéria tributária, porém, não há contrapartida de benefícios econômicos vinculados à obrigação. E têm-se os passivos contingentes, que são obrigações possíveis, mas sem saída de recursos relacionados a benefícios econômicos. Provisões são despesas dedutíveis; passivo contingente, de outra banda, não deve ser contabilizado, mas apenas lançado em notas explicativas.
Quando se fala de “passivo” em virtude de contencioso tributário, não se tem propriamente uma “obrigação presente”, decorrente de eventos já ocorridos, cuja liquidação resultará em uma entrega de recursos. Isto, sim, é algo que remete ao conceito de “passivo”. As provisões prestam-se a cobrir expectativas de perdas ao longo de dado exercício financeiro e são dependentes de um sistema de previsão de riscos[4], pela prudência contra a inadimplência e perdas que se podem gerar pela cobrança de débitos e outros. Trata-se de uma conta constituída para prevenir as finanças da empresa contra inadimplências, redução de ganhos ou dificuldades de recebimento de valores dos clientes. Não se trata, a provisão, de alguma espécie de “garantia” especial contra interesses de credores, porém. Cuida-se, sim, de uma conta que visa a prevenir a capacidade financeira da empresa.
A publicação das Notas Explicativas está prevista no parágrafo 4º do artigo 176 da Lei 6.404/76, o qual estabelece que "as demonstrações serão complementadas por Notas Explicativas e outros quadros analíticos ou demonstrações contábeis necessários para esclarecimento da situação patrimonial e dos resultados do exercício". O seu limite corresponde ao esclarecimento dos resultados do exercício e da situação patrimonial. Ora, se no entender da gestão de uma dada empresa há uma dúvida sobre ser ou não necessária a inclusão de uma informação em nota, avaliada como “possível”, posto que também há dúvida sobre ser “remota” a ocorrência da necessidade de provisão futura, não se deve preferir o regime mais gravoso quando o próprio sistema de regras especiais afasta a necessidade de depósito do valor devido, por exemplo.
A regulação da matéria, ao não separar o tratamento do risco por matéria, mormente aquelas de natureza tributária, causa gravíssimos prejuízos para as empresas e para a economia nacional, pelo volume dos valores envolvidos.
A falta de previsibilidade sobre critérios mais objetivos para que as empresas identifiquem o cabimento de “provisões” em processos tributários colocam as empresas brasileiras em grave insegurança jurídica, ao realizarem provisões desnecessárias ou diferenciadas quando lançadas na contabilidade de contribuintes concorrentes, ainda que se encontrem em situações equivalentes.
Não se deve confundir o direito de defesa em matéria tributária, de base constitucional, com riscos inerentes a todas e quaisquer pretensões fiscais ou, o que é pior, com um passivo expectável, quando estas não decorrem da aplicação ordinária do tributo devido. Ao mais, têm-se os casos que envolvem direitos ao reconhecimento de isenções, devolução de débitos tributários ou casos de parcelamentos de tributos.
O Tributo é uma obrigação legal devida quando ocorre o fato jurídico tributário qualificado em lei, mediante a presença dos elementos da obrigação tributária. Neste, a magnitude dos valores exigidos restringe-se a uma pretensão de lançamento sobre fatos geradores passíveis de julgamento final, i.e. ainda não confirmados, os quais poderão ser atacados em processo administrativo, sob a égide do devido processo legal, livre contraditório e ampla defesa, e que pode chegar até ao Supremo Tribunal Federal.
O reconhecimento dessa indeterminação da situação jurídica do débito até trânsito em julgado definitivo é o que justifica a vigência do artigo 170-A do CTN, ao prever que “É vedada a compensação mediante o aproveitamento de tributo, objeto de contestação judicial pelo sujeito passivo, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial”. Quer dizer, por ações do Fisco ou do contribuinte, a tendência é que o processo tributário só ultime seu procedimento em recursos especial ou extraordinário, a variar segundo a hipótese material.
