[RESUMO] Autores defendem a substituição dos cinco atuais tributos sobre bens e serviços por um único imposto, o IBS, de modo a tornar mais equitativo e transparente o regime brasileiro de tributação do consumo, considerado o mais complexo do mundo.
Não se trata de elevar ou reduzir a carga tributária —que saltou de 26% do PIB para 33% entre 1996 e 2005, estabilizando-se entre 32% e 33% desde então. Esse é um valor elevado para um país em desenvolvimento, mas o que define a carga tributária é o nível das despesas públicas, não a estrutura dos impostos.
O objetivo da reforma tributária é a melhoria da qualidade do sistema tributário, sob o primado dos princípios da simplicidade, transparência, neutralidade e equidade.
Simplicidade advinda de base de incidência tributária de contorno bem definido, regras de fácil compreensão e o mínimo de exceções e regimes especiais.
Transparência que permita ao cidadão conhecer, efetivamente, com quanto contribui de tributo ao Estado, de modo que possa fazer suas escolhas de políticas públicas consciente e democraticamente.
Neutralidade para não distorcer a forma de organização das empresas, a tecnologia que adotam e suas escolhas de mercados.
Equidade no tratamento dos cidadãos e das empresas, dosando a carga tributária sem privilégios.
O sistema tributário brasileiro não tem nenhum desses atributos. Não é simples nem transparente. Por não respeitar o princípio da equidade, é regressivo, onerando mais a parcela mais pobre da população que as famílias de maior renda. Por não ser neutro, é extremamente ineficiente, prejudicando sobremaneira o crescimento do país.
A agenda de reforma tributária é ampla e envolve mudanças em todas as bases —consumo, renda, patrimônio e folha de salários. No âmbito dessa agenda, o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) desenvolveu, nos últimos anos, uma proposta abrangente de reforma da tributação do consumo.
Essas ideias deram origem à Proposta de Emenda Constitucional nº 45, de 2019 (PEC 45), apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, cujas principais características são detalhadas neste artigo.
Problemas do atual modelo brasileiro de tributação do consumo
Há um amplo consenso de que o modelo brasileiro de tributação do consumo de bens e serviços é altamente problemático e responde por parte importante das distorções do nosso sistema tributário, especialmente por seu impacto negativo sobre a produtividade e o crescimento.
Parte relevante desses problemas é de natureza estrutural e está relacionada à fragmentação da base de incidência entre cinco tributos, geridos por três esferas de governo: ICMS (imposto estadual incidente sobre mercadorias e serviços de transporte e comunicação), ISS (imposto municipal sobre serviços), IPI (imposto federal sobre produtos industrializados) e PIS e Cofins (contribuições sociais federais).
Essa distinção, feita originalmente na Constituição, resulta numa infinidade de leis, decretos, regulamentos e portarias emitidos pelas três esferas de governo: União, estados e municípios. Além disso, cada ente federativo criou seus próprios benefícios fiscais, regimes especiais, isenções, reduções de bases de cálculo e alíquotas diferenciadas.
Outras distorções resultam das características de cada um dos tributos, como a cobrança do ICMS no estado de origem nas transações interestaduais (base da guerra fiscal entre os estados), a incidência cumulativa do ISS e de parte do PIS/Cofins, as restrições à apropriação de créditos nos tributos não cumulativos e a dificuldade de recuperação de créditos acumulados.
A consequência é o regime de tributação do consumo mais complexo do mundo. Não por acaso, entre cem países considerados em uma escala de menor a maior complexidade tributária, o Brasil foi classificado em último lugar.
A infinidade de regras que podem ser interpretadas de forma diferente pelo fisco e pelos contribuintes resulta em imenso contencioso e perene insegurança jurídica. Estudo do Centre for Business Taxation da Universidade de Oxford, no Reino Unido, para a verificação da incerteza quanto à tributação de pessoas jurídicas em 21 países, deixou o Brasil em penúltimo lugar.
As consequências dessas distorções são o altíssimo custo burocrático de pagar tributos, o enorme contencioso tributário, o aumento do custo dos investimentos, a perda de competitividade da produção nacional e uma organização extremamente ineficiente da economia brasileira. Para a sociedade, o resultado é uma expressiva redução do potencial de crescimento do país e uma grande diminuição do poder de compra da população.
