"Imprimir na memória frases que tenham pés firmes e possam caminhar por séculos
Desviar do fluxo
Devolver um pouco de lucidez ao ar (...).”
(Roberta Lahmeyer)[1]
Vergonha e decepção. Esses foram os sentimentos que me assomaram na semana passada, quando tive conhecimento pela imprensa[2] de que alunos de Direito da PUC-Rio comportaram-se de maneira odiosa, dirigindo ofensas racistas a colegas de outras instituições de ensino, durante confrontos desportivos dos jogos jurídicos realizados em Petrópolis entre 31 de maio e 3 de junho.
Fui aluno de Direito da PUC-Rio, por isso mais envergonhado e decepcionado me sinto. Nos meus dias de universidade, tanto como aluno quanto como — por um breve período — professor, a Faculdade de Direito sempre foi uma casa de saber plural e democrática, onde as diferenças de pensamento conviveram lado a lado de forma equilibrada e sem jamais abalar a fraternidade que nos unia.
Mesmo que tenham sido poucos imbecis alcoolizados, me assusta sobremaneira ver jovens, ainda mais alunos de Direito, praticando ofensas raciais no Brasil. O Brasil não tinha tradição de racismo, como infelizmente ocorre em outros países. Ofensas racistas em eventos desportivos na Rússia, por exemplo, são frequentes. Não é incomum que se atirem cascas de bananas e se imitem sons de macacos para provocar e ofender atletas negros. Não que a frequência ou “naturalidade” as justifique ou abone, muito pelo contrário, também deveriam ser punidas, mas não podemos nos dizer surpreendidos com a sua ocorrência.
O racismo é mais uma das pérfidas facetas desse “ovo da serpente” que começa a se romper no Brasil. A cultura do ódio ao outro e da intolerância com as diferenças de pensamento prenuncia dias sombrios. É preocupante a radicalização entre correntes políticas e o nível de agressividade de seus atores. É urgente — como diz o poema em epígrafe — “devolver um pouco de lucidez ao ar”.
***
No campo do Direito Tributário, a recente sentença proferida pelo juiz federal Tiago Scherer, da 16ª Vara Federal de Porto Alegre, em 17 de maio, em processo versando sobre o direito à dedução do ágio contabilizado pelo contribuinte Gerdau Aços Especiais S/A, foi um verdadeiro jorro de lucidez ao ar, porque assentada em firmes ensinamentos doutrinários fixados na memória de quem aprendeu e compreendeu a importância do princípio da legalidade como garantia da segurança jurídica e de proteção do exercício das liberdades individuais.
A sentença em questão julgou embargos à execução fiscal opostos pelo contribuinte Gerdau Aços Especiais S/A em processo tendo por objeto a cobrança de supostos créditos tributários de IRPJ e CSLL decorrentes da glosa da dedução da amortização de ágio gerado em operação de reorganização societária realizada dentro do mesmo grupo econômico (“ágio interno”).
A sentença contextualiza de forma breve a lide, narrando de início a operação de reorganização societária realizada pelas empresas do grupo que deu origem ao ágio objeto de amortização fiscalmente dedutível nos termos da legislação em vigor à época dos fatos.
A primeira etapa da operação consistiu no aporte de participações societárias detidas pela Gerdau S/A em Gerdau Açominas S/A e Gerdau Internacional Empreendimentos Ltda. para integralização de aumento de capital de Gerdau Participações S/A. As participações aportadas ao capital da holding foram reavaliadas por ocasião do aporte, sendo o valor da reavaliação baseado na expectativa de rentabilidade futura das investidas fundamentada em laudo de avaliação emitido por empresa especializada. A operação em causa— conferência ao capital de participações societárias reavaliadas —, conquanto geradora de um ganho de capital potencial representado pela diferença entre o valor contábil e o valor reavaliado, não era suscetível de gerar tributação imediata ex vi do artigo 36 da Lei 10.637/2002[3].
Posteriormente, a Gerdau Participações S/A foi incorporada pela Gerdau Açominas S/A (incorporação reversa ou downstream merger), passando esta última, na condição de sucessora, a deduzir fiscalmente o ágio contabilizado pela sucedida.
