Foram disponibilizados recentemente pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), dois acórdãos da 4ª Câmara da 1ª Seção de Julgamento, em que foram analisadas operações de reestruturação societária envolvendo a apuração de ágio. Trata-se dos acórdãos n. 1402-002090, de 19.1.2016, julgado pela 2º Turma Ordinária (Caso COSAN) e n. 1401-001536, de 3.2.2016, julgado pela 1º Turma Ordinária (Caso SADA).
No primeiro precedente, Caso COSAN, segundo a fiscalização, as despesas com a amortização do ágio gerado seriam indedutíves por decorrerem de reestruturação societária com a criação de empresa veículo, sem proposito negocial.
O Fisco também considerou que a sequência de operações caracterizaria simulação com abuso de direito, mediante extrapolação dos limites do fim econômico, da função social e da boa-fé objetiva do contrato de sociedade, com o intuito de fraudar a lei tributária. Em função disso, além de glosar as despesas com a amortização do ágio da apuração do Imposto de Renda (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSL), foi aplicada a multa qualificada de 150%.
Segundo o voto vencedor, proferido pelo conselheiro Fernando Brasil de Oliveira Pinto, quando os atos foram praticados, a jurisprudência do CARF endossava o procedimento adotado pela contribuinte. Assim, não se poderia falar em dolo e, consequentemente, em fraude, sonegação ou conluio, elementos necessários à qualificação da multa de ofício, nos termos dos art. 71 a 73 da Lei n. 4502, de 30.11.1964.
Nesse mesmo sentido foi o entendimento adotado no Caso SADA. Em tal precedente, os autos de infração de IRPJ e CSL fundamentaram-se na acusação de que o ganho de capital na alienação de um determinado investimento "X" teria sido reduzido em função de um aumento artificial do seu custo de aquisição.
Segundo o relatório, o aumento do custo de aquisição teria sido resultado de um ágio na integralização das ações de "X" em uma empresa holding, que posteriormente foi objeto de incorporação reversa pela própria sociedade "X".
Analisando os fatos relatados, o Fisco entendeu que o ágio que majorou o custo de aquisição de "X" teria sido gerado artificialmente, entre sociedades do mesmo grupo, e com a utilização de empresa veículo, razão pela qual recalculou o ganho de capital desconsiderando o ágio, bem como aplicou multa isolada, pela insuficiência no recolhimento das estimativas, e qualificada de 150%, por entender que houve evidente intuito de fraude.
Tal como no Caso COSAN, não obstante ter mantido a autuação principal, o CARF afastou a qualificação da multa de ofício. Segundo o Relator, conselheiro Marcos de Aguiar Villas-Bôas:
"Toda a argumentação da Recorrente no tocante ao fato de ter seguido as leis e de, por consequência lógica, não ter cometido nenhum ilícito no tocante às operações que praticou, não vale, como explicado anteriormente, para afastar a glosa do ágio e o recálculo do custo do investimento que reduziu o ganho de capital da Recorrente.
Por outro lado, entendo que vale para afastar a caracterização de fraude ou má fé. A operação em análise foi realizada em 2006 e, até este ano de 2016, ainda há discussões sobre aspectos de operações envolvendo ágio.
Aliás, no ano de 2006, operações com geração de ágio artificial eram corriqueiras no mercado e incentivadas por empresas de assessoria fiscal e/ou contábil renomadas.
Concluo, assim, que a Recorrente apenas tentou se valer de um planejamento tributário que julgava à época ser válido. Todas as operações foram devidamente registradas e em nenhum momento houve qualquer recusa de informação ao Agente Fiscal, demonstrando a sua boa fé do início ao fim." (g.n.)
Esse entendimento adotado nos dois recentes precedentes já tinha sido objeto de manifestações anteriores do CARF, especificamente em relação a glosas vinculadas à apuração de amortização de ágio na aquisição de investimentos(1). É o que se vê, por exemplo, no acórdão n. 1302-001.108, de 11.6.2013 (Caso Agrenco), em que foi analisado ágio gerado em operação intragrupo. Na ocasião, o Conselho também decidiu pela inaplicabilidade da multa qualificada. Ficou consignado no acórdão que "não se pode dizer com absoluta convicção que há dolo de sonegar, quando há dúvida e ambiguidade na lei e esta dúvida pode ter levado o recorrente a entender que seu procedimento era lícito, inclusive por ter se baseado nas próprias decisões do CARF."
Realmente, no que se refere à qualificação da multa de ofício, são irretocáveis os citados posicionamentos.
O art. 44 da Lei n. 9430, de 27.12.1996, em seu parágrafo 1º, reserva essa penalidade mais gravosa, não aos casos de simples ilegalidades, mas apenas quando tais atos tenham sido praticados sob o impulso de intuito fraudulento.
