Foi divulgada uma pesquisa realizada por neurocientistas da Universidade Johns Hokins (Estados Unidos) concluindo que os músicos de jazz, ao improvisarem a melodia, ativam a área do cérebro responsável pela sintaxe, e não a área responsável pela semântica. Interpretando essa pesquisa, Ruy Castro chega a duas conclusões: primeiro, que os amantes do jazz já sabiam desse resultado, embora não o tenham comprovado cientificamente, como agora é feito. Segundo, a improvisação não produz conteúdo (essência), mas forma.
A lição de Ruy Castro me lembrou, também, duas coisas: primeiro, a bronca que levei de uma professora, quando me aventurei pelo curso de Letras. Na aula de Estudos Literários, mais especificamente sobre poesia. A professora, que também havia se formado em direito e tinha a minha idade, repreendeu duramente uma resposta minha quando tentei separar a forma do conteúdo: “em arte”, disse ela, “forma é conteúdo”, como na poesia de Carlos Drummond de Andrade que estávamos analisando.
Segundo, quando da implantação dos padrões internacionais de contabilidade (IFRS) no Brasil, houve quem gritasse em alto e bom som, a plenos pulmões: “o que importa agora é a essência econômica, e não mais a forma jurídica”. Ou seja, foi erguida a bandeira da primazia da essência sobre a forma, o que instaurava um conflito entre contabilidade (essência) e direito (forma) – e mais, resultando na vitória da primeira.
Passado algum tempo, o estudo menos apaixonado da adoção dos IFRS pelas empresas brasileiras demonstra que não existe conflito entre contabilidade e direito, em que a primeira se sobrepõe ao segundo. Muito ao contrário.
Tanto o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) quanto a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) estão diante de algumas questões que envolvem, antes da definição sobre o reconhecimento contábil de tal fato econômico, a definição a respeito dos seus benefícios e dos seus riscos, o que implica, necessariamente, a análise jurídica. Trata-se dos instrumentos híbridos e dos ativos regulatórios nos casos de contratos de concessão e serviço público – cujos detalhes não cabem serem comentados neste momento.
Em ambos os casos, como em qualquer fato econômico que deva ser reconhecido nas demonstrações contábeis, os benefícios e os riscos de cada parte da transação são determinados por suas características jurídicas. Assim é no mais marcante exemplo do “suposto” conflito entre substância (essência) e forma, o leasing financeiro.
Posto que a propriedade do bem, objeto do contrato, não seja desde logo transferida do arrendante para o arrendatário, este último já o registra como seu ativo. E por quê? Porque, por força do contrato de leasing financeiro, muito embora a propriedade seja preservada como garantia do arrendante, ao arrendatário já são prontamente transferidos todos os benefícios (utilização e gozo dos frutos) e todos os riscos (responsabilidade pelos tributos, pelo seguro, o risco da obsolescência etc.).
Assim também é com o registro contábil de uma debênture perpétua ou de ações resgatáveis, exemplos de instrumentos híbridos. A relação jurídica existente entre a empresa emissora do título e o seu titular, tal como adequadamente descrita em contrato, definirá se o respectivo valor será reconhecido no passivo ou no patrimônio líquido daquela empresa – alternativa que, diga-se de passagem, interfere em outras relações jurídicas, como o cumprimento de cláusulas contratuais de garantia (“covenants”).
Dessa forma, é imperioso concluir que a adoção dos IFRS, particularmente com o seu princípio da primazia da substância (essência) sobre a forma, não criou um conflito entre a contabilidade e o direito. Muito ao contrário, tornaram essas disciplinas ainda mais intrinsecamente unidas.
por Edison Fernandes
Fonte: Valor Econômico
Via CFC
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