Direito tributário gera efervescência no complicado sistema nacional; custo portuário e imunidade estão na mira no STF
Dez entre dez empresários brasileiros não cansam de criticar o
complicado sistema tributário nacional, que aliado aos demais custos
incidentes sobre a produção de serviços e bens transformam o “custo
Brasil” em um de nossos principais “adversários” à competição com o
mundo exterior. Não por outra razão, o emaranhado de fórmulas de cálculo
e de composição dos tributos gera, invariavelmente, litígios no
Judiciário.
O professor e especialista em direito tributário, Fernando Castellani,
atendeu ao convite do JC e, nesta entrevista, discute alguns desses
“nós”, entre eles o “lado B” embutido na política de desoneração pontual
que vem sendo praticada no País (como aconteceu com o IPI dos
automóveis), a guerra dos portos e as discussões em torno da amplitude
da imunidade tributária. Acompanhe a entrevista:
Jornal da Cidade - Qual sua visão sobre a regra atual para a imunidade tributária?
Fernando Castellani - A imunidade tributária é um benefício
constitucional que, em regra, é concedido de forma a buscar a realização
de algum grande princípio constitucional. Nenhuma imunidade é concedida
por acaso. Atualmente, as regras de imunidade, que não são novas, têm
sido alvo de uma série de interpretações pela jurisprudência e pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) que tem trazido o assunto, de volta, à
discussão. E vale dizer que essa mutação das normas constitucionais,
por força da interpretação jurisdicional, que ocorre ao longo do tempo, é
normal e sadia.
JC - Existem, então, pontos importantes em discussão? Como fica a controvérsia da imunidade sobre livros, por exemplo?
Castellani - Existe uma série de assuntos acerca das
imunidades em discussão aguardando sua definição. Apenas para citar, no
caso dos livros, o STF, recentemente, reconheceu a chamada repercussão
geral em uma ação que discute o conceito de livro eletrônico e sua
sujeição ao benefício da imunidade. Com a enorme gama de produtos
eletrônicos, destinados à leitura e acesso à informação, percebe-se que o
assunto tem um enorme impacto no dia a dia das pessoas. Apenas para
contextualizar, a Constituição Federal estabelece a imunidade de livros,
jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. A partir de
uma interpretação meramente literal, chega-se a conclusão que o
legislador constituinte limitou sua análise, à época, aos livros
impressos, até pelo evidente aspecto da capacidade contributiva. Em
1988, o chamado livro eletrônico, que tinha obviamente outro formato,
implicava na necessidade de uma maior capacidade contributiva para seu
acesso, pois os equipamentos eletrônicos para sua utilização eram muito
mais caros, proporcionalmente, do que são hoje.
JC - Essa realidade se alterou...
Castellani - Inegavelmente, essa realidade foi alterada. Com o
barateamento dos equipamentos de leitura, com o desenvolvimento da
Internet e meios de acesso aos produtos digitais, a equação da
capacidade contributiva tem, hoje, outros elementos. Por isso, o STF,
agora, deve rever seu posicionamento anterior e ampliar o conceito de
livro, para atingir publicações nos chamados meios alternativos (arquivo
digital, CD, DVD, etc). Ao lado disso, ainda em livros, temos percebido
uma tendência muito grande do STF no alargamento do conceito de insumo
imune no processo de confecção do livro. Outrora, o STF limitava o
alcance da imunidade do papel (principal insumo na confecção do livro)
apenas a bens similares a papel (súmula 657). Agora, o mesmo tribunal
tem entendido que a imunidade tem conceito amplo e irrestrito, devendo
englobar outros insumos, como a cola, a tinta, equipamentos, etc.
Obviamente, esse novo entendimento privilegia o objetivo da imunidade,
qual seja, baratear o livro e o acesso a cultura.
JC - Uma corrente tributária critica que as desonerações
pontuais, como aconteceu com a linha branca de eletrodomésticos e os
automóveis, favorecem os oligopólios sob o discurso do incentivo ao
consumo ou controle da inflação. O que pensa a respeito?
Castellani - Certamente, a técnica da desoneração não é algo
pacífico. Em tese, toda desoneração implica em uma necessária
recomposição. Mas o Estado não diminui seus gastos quando desonera algum
setor. Assim, alguém paga a conta da desoneração. Não há mágica. O
suposto controle a inflação e incentivo ao consumo, dessa forma, é
falso. Se existe algum tipo de compensação geral (diminuição da
tributação de um setor e oneração de outro), os benefícios percebidos,
eventualmente, em um setor, serão anulados pela oneração de outro setor.
Repito: não há mágica. A desoneração somente seria eficaz se fosse
acompanhada de cortes dos gastos do governo o que, em regra, não ocorre.
Assim, a verdade é que a maioria das ações de desoneração é fruto do
maior ou menor poder de pressão do setor sobre o governo.
JC - Qual a consequência sobre a posição do STF em relação à forma de cálculo da PIS e Cofins sobre importação?