Finalmente, a Gerdau Açominas S/A foi cindida em quatro novas sociedades: Gerdau Aços Especiais S/A, Gerdau Aços Longos S/A, Gerdau América do Sul participações S/A e Gerdau Comercial de Aços S/A, permitindo a maior especialização de cada uma das empresas em seu ramo de atividades.
O direito à dedução do ágio recusado pelo Fisco à embargante — Gerdau Aços Especiais S/A — trata-se, pois, do direito originariamente nascido por força da incorporação da Gerdau Participações pela Gerdau Açominas S/A e a ela embargante transmitido em virtude da cisão da sua titular originária.
Conforme anotado pela sentença, o direito à dedução de valores a título de amortização de ágio foi consagrado expressamente nos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/97, vigentes à época dos fatos. De acordo com referidos dispositivos legais, a existência desse direito dependia basicamente de requisitos objetivos que, uma vez preenchidos, asseguravam ao contribuinte o seu exercício. Eram eles essencialmente: (i) a aquisição de investimento em sociedade controlada ou coligada por valor superior ao do patrimônio líquido (ágio) (artigo 7º, III) e (ii) incorporação, cisão ou fusão da pessoa jurídica investida pela investidora (artigo 7º, caput), inclusive na hipótese de incorporação reversa (downstream merger) (artigo 8º, “b”).
Nada mais exigia a lei que a ocorrência de um fenômeno aquisitivo de investimento que, no Direito brasileiro, pode se operar por distintas modalidades como são os casos da compra e venda, da dação em pagamento, da integralização de capital social, da permuta, da doação. Também não exigia a lei que o fenômeno do ágio ocorresse entre partes independentes, ou mesmo no Brasil ou no exterior, o que importava é que ele tivesse como fundamento a expectativa de rentabilidade futura, comprovada em demonstrativo arquivado na contabilidade do contribuinte (artigo 20, I e II, parágrafo 2º, “b” e parágrafo 3º do Decreto-lei 1.598/1977, na sua redação original).
A recusa do Fisco em admitir a existência de ágio em operações entre partes relacionadas, integrantes do mesmo grupo econômico, escuda-se, como anota a sentença, nas “(...) profundas mudanças na ciência contábil brasileira, especialmente a partir de 2007, a fim de aproximá-la das definições utilizadas internacionalmente, de modo a facilitar a integração do Brasil no mercado global”.
Sucede que tal exigência não se encontrava prevista em lei.
Com efeito, tanto essa (operação entre partes não relacionadas) quanto outras exigências do Fisco para admitir a dedução do ágio somente vieram a ser positivadas na Medida Provisória 627/2013. Referida medida provisória foi convertida na Lei 12.973, de 13 de maio de 2014, que estabeleceu uma nova disciplina para a matéria, limitando quantitativa e qualitativamente o quantum do ágio fiscalmente dedutível, apenas permitindo a dedução do ágio por rentabilidade futura (goodwill) na aquisição de participação societária entre partes não dependentes.
A necessidade de edição de uma nova norma tributária para dispor a respeito da impossibilidade de dedução fiscal de ágio gerado em operações entre partes relacionadas revela de forma incontestável que tal vedação não existia no direito positivo anterior.
E nem se alegue tratar-se de norma interpretativa, de aplicação retroativa, pois não há no texto da lei, ou mesmo da medida provisória, qualquer ressalva ou indício nesse sentido. Trata-se de norma claramente modificativa, que inova, criando inéditos requisitos para que a dedutibilidade do ágio seja permitida. Inovou para vedar o aproveitamento do ágio interno, antes permitido, porém, ao mesmo tempo, realçou o caráter arbitrário das práticas adotadas pela administração fiscal.
A sentença não só reconheceu que “(...) não é possível aplicar o que dispõe a Lei 12.973/2014 — ou os princípios contábeis que lhe fundamentaram — por afronta aos artigos 106 e 109 do CTN”, como também foi categórica em reconhecer a liberdade dos particulares de economizar tributos licitamente, conforme se pode ler nas passagens abaixo transcritas:
“É incontroverso que o grupo econômico que abrange a embargante utilizou-se de operação societária também com o objetivo de reduzir seu passivo fiscal e produzir lucro, porém isso é inerente ao exercício de qualquer atividade econômica e chancelado pelo modelo capitalista adotado constitucionalmente a partir de 1988, com respeito à liberdade e à propriedade”.