Essa hipótese não tem qualquer equivalência com a cobrança dos créditos privados, nos quais a parte concorre com a vontade para a constituição da obrigação. A estas, com procedência, é razoável a aplicação do conceito de “obrigação não formalizada”, como aquela que surge quando uma entidade, mediante práticas do passado[5], políticas divulgadas ou declarações feitas, cria uma expectativa válida por parte de terceiros e, por conta disso, assume um compromisso. Na matéria tributária, o lançamento pode ser efetuado até mesmo quando a Empresa tem firme convicção do correto cumprimento de todas as obrigações principais ou acessórias.
Destarte, não se pode confundir ou tratar dívidas tributárias como algo equivalente aos débitos de natureza privada, mormente quando se trata de “passivo contingente”, entendido como “(a) uma obrigação possível que resulta de eventos passados e cuja existência será confirmada apenas pela ocorrência ou não de um ou mais eventos futuros incertos não totalmente sob controle da entidade; ou (b) uma obrigação presente que resulta de eventos passados, mas que não é reconhecida porque: (i) não é provável que uma saída de recursos que incorporam benefícios econômicos seja exigida para liquidar a obrigação; ou (ii) o valor da obrigação não pode ser mensurado com suficiente confiabilidade.”
É verdade que o valor pode ser mensurável, mas não é provável que a entidade o deva liquidar, porque assume o empenho de defender o seu patrimônio contra eventuais ilegalidades ou inconstitucionalidades do Fisco, ou quando o seu direito vê-se amparado em lei e há simples dúvida sobre o modo de aplicação por parte das autoridades fazendárias, ou casos de multas indevidas.
Por isso, a adequada aplicação do item 42 do CPC 25 revela-se inteiramente coerente com essas premissas, e a empresa deve empenhar-se ao efetuar a melhor estimativa, segundo as circunstâncias, e que a classificação pode ser modificada por reavaliação efetuada a cada balanço: “Os riscos e incertezas que inevitavelmente existem em torno de muitos eventos e circunstâncias devem ser levados em consideração para se alcançar a melhor estimativa da provisão”. E o item 59: “As provisões devem ser reavaliadas em cada data de balanço e ajustadas para refletir a melhor estimativa corrente. Se já não for mais provável que seja necessária uma saída de recursos que incorporam benefícios econômicos futuros para liquidar a obrigação, a provisão deve ser revertida.” É inconteste que estas regras devem ser observadas segundo as mutações processuais ou da jurisprudência em casos de natureza tributária, para afirmar a melhor estimativa de risco, que poderá sempre variar no tempo, conforme o avanço do processo ou das situações materiais, não sendo estática, mas dinâmica, ao longo dos acontecimentos.
Situações há em que a jurisprudência ao tempo do início do processo é desfavorável, mas não se assegura, só por isso, que a decisão final será igualmente desfavorável à empresa, pois outros fatores podem influenciar no desfecho do caso, como a matéria de fato, o estágio do processo, mudanças jurisprudenciais entre outros. Por isso, nada impede que a empresa siga o caminho de uma estimativa menos gravosa, a cada etapa de alteração favorável do cenário. A realização de provisões desprovidas de justificativas, em conformidade com a diferenciação dos débitos, não se sustenta.
A estrita legalidade em matéria de obrigações é um imperativo de preservação do direito de propriedade. Como as provisões equivalem a uma redução da capacidade financeira da empresa, onde o próprio sistema tributário determina os efeitos de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, por Lei Complementar, como ocorre com o artigo 151, do CTN, justamente para afastar as repercussões dos débitos tributários sobre as empresas, como cautela, não poderia um ato desprovido de juridicidade equivalente, ordenar condutas reflexas em matéria tributária, como é o caso das contingências relativas a dívidas tributárias em processos administrativos — com exigibilidade suspensa — que se dirijam a vincular a empresa a uma contingência desnecessária ou mesmo a lançamentos em notas explicativas de excessivo rigor.