As bases da proposta
Todos esses problemas seriam resolvidos se o Brasil adotasse o padrão mundial de tributação do consumo de bens e serviços, através de um imposto sobre o valor adicionado (IVA) bem estruturado.
O IVA é um imposto não cumulativo, cobrado ao longo da cadeia de produção e comercialização. Em cada etapa da cadeia, recolhe-se a diferença entre o imposto incidente nas vendas (débito) e o imposto cobrado sobre os insumos utilizados (crédito). As características de um bom IVA são conhecidas: incidência sobre base ampla (bens, serviços e intangíveis), tributação no destino, alíquota uniforme (sem exceções), adoção plena da não cumulatividade, desoneração dos investimentos e das exportações e devolução de créditos acumulados.
Um imposto com essas caraterísticas é, efetivamente, um imposto sobre o consumo, ainda que cobrado em várias etapas.
Por que, então, a substituição dos tributos atuais por um IVA nunca foi feita?
Ao analisar os principais entraves à reforma tributária no Brasil, identificamos três questões que, se não forem bem equacionadas, tendem a dificultar a aprovação de mudanças: a) a necessidade de garantir a autonomia dos entes federativos; b) o fato de que há vários investimentos realizados com base no sistema atual; e c) a resistência da União, dos estados e dos municípios a uma potencial perda de receita. O tratamento técnico desses três entraves é o diferencial da proposta do CCiF —consolidada na PEC 45— em relação às propostas anteriores.
A base da proposta do CCiF é a substituição dos cinco tributos atuais —PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS— por um único imposto sobre bens e serviços (IBS), que tem as características dos melhores IVAs do mundo, em particular a adoção de uma alíquota uniforme para todos os bens e serviços. As principais características da proposta são apresentadas a seguir.
Transição para as empresas e para a sociedade
A transição para o novo modelo de tributação será gradual, ao longo de dez anos. Para operar essa passagem de forma segura, o IBS seria criado com alíquota de 1%, mantida por um período de teste de dois anos, reduzindo-se compensatoriamente a alíquota da Cofins.
Após o período de teste, a transição seria completada em mais oito anos, através da redução progressiva das alíquotas dos cinco tributos atuais (que seriam extintos no final da transição) e da elevação da alíquota do IBS. Tal modelo permite que a substituição seja feita mantendo-se a carga tributária constante.
O período de transição se justifica pela necessidade de preservar os investimentos feitos com base no sistema tributário atual, inclusive o gozo de benefícios fiscais que deixarão de existir. O prazo de dez anos não é, no entanto, um dogma. Desde que garantida a segurança jurídica das empresas que realizaram investimentos, a transição pode, eventualmente, ser acelerada.
Destaque-se que esse modelo permite uma saída organizada da guerra fiscal do ICMS, pois à medida que as alíquotas do ICMS forem sendo reduzidas, os benefícios perdem força, sendo extintos ao final da transição.
Arrecadação e fiscalização
A cobrança do IBS será centralizada e gerida de forma coordenada pela União, pelos estados e pelos municípios. Para os contribuintes, será apenas um imposto, havendo um único recolhimento mensal, mesmo para as empresas que possuem estabelecimentos espalhados por todo o país.
A distribuição da arrecadação entre os diversos entes da federação ocorrerá de forma automática por um comitê gestor, com governança paritária da União, estados e municípios. O comitê gestor será responsável pela arrecadação, devolução dos créditos e coordenação da fiscalização —tudo de forma harmonizada, com a participação dos fiscos das três esferas de governo.
Fortalecendo a federação e a descentralização mediante a ampliação da base tributária de estados e municípios
A alíquota do IBS resultará da soma de outras três: uma federal, uma estadual e uma municipal, sendo o imposto distribuído proporcionalmente à incidência da alíquota sobre o consumo em cada ente da federação.
De acordo com a proposta do CCiF, serão calculadas alíquotas de referência —uma federal, uma estadual e uma municipal— para que sejam adotadas automaticamente ao longo da transição. Mas a União, os estados e os municípios terão autonomia para fixar suas alíquotas do IBS acima ou abaixo do valor de referência, preservando a autonomia financeira dos entes da federação.
Sendo o IBS um tributo sobre o consumo, a elevação ou redução da alíquota —que será uniforme para todos os bens e serviços— implica onerar mais ou menos os consumidores do próprio estado ou município. Neste modelo, cria-se um ambiente de responsabilidade política em que se contrapõem de forma transparente o poder público e os cidadãos-consumidores-eleitores.
