De há muito tornaram-se comuns autos de infração lavrados pelo fisco em todos os estados da Federação que simplesmente ignoram a Constituição Federal e até mesmo as leis tributárias do Estado.
Quando falamos em Justiça Tributária, isso implica, primeiramente, em respeito absoluto à Constituição. Qualquer estudante de direito que a tenha lido sabe que as normas inferiores que a desrespeitem não possuem valor algum.
Há inúmeros exemplos que demonstram tal comportamento, a maior parte deles sem a atenuante da ignorância, mas com as agravantes da má fé, do desrespeito e do desejo de transformar os contribuintes, em simples vitimas dessa ditadura fiscalista a que estamos submetidos.
Veja-se o que ocorre quando agentes fiscais aplicam multas pelo não cumprimento das chamadas obrigações acessórias. Tais multas pecam quase sempre por inobservância da Constituição Federal e das leis estaduais, além de violar o princípio constitucional do não confisco (Constituição Federal, artigo 150, parágrafo 3º, IV).
Uma empresa paulista sofreu pesada multa pela suposta infração assim descrita:
“ Efetuou, nos meses de julho e agosto de xxxx, emissão de Notas Fiscais - modelo 22, n.ºs ...................., no valor de R$ 2.088.527,80(...)com inobservância de requisito regulamentar,tendo em vista a não emissão dos documentos fiscais conforme determinado pela Portaria CAT 79/03, conforme se comprova pelas Notas Fiscais juntadas. A AUTUADA só começou a cumprir a Portaria CAT 79/03 a partir de..... 2008, em desacordo com o determinado no artigo 9º-A da Portaria CAT 79/03...”
Portarias são atos administrativos e, tanto quanto os decretos, não podem determinar nada que a lei não tenha previsto, como se vê no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal. Decretos ou portarias que não respeitem a CF são inexistes ou nulos.
Ora, a Lei Complementar (Estadual) 939/2003, considerada neste Estado como o “Estatuto do Contribuinte”, diz que:
“Artigo 8º - A Administração Tributária atuará em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público, eficiência e motivação dos atos administrativos.”
Não atende ao interesse público nem ao princípio da razoabilidade que o contribuinte seja autuado numa eventual omissão, quando todos os dados ou a maior parte deles já seja de conhecimento do Fisco. O livro de Apuração, por exemplo, é um apanhado dos mesmos informes que constam da GIA, já entregue ao Fisco. O livro de Registro de Utilização de Documentos serve apenas para anotar ocorrências (que o fisco por dever de ofício tem em seu poder) e registrar a utilização de notas fiscais, estas objeto de autorizações expedidas pelo próprio fisco ou mesmo emitidas eletronicamente, quando os dados já estão de posse do fisco no momento da emissão. Os demais livros fiscais são feitos por meios eletrônicos e seus dados estão em poder do Fisco. Não há razão, pois, para que se aplique multa nesse caso, eis que a omissão ou falha em nada interfere no pagamento do tributo.
Os princípios de legalidade, moralidade, e razoabilidade, contidos na Constituição Federal e também na estadual, são repetidos na Lei Complementar estadual acima citada.
Sempre foi tradição, na legislação fiscal paulista, que as eventuais irregularidades de natureza fiscal, que não impliquem em falta ou atraso no recolhimento de tributo, pudessem ser corrigidas sem qualquer penalidade, mediante prévia notificação ao contribuinte.
Essa tradição está contida na Instrução CAT 10/68 de 18 de dezembro de 68 e reconhecida pelo artigo 52 do decreto 46.674/2002, que regulou a Lei 10.941/2001, que trata do processo administrativo tributário. Realmente, diz o artigo 52 do decreto 46.674, regulamentando o artigo 66 da lei 10.941/2001:
“Art. 52 – O auto de infração pode deixar de ser lavrado, nos termos de instruções expedidas pela Secretaria da Fazenda, desde que a infração não implique falta ou atraso de pagamento de imposto.”
Portanto, não poderia ser lavrado o auto, que não indica qualquer “falta ou atraso de pagamento de imposto”, eis que o ato administrativo deve pautar-se pelas normas constitucionais já mencionadas.