Isto porque, os artigos 71, 72 e 73 da Lei n. 4502, de 30.11.1964, aos quais o referido dispositivo faz remissão, aplicam-se exclusivamente a situações em que o dolo esteja presente. Os dois primeiros referem-se à "ação ou omissão dolosa" e o terceiro a "ajuste doloso".
Dolo, segundo define o "Novo Aurélio - Século XXI" é "qualquer ato consciente com que alguém induz, mantém ou confirma outrem em erro; má-fé, logro, fraude, astúcia; maquinação" (Editora Nova Fronteira, p. 702). De Plácido e Silva também alude a dolo como "artifício, manha, esperteza, velhacaria", esclarecendo que "na terminologia jurídica, é termo empregado para indicar toda espécie de artifício, engano ou manejo astucioso" ("Vocabulário Jurídico", Editora Forense, 2a. Editora, vol. II, p. 563).
Em suma, dolo é sempre e necessariamente um estado de espírito interno que se manifesta por atos ou omissões externas. Em outras palavras, o dolo existe como ato volitivo, sendo representado pela vontade de infringir a lei e pela vontade de fazê-lo fraudulentamente.
Ora, não se pode falar em conduta dolosa quando existe dúvida sobre a interpretação dos dispositivos legais que tratam da determinada matéria.
É justamente o que ocorre nas operações envolvendo ágio na aquisição de investimentos. Há, ainda hoje, grande controvérsia, tanto na doutrina quanto nos tribunais, a propósito de temas diversos relacionados à matéria, tais como a validade de operações envolvendo a apuração de ágio entre partes relacionadas, bem como referentes à possibilidade de "transferência"(2) de ágio por meio das chamadas empresas veículo, dentre tantos outros, o que evidencia que tais questões estão mais propriamente relacionadas à interpretação da legislação em vigor, do que eventuais desvios na sua aplicação.
Some-se a isto o fato de que o Fisco jamais emitiu posicionamento específico a respeito do tema em atos normativos. A única manifestação fiscal a respeito da qual se tem notícia ocorreu em 2016(3), quase vinte anos após a edição da Lei n. 9532, de 10.12.1997 que regula a maior parte das amortizações em debate.
Nesse contexto, é bastante discutível cogitar a existência de conduta dolosa que justifique a imposição de multa agravada nas operações envolvendo ágio, eis que, salvo comprovação em contrário por parte do Fisco, o que se verifica é a mera divergência de interpretação da lei.
Para aplicar a penalidade agravada, a autoridade lançadora deve verificar a boa-fé objetiva e subjetiva do agente, de modo a compreender se realmente houve conduta dolosa, devendo considerar a possibilidade de, no caso analisado, ter ocorrido o chamado "erro de proibição", previsto no art. 21, do Código Penal(4), e aplicável em matéria tributária, nos termos do art. 108, incisos I e III do Código Tributário Nacional (CTN)(5). O erro de proibição existe quando o autor do ilícito supõe estar agindo dentro da lei, como ensina Julio Fabrini Mirabete(6).
Nesse sentido, vale ressaltar que a jurisprudência administrativa já adotou a tese do erro de proibição em diversas oportunidades, como é o caso do acórdão n. 101-95537, de 24.5.2006, em que foi analisada a dedutibilidade de despesa com amortização de ágio, e no qual se decidiu pela aplicação da tese do erro de proibição para afastar a aplicação da multa qualificada.
O referido acórdão transcreve anotação doutrinária de Luiz Regis Prado(7), a qual merece transcrição:
"Trata-se de erro que tem por objeto proibição jurídica do fato. É dizer: o agente perde, em decorrência de erro de proibição, a compreensão da ilicitude do fato. Constitui o lado oposto da consciência do injusto: supõe erroneamente que atua de forma lícita, (...)"
E arremata dizendo:
"Perceba-se a justificativa que tem um contribuinte, ao pesquisar a jurisprudência vacilante e a doutrina divergente, em considerar que estava agindo licitamente. Há pouco tempo, inclusive, prevalecia o entendimento de que a adoção de formas lícitas era suficiente a garantir a economia tributária visada com a seqüência de atos, independentemente do seu tempo ou ausência de qualquer outro propósito negocial.
Inaceitável a qualificação da multa, principalmente para os atos praticados há muitos anos, quando ainda incipientes as discussões a respeito das patologias que tornam não oponível ao fisco determinado planejamento tributário." (g.n.)
Portanto, a multa qualificada pressupõe inequívoca ciência da ilicitude pelo agente e intuito de fraudar a lei através de ato que sabe ser ilícito. Quando há manifestações doutrinárias e também precedentes que endossam a conduta do contribuinte, tido por infrator, a princípio, não se cogita de dolo.