“Ademais, não se pode confundir elisão com evasão fiscal, diferenciadas pela adoção de uma conduta lícita ou ilícita, respectivamente, para atenuar o passivo tributário. Tampouco se poderia admitir tributação por uma interpretação tendenciosa ou voluntarista da legislação tributária. Pelo contrário, o nosso sistema jurídico resguarda a liberdade empresarial para a organização dos negócios, inclusive para a exploração de lacunas ou brechas legais que possibilitem economia lícita de tributos. Ao mesmo tempo que o contribuinte não pode se esquivar da cogência da lei tributária, utilizando-se de artimanhas, malícias, fraudes, simulações, dissimulações ou abuso, também não é exigido que pague mais tributos do que legalmente exigido. O cidadão e as empresas são, perante a lei, contribuintes e não devotos do Estado, a ponto de se submeterem a quaisquer imposições ilegítimas” (grifos do original).
A exemplar sentença do juízo da 16ª Vara Federal de Porto Alegre foi precisa ao enunciar a inversão de valores que tem marcado a atuação do Fisco, tratando os particulares como devotos, a eles impondo a insaciável vontade de arrecadar do Estado, apesar e para além do que exigem as leis, desrespeitando o direito de propriedade e as liberdades individuais assegurados pela Constituição. Sem dúvida a sentença do juiz federal Tiago Scherer renova as esperanças dos particulares, cidadãos e empresas de serem tratados, apenas e tão somente, na exata medida da legalidade, como verdadeiros contribuintes.
***
Registro nossa homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres, que partiu no mês de maio, deixando muitas saudades na comunidade jurídica, especialmente junto aos tributaristas. Foi um jurista completo, um grande pensador e filósofo do Direito. Não tive o prazer de ser seu aluno na graduação, mas tive a honra de tê-lo como examinador na banca de monografia. Quando presidiu a Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), foi conciliador e agregador, deixando um importante legado para a instituição. Generosidade é a palavra que melhor o definia. As boas lembranças dele sempre estarão conosco.
[1] Trecho do poema “Curto-circuito”, in Retas Oblíquas, Rio de Janeiro, 2018, editora Ibis Libris.
[2] https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2018/06/5546066-puc-rio-perde-titulo-dos-jogos-juridicos-e-esta-fora-da-competicao-apos-casos-de-racismo.html#foto=1; https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/equipe-da-puc-e-punida-apos-denuncias-de-racismo-em-jogos-juridicos.ghtml.
[3] Art. 36. Não será computada, na determinação do lucro real e da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido da pessoa jurídica, a parcela correspondente à diferença entre o valor de integralização de capital, resultante da incorporação ao patrimônio de outra pessoa jurídica que efetuar a subscrição e integralização, e o valor dessa participação societária registrado na escrituração contábil desta mesma pessoa jurídica (revogado pela Lei 11.196, de 2005).
§ 1º O valor da diferença apurada será controlado na parte B do Livro de Apuração do Lucro Real (Lalur) e somente deverá ser computado na determinação do lucro real e da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido: (revogado pela Lei 11.196, de 2005)
I - na alienação, liquidação ou baixa, a qualquer título, da participação subscrita, proporcionalmente ao montante realizado;(revogado pela Lei 11.196, de 2005)
II - proporcionalmente ao valor realizado, no período de apuração em que a pessoa jurídica para a qual a participação societária tenha sido transferida realizar o valor dessa participação, por alienação, liquidação, conferência de capital em outra pessoa jurídica, ou baixa a qualquer título. (revogado pela Lei 11.196, de 2005)
§ 2º Não será considerada realização a eventual transferência da participação societária incorporada ao patrimônio de outra pessoa jurídica, em decorrência de fusão, cisão ou incorporação, observadas as condições do § 1º. (revogado pela Lei 11.196, de 2005)
Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.
Fonte: Conjur
Nenhum comentário:
Postar um comentário