Nas operações interestaduais e intermunicipais, valerão as alíquotas do estado e do município de destino, a quem pertencerá a receita do imposto. Esse modelo garante a distribuição da receita pelo princípio do destino, ou seja, proporcionalmente ao consumo.
O IBS fortalece o pacto federativo. Não há supressão de competências tributárias de estados e cidades. Ao contrário, os municípios passarão a tributar todos os serviços tangíveis e intangíveis e, além disso, poderão tributar também todas as operações com mercadorias consumidas em seu território.
Os estados, por sua vez, além de manter a base atual do ICMS, passarão a tributar também todos os serviços. Dessa forma, a base tributária nacional é unificada. A função da tributação moderna sobre o consumo é arrecadar de forma simples e eficiente.
Além disso, o fim dos incentivos visa aumentar a base tributável e mitigar a guerra fiscal, criando um sistema uniforme. Sem privilégios, a tributação se torna mais justa: onde todos pagam, todos pagam menos.
Transição na distribuição da receita para os entes da federação
A PEC 45 prevê uma transição de 50 anos na distribuição da receita entre os estados e os municípios. O objetivo deste prazo é permitir um ajuste tranquilo das finanças estaduais e municipais às mudanças.
Pela proposta, nos primeiros 20 anos ganhos e perdas de receita de cada estado e município decorrentes da transição para o destino, corrigidos pela inflação, serão deduzidos ou acrescido do montante destinado a cada ente da federação. Nos 30 anos subsequentes, esse ajuste será progressivamente reduzido.
Com esse modelo —que só é viável porque a arrecadação do IBS será centralizada—, as receitas estaduais e municipais serão muito pouco afetadas durante o período inicial de 20 anos e afetadas de forma muito suave ao longo dos 30 anos subsequentes.
Mitigação do caráter regressivo da tributação do consumo
Para alguns críticos, a alíquota uniforme do IBS seria regressiva, porque não haveria a desoneração da cesta básica e não seria observado o princípio da seletividade do IPI e do ICMS. Na prática, o modelo proposto será mais progressivo que os atuais tributos sobre bens e serviços, pelos motivos expostos a seguir.
A adoção de uma alíquota uniforme no IBS tem objetivos bem definidos: evitar que as empresas tenham custos com a classificação de seus bens, serviços ou intangíveis; evitar disputas entre fisco e contribuintes sobre o enquadramento dos bens e serviços; evitar distorções econômicas em razão de alíquotas menores para determinados itens; e equalizar horizontalmente a carga tributária entre todos os itens atualmente consumidos.
Pelo sistema atual, via de regra, os serviços e os intangíveis são menos tributados que mercadorias. Contudo, serviços são usualmente mais consumidos por pessoas de alta renda e, neste sentido, a reforma proposta pelo CCiF melhora o aspecto distributivo relativamente ao sistema atual.
É verdade que, no sistema atual, há desoneração da cesta básica. Contudo, este é um modo ineficiente de fazer política distributiva, porque, em termos absolutos, as famílias de alta renda despendem mais com itens da cesta básica que as famílias de baixa renda.
Políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, são muito mais eficientes como instrumentos de melhora da distribuição de renda. Estudo do Ministério da Fazenda demonstra que a alocação de recursos no Bolsa Família reduz a desigualdade, medida pelo índice de Gini, 12 vezes mais que a alocação de recursos na desoneração da cesta básica do PIS/Cofins.
Por conta desses dados, a proposta do CCiF prevê a devolução, às famílias de baixa renda, do IBS cobrado sobre seu consumo (observado um limite correspondente ao imposto incidente sobre a cesta básica dos consumidores mais pobres). Esse modelo alcançaria todas as famílias registradas no cadastro único dos programas sociais, beneficiando mais de 70 milhões de pessoas.
Desta forma, mitiga-se o aspecto regressivo da tributação sobre o consumo sem gerar custos de conformidade e contencioso desnecessários. A inexistência de alíquotas diferenciadas também torna inócua a pressão de setores específicos para enquadramento em alíquotas menores.
Aprimoramento da política de desenvolvimento regional
Uma das consequências do modelo proposto é a progressiva redução dos benefícios fiscais concedidos no âmbito dos tributos substituídos pelo IBS. Parte desses benefícios é utilizada, hoje, como forma de indução ao investimento em regiões menos desenvolvidas do país.