Castellani - Recentemente, o STF declarou a
inconstitucionalidade da inclusão, na base de cálculo da PIS e Cofins,
do valor do ICMS incidente no desembaraço. De maneira simples, a decisão
do Supremo implica em reconhecer que deveria ter sido recolhido, a
título de contribuições, um valor menor do que efetivamente recolhido.Na
prática, essa decisão poderá significar o direito de todos os
contribuintes que recolheram essa contribuição, nos últimos cinco anos, a
pleitearem a devolução dos valores recolhidos. Calcula-se que esse
valor seja próximo de R$ 40 bilhões. Obviamente, por força da
existência da figura da modulação dos efeitos das decisões do STF,
provavelmente o tribunal decidirá que os efeitos dessa decisão somente
valem para o futuro, impedindo, com isso, que os contribuintes pleiteiem
a devolução dos valores. Essa imoral técnica decorre do argumento de
que os efeitos econômicos de eventual devolução seriam inviáveis de
serem suportados pela União.
JC - Como está a discussão sobre a desoneração da folha, promessa da presidenta Dilma em campanha?
Castellani - A desoneração tem sido, efetivamente, praticada. A
lei 11.456/2011, com várias alterações posteriores, estabelece uma
efetiva diminuição de carga tributária, na medida em que substitui a
contribuição sobre folha de pagamentos, prevista na lei 8.212/91, por
uma nova contribuição incidente sobre receita bruta. Na prática,
troca-se 20% sobre o total da folha de pagamento por 1 ou 2% sobre a
receita bruta. Essa alteração, em regra, para atividades em que a folha
de pagamentos (custo da mão de obra) signifique até 10% do total das
receitas, é positiva. Para setores nos quais o custo da mão de obra é
pequeno, a alteração seria, em tese, negativa. Exatamente por isso, os
setores desonerados selecionados pela lei são, em tese, aqueles nos
quais o custo da mão de obra é elevado, como construção civil,
transportes, TI, etc. Para esses setores, a alteração, em regra, foi
positiva. Contudo, vislumbramos dois problemas práticos.
JC - Quais os problemas?
Castellani - Em primeiro lugar, a alteração de regime é
imposta. Significa dizer que, mesmo que para um contribuinte pertencente
aos setores desonerados, que, em tese, tenha baixo custo de mão de
obra, a alteração deverá ser feita, o que gerará oneração de carga, e
não desoneração. A rigor, a lei ignora isso. Outro problema é a já
avistada inconstitucionalidade da forma de cálculo da nova contribuição.
Como ela incide sobre receita bruta, nos percentuais de 1 ou 2%, acaba
por englobar, em sua base, os valores de ICMS e ISS suportados pela
empresa. A incidência da nova contribuição sobre esses valores é
nitidamente inconstitucional. Há, então, possibilidades de discussão das
novas figuras, visando tornar a desoneração mais efetiva.
JC - Como você vê a polêmica envolvendo o importador e o valor da operação na guerra dos portos?
Castellani - A resolução 13/2012, do Senado, tentando acabar,
ou ao menos diminuir, com os problemas decorrentes da chamada guerra dos
portos, entre os Estados. Ela estabelece nova forma de cálculo do ICMS
nas operações interestaduais com produtos importados. Significa, em
apertadíssima síntese, que ao praticar operações de comercialização de
mercadorias entre Estados, com produtos oriundos do exterior ou que
contenham percentual específico de bens importados, aplicar-se-á uma
nova alíquota, de 4%, e não mais as alíquotas interestaduais gerais (7
ou 12%). Com isso, pretende-se acabar com a técnica de muitos Estados de
atribuírem créditos presumidos na importação, atraindo empresas de
outros Estados. Daí a terminologia, guerra fiscal ou guerra dos portos. A
ideia, a rigor, não é ruim: tenta coibir a atuação ilegal de Estados
que concedem benefícios de ICMS em desconformidade com as regras
constitucionais (Convênio Confaz).
JC - E como fica isso?
Castellani - Ocorre, contudo, que para operacionalizar esse
processo, burocrático e que impõe ainda mais custos administrativos aos
empresários, foram editadas normas reguladoras totalmente ilegais. Nos
termos do Ajute Sinief 19, o empresário deverá declarar, em documento
específico, o valor do produto importado, explicitando, em sua nota
fiscal, os seus custos, sua forma de composição do preço final e seus
lucros. Obviamente, essa abertura de informações aos clientes e
eventuais concorrentes atenta, frontalmente, contra os princípios da
ordem econômica, especialmente da livre iniciativa. Inúmeros
contribuintes têm demandado judicialmente para buscar o impedimento de
aplicação da referida norma. Existem mais de 500 liminares concedidas
afastando sua incidência. Eis um ponto complicado da nova
regulamentação.
JC - Qual a implicação do ICMS nisso? (subitem da questão anterior)
Castellani - Na prática, pelas novas regras, ao se realizar
uma operação interestadual com produtos estrangeiros, o empresário
remetente recolherá, ao Estado sede, apenas o percentual de 4%, cabendo a
diferença entre a alíquota interna e esta, ao Estado de destino (em
regra, 18% - 4% = 12%). Com isso, ao menos em tese, se torna menos
atrativa e menos rentável a alteração de toda a operação e planta
industrial de um Estado para outro, o que pode desestimular a chamada
guerra fiscal.
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