Em conclusão, a responsabilidade da entidade empresarial sobre as informações que presta é exigida, mas não se lhe pode tolher o direito de avaliação coerente com a realidade e, no caso de dúvida fundada, a opção que for, no momento, mais coerente com sua situação jurídica e processual, de sorte a respeitar o princípio de cautela, i.e., “evitar aumentar desnecessariamente a avaliação de risco”, mormente no que concerne às questões de natureza tributária.
Deve-se prevenir o risco e criar meios para a segurança jurídica coletiva do mercado, mas não às custas de sacrifícios desmedidos, dados os valores sobremodo relevantes que o contencioso tributário envolve.
Some-se ainda a gravidade de converter os advogados das ações tributárias em verdadeiros “fiadores” dos auditores ou agentes financeiros das empresas, quanto à classificação dos tipos de riscos, e que tantos dissabores causam àqueles que atuam na defesa das empresas, inclusive com ameaças da pretensão de transferir responsabilidades patrimoniais a quem cumpre a função de postulação e defesa administrativa ou judicial. Ora, pelos elevados valores envolvidos, morosidade judicial e contínua mutação jurisprudencial que caracterizam nosso processo tributário, deveras, justifica-se o império da cautela nesse tipo de atitude. Este é só mais um dos tantos excessos que esse tormentoso assunto expõe.
Em um ordenamento com intensa conflitividade em matéria tributária, como o nosso, onde mais de 40% dos processos em curso são de natureza fiscal, labora contra a economia nacional interpretações da legislação que não leve em conta a diferenciação material dos processos, a induzir provisões ou divulgações de notas explicativas desnecessárias de contingências passivas. Evidentemente, o princípio da prudência impõe rigores, mas não se pode deixar de atentar para as mutações do processo, da jurisprudência ou das fases processuais. Deve vigorar o princípio da proibição de excesso na classificação das contingências.
A pretexto de controle de riscos, ao passivo principal não se pode assomar o passivo do custo com garantias tributárias e ainda aquele decorrente de provisionamentos ou contingências desnecessários ou excessivos. Uma solução para este problema é urgente, pelo quanto tem concorrido para afetar a economia e a capacidade financeira das empresas brasileiras.
Por tudo isso, seria oportuno que a CVM destacasse regras típicas para avaliações de processos em matéria tributária, com a finalidade de propiciar maior segurança jurídica coletiva no mercado, segundo o controle de riscos pela confiança nas informações, mas sem que isso afete a isonomia entre concorrentes do mesmo mercado, princípio caro tanto ao Direito Tributário, quanto ao Direito Econômico (artigo 150, II e artigo 170 da Constituição Federal). As diferenças relativas à formação do débito, ao amplo estatuto constitucional das limitações ao poder de tributar e ao regime especial de garantias das dívidas tributárias, dentre outros, justificam o tratamento típico.
[1] Cf. IUDÍCIBUS, Sérgio de. Teoria da contabilidade. 7ª edição, atlas, 2004, p. 23-25;
[2] Cf. veja-se: GOMES, Orlando. Obrigações. 8ª ed., RJ: Forense, 1990, p. 221-231;
[3] Sobre as possibilidades de inadimplemento, veja-se: GOMES, Orlando. Obrigações. 8ª ed., RJ: Forense, 1990, p. 170 e ss.;
[4] Para maiores considerações, cf. o Pronunciamento Instituto dos Auditores Independentes do Brasil - IBRACON nº 1 de 30/06/1992.
[5] PRONUNCIAMENTO TÉCNICO CPC 25: “Evento passado - 17. Um evento passado que conduz a uma obrigação presente é chamado de um evento que cria obrigação. Para um evento ser um evento que cria obrigação, é necessário que a entidade não tenha qualquer alternativa realista senão liquidar a obrigação criada pelo evento. Esse é o caso somente: (a) quando a liquidação da obrigação pode ser imposta legalmente; ou (b) no caso de obrigação não formalizada, quando o evento (que pode ser uma ação da entidade) cria expectativas válidas em terceiros de que a entidade cumprirá a obrigação.”.
por Heleno Taveira Torres é professor titular do departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da USP e advogado.
Fonte: Conjur
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