A política de desenvolvimento baseada em benefícios fiscais é, no entanto, ineficiente, pois não favorece a exploração de vocações regionais —ao contrário, benefícios usualmente são concedidos para atrair empresas que, por vocação, se instalariam em outras regiões.
Neste contexto, propõe-se que o modelo do IBS seja complementado pela destinação de recursos a um Fundo de Desenvolvimento Regional. Tais recursos poderiam ser alocados na exploração de vocações regionais —como, por exemplo, o turismo— e em investimentos em infraestrutura e qualificação de trabalhadores, que são poderosos instrumentos de desenvolvimento no longo prazo.
Também poderiam ser utilizados para subvencionar empresas que hoje são beneficiadas por incentivos fiscais, desde que tal alocação tenha uma boa relação entre custo e benefício.
Comentários finais
A proposta de reforma dos tributos sobre bens e serviços aqui exposta tem como objetivo a adoção, pelo Brasil, de um sistema moderno de tributação do consumo, mitigando os principais entraves que dificultaram a aprovação dessa reforma no passado.
Por um lado, o modelo proposto preserva a autonomia de estados e municípios, que não apenas poderão gerir sua arrecadação, controlando a alíquota do IBS, como atuarão conjuntamente e de forma coordenada na arrecadação, gestão e fiscalização do novo imposto.
Por outro lado, a transição, ao longo de dez anos, dos tributos atuais para o IBS tem como objetivo dar segurança jurídica para as empresas que realizaram investimentos com base no sistema tributário atual.
Por fim, a transição de 50 anos na distribuição da receita entre estados e municípios ameniza o impacto da mudança sobre as finanças dos entes da federação, reduzindo a resistência de potenciais perdedores.
Ao mesmo tempo, a proposta busca melhorar o impacto distributivo da tributação do consumo no Brasil, através da adoção de alíquotas uniformes para bens e serviços e da devolução do imposto incidente sobre o consumo das famílias de baixa renda.
Também se busca melhorar a qualidade da política de desenvolvimento regional, através da substituição de um modelo baseado na concessão de benefícios fiscais por outro baseado na alocação eficiente dos recursos de um Fundo de Desenvolvimento Regional.
Mas o principal benefício da mudança proposta é um impacto muito positivo sobre a produtividade do país, bem como sobre o poder de compra da população. Embora o cálculo preciso desse impacto seja difícil de ser feito, estima-se que a reforma pode ampliar o PIB em pelo menos dez pontos percentuais, num horizonte de 15 anos. Nesse cenário, mesmo entes federativos e setores econômicos que, em termos relativos, seriam prejudicados, acabam beneficiados pela mudança.
Obviamente, a agenda de reforma do sistema tributário brasileiro não se resume à tributação do consumo. Há mudanças importantes a serem feitas na tributação da renda —principalmente para corrigir distorções que permitem que parcela relevante da população com rendimentos mais elevados pague hoje pouco Imposto de Renda, bem como para tornar as empresas brasileiras mais competitivas, em um cenário de disputa internacional por investimentos.
Também é essencial uma desoneração bem estruturada da folha de pagamentos. O CCiF vem desenvolvendo propostas nesse sentido, tendo como objetivo reduzir o custo da contratação dos trabalhadores formais e uniformizar o modelo de financiamento da Previdência, estabelecendo a mesma incidência sobre os rendimentos do trabalho, qualquer que seja a forma de sua percepção.
Todas essas mudanças são necessárias e complementares. Tomada individualmente, no entanto, é a reforma da tributação do consumo —na forma proposta na PEC 45— aquela que tem o potencial de elevar de maneira mais significativa a qualidade de vida da população brasileira no médio prazo, especialmente da parcela mais pobre.
Se é verdade que nosso sistema tributário é péssimo, a contrapartida é que há muito a melhorar. As distorções são tão grandes que é possível promover mudanças que, simultaneamente, aumentem a eficiência econômica e melhorem a distribuição de renda. Esses objetivos podem ser conseguidos com mudanças que simplifiquem o sistema, tornando-o mais neutro, equitativo e transparente.
Bernard Appy, Eurico Marcos Diniz de Santi, Nelson Machado e Vanessa Rahal Canado são diretores do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), think tank independente criado em 2015 por especialistas em tributação e finanças públicas.
Fonte: Folha.uol.com.br/
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