Nesse sentido é a jurisprudência do Tribunal de Impostos e Taxas deste estado, como se vê, nas seguintes decisões:
“IRREGULARIDADE DE ESCRITURAÇÃO – Falta que não redundou em não recolhimento do tributo – Apelo provido – Decisão unânime – Processo DRT-1 nº 18983/77 – 3ª. Câmara – Rel Jamil Zantut.” (Ementário TIT, 1981, Secretaria da Fazenda, pág. 178)
“INFRAÇÃO FORMAL – A presença fiscal é mais eficaz pela orientação do que pela autuação. A primeira providência fiscal há de ser uma advertência por escrito no RIC ou por notificação especial ao contribuinte. Auto insubsistente. – Proc. DRF-13 – nº 4.279/68 – Decisão de 4/10/68 – 1ª. Câmara .” (Ementário ICM- Manuais Utilitas- 1970, pág. 114)
“INFRAÇAO REGULAMENTAR – Irregularidade na escrita fiscal – Aplicação das Instruções CAT nº 10/68 – arquivando-se o processo – Proc. SF-120.342/67 – Decisão de 3/10/69 – 2ª. Câmara” (Ementário ICM- Manuais Utilitas- 1970, pág. 114)
“INFRAÇÕES ABRANGIDAS PELAS INSTRUÇÕES CAT 10/68 – Não devem ter suas penas relevadas, mas, sim, os processos devem ser simplesmente arquivados.” (Proc. DRF-1 nº 5.808/68 – Decisão de 18/2/70 – Câmaras Reunidas) (Ementário ICM- Manuais Utilitas- 1970, pág. 115)
Embora tais decisões sejam antigas e o TIT hoje não as aplique isso nada altera a situação legal. O TIT, como se sabe, tem se transformado ao longo do tempo em órgão julgador fiscalista, sem observar com imparcialidade as questões que hoje são apresentadas. Já não merece o nome de tribunal, o que é lamentável, pois há entre seus membros profissionais do direito que não são ignorantes.
No auto descrito afirma-se que o contribuinte teria praticado a infração descrita no artigo 250 do RICM. Tal disposição, contudo, não tem base em lei. Ademais, afirma que:
“A emissão e a escrituração de documentos e de livros fiscais poderão ser efetuadas por sistema eletrônico de processamento de dados, na forma e condições estabelecidas pela Secretaria da Fazenda (Lei 6.374/89, artigo 67, parágrafo 1°, e Convênio ICMS-57/95...”
Portanto, o próprio regulamento diz que tal obrigação é facultativa, eis que esse é o significado de poderá. E a lei 3374/89 não trata do assunto como obrigação. Como diz a Constituição Federal: ninguém é obrigado a nada, sem lei que o determine.
O conceito de lei é indiscutível: é o ato que decorre de decisão dos membros do Poder Legislativo. Da mesma forma, os tais convênios não são leis, mas meros atos administrativos.
Nosso saudoso mestre, professor Geraldo Ataliba, em artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo” de 25/06/1972 já ensinou que:
“São inconstitucionais todos os convênios pretensamente celebrados pelos secretários da Fazenda dos Estados, a pretexto de cumprir o preceito constitucional supracitado. E o são porque os intérpretes da Carta Constitucional pretenderam obedecer a um mandamento constitucional com abstração do sistema constitucional e suas exigências fundamentais. .... Cada ‘convênio’, cada ‘aprovação’, cada aplicação é um atentado à ciência, uma afronta às nossas instituições. Exige o texto constitucional que os ‘convênios’ sejam ‘celebrados’ pelos Estados e depois ‘ratificados’. A celebração cabe ao Executivo. A ratificação ao Poder Legislativo. ‘Estado’ não é ‘Executivo’...”
Eis aqui caso de calar a inobservância das normas constitucionais e legais. Essa é uma das razões pelas quais o judiciário se vê cada vez com ações no campo do direito tributário. Os casos são tantos, que somos obrigados a dividi-los em capítulos. A novela continua na próxima semana.
por Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Conjur
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