Não se deve ainda olvidar, que os arts. 71, 72 e 73 da Lei n. 4502, aos quais se refere o parágrafo 1º do art. 44 da Lei n. 9430, fazem parte de uma sistemática que não se reduz a eles três, e que vem desde o arts. 67 e 68 da mesma lei(8). Esses dispositivos preveem que, ao fixar a pena, a autoridade partirá sempre da penalidade básica, só a majorando em razão das circunstâncias agravantes ou qualificativas provadas no processo.
Além de precisarem estar provadas no processo, as circunstancias agravantes ou qualificativas estão exaustivamente relacionadas no parágrafo 1º e 2º, respectivamente, do referido art. 68 da Lei n. 4502, não sendo de livre escolha da autoridade. Destarte, no que se refere às circunstâncias qualificativas, o parágrafo 2º elege exatamente as condutas descritas nos arts. 71, 72 e 73 da mesma lei, de modo que a distinção entre as situações não dolosas e as dolosas vem na própria estrutura da disciplina legal das multas e da sua graduação.
Realmente, se o art. 136 do CTN previu que "salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato", o parágrafo primeiro do art. 44, da Lei n. 9430 reflete a sua ressalva inicial ("disposição de lei em contrário"), na medida em que reserva a penalidade de 150% somente nos casos em que presente o elemento volitivo do autor da infração.
Some-se a isso o fato de o art. 112 do CTN prescrever a interpretação mais favorável para a imposição de penalidades quando houver dúvida quanto: "I- à capitulação legal do fato. II- à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos, III- à autoria, imputabilidade ou punibilidade, IV- à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação, e que certamente pode ser utilizado como um fundamento a mais para a inaplicabilidade da multa nos casos de indefinição jurisprudencial".
Em suma, espera-se que o entendimento dos acórdãos em comento, no que se refere à qualificação da multa, prevaleça no Conselho e na Câmara Superior não apenas nos casos envolvendo ágio, mas também em todas as ocasiões nas quais o contribuinte, de boa-fé, conduz os seus negócios no esteio dos precedentes administrativos e em conformidade com a orientação de assessores e de manifestações proferidas pela doutrina, não devendo, a princípio, ser apenado por multa agravada, ainda que sua conduta venha a ser considerada ilegítima, por conta de divergências relacionadas à interpretação da lei.
Notas
(1)À exceção da matéria de ágio, observa-se que o conselho tem aplicado um entendimento mais restritivo a outros casos, como os que envolvem planejamento tributário, a exemplo do acórdão n. 9101-002049, de 11.11.2014, proferido pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), que foi objeto de comentário pelos Drs. Bruno Fajersztajn e Paulo Coviello em 20.5.2015.
(2)Vide FAJERSZTAJN, Bruno e COVIELLO FILHO, Paulo. "Transferência de ágio por meio da chamada empresa-veículo. Reflexões sobre o tema à luz da lógica e da finalidade dos arts. 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997". Revista Dialética de Direito Tributário n. 231, pp. 25-44.)
(3)Trata-se da Solução de Consulta COSIT n. 3, de 3.2.2015, que foi objeto de comentário pelos Drs. Bruno Fajersztajn e Paulo Coviello em 24.2.2016.
(4)"Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço".
(5)"Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I - a analogia;
(...)
III - os princípios gerais de direito público;
(...)"
(6)MIRABETE, Julio Fabrini, "Manual de Direito Penal", Editora Atlas, Parte Geral, vol. 1, 23ª ed., p. 197.
(7)PRADO, Luiz Regis, "Elementos do Direito Penal", Editora Revista dos Tribunais, Vol. 1, 2005, p. 132.
(8)"Art. 67. Compete à autoridade julgadora, atendendo aos antecedentes do infrator, aos motivos determinantes da infração e à gravidade de suas conseqüências efetivas ou potenciais;
I - determinar a pena ou as penas aplicáveis ao infrator;
II - fixar, dentro dos limites legais, a quantidade da pena aplicável.
Art. 68. A autoridade fixará a pena de multa partindo da pena básica estabelecida para a infração, como se atenuantes houvesse, só a majorando em razão das circunstâncias agravantes ou qualificativas provadas no processo.
§ 1º São circunstâncias agravantes:
I - a reincidência;
II - o fato de o impôsto, não lançado ou lançado a menos, referir-se a produto cuja tributação e classificação fiscal já tenham sido objeto de decisão passada em julgado, proferida em consulta formulada pelo infrator;
III - a inobservância de instruções dos agentes fiscalizadores sôbre a obrigação violada, anotada nos livros e documentos fiscais do sujeito passivo;
IV - qualquer circunstância que demonstre a existência de artifício doloso na prática da infração, ou que importe em agravar as suas conseqüências ou em retardar o seu conhecimento pela autoridade fazendária.
§ 2º São circunstâncias qualificativas a sonegação, a fraude e o conluio."
por Emmanuel Garcia Abrantes - Advogado. Graduado em Direito pela PUC-MG. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Colaborador do site Decisões.
Fonte: Thomson Reuters
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