O novo Código de Processo Civil - CPC/15, além de trazer inúmeras inovações ao ordenamento jurídico brasileiro, sugere uma reinterpretação dos artigos 50 do Código Civil e 124, I e 135 do Código Tributário Nacional, de relevantes consequências processuais para os grupos econômicos.
Ao tratarmos de responsabilidade tributária de grupos econômicos dentro de um contexto de alegada prática de fatos ilícitos, não nos parecer ser correto utilizar o art. 124, I, como fundamento da responsabilidade, uma vez que, conforme há anos vem decidindo o STJ (01), o enunciado tem como pressuposto a prática comum do fato gerador, o que certamente não é contrário à lei. E tampouco seria correto aplicar o art. 135 do CTN, tendo em vista que esta norma disciplina somente a responsabilidade de pessoas físicas.
São muitas as consequências de se admitir que os grupos econômicos, na hipótese de fraude, sujeitam-se ao art. 50 do CC, regra geral e subsidiária, passível de ser utilizada na ausência de norma específica. A primeira é a de que o artigo dispõe exclusivamente acerca da responsabilidade patrimonial de pessoas físicas e jurídicas, ou seja, não é o caso de sujeição passiva tributária. Essa conclusão é construída a partir do enunciado legal, que é incisivo ao prescrever que pode o juiz decidir ... que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios das pessoas jurídica.
Com isso, a sociedade não integrará a relação jurídica tributária na qualidade de parte (autor ou réu), devendo ser considerada terceiro. Essa importante conclusão é confirmada pelos artigos 133 a 137 do CPC/15, integrantes do Capítulo IV do Título III do Código, que dispõe sobre as hipóteses de intervenção de terceiros. E como se não bastasse, referidos enunciados disciplinam o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que confere ao acusado a possibilidade de apresentar defesa prévia e opor embargos de terceiro, e não de devedor.
Portanto, para o caso de grupos econômicos o correto é requerer a desconsideração da personalidade jurídica, e não o redirecionamento da execução fiscal (como ocorre com os administradores - art. 135 do CTN). Também correta nos parecer ser a impossibilidade de inscrição do devedor em dívida ativa e no CADIN, a inaplicabilidade da decadência da inclusão do terceiro na relação jurídica e do arrolamento de bens, assim como serem os embargos de terceiro a via processual adequada para discussão do mérito da cobrança, quando o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não for instaurado.
O quadro abaixo visa elucidar nosso entendimento sobre o exposto:
Pois bem. De acordo com o art. 50 do CC, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada se houver abuso da personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Seus efeitos atingem somente o ato abusivo, preservando-se a personalidade em detrimento do sócio ou administrador que praticou o ato. A pessoa jurídica permanecerá existindo, com todas as suas prerrogativas legais e responsabilidades pelos demais atos, que não o abusivo.
E como a desconsideração é aplicável tão somente por ordem judicial, o responsável patrimonial apenas poderá ser incluído em um auto de infração, ter seus bens arrolados etc., se houver autorização judicial nesse sentido, de forma que o processo administrativo não viole a norma acima transcrita, eivando o lançamento de irremediável vício formal. Sua inclusão, entretanto, revela-se desnecessária tendo em vista não ser parte na relação tributária.
Além disso, o enunciado normativo traz dois pressupostos materiais autorizadores da desconsideração, quais sejam, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, formas de abuso da personalidade jurídica para os fins do art. 50 do CC.
O desvio de finalidade ocorre quando a pessoa jurídica for indevidamente utilizada para fins diversos dos previstos no ato constitutivo, e dos quais se infira a deliberada aplicação da sociedade em finalidade irregular e danosa, provocando necessariamente lesão a direito de terceiros.
O desvio pode coincidir com as materialidades previstas no art. 135 do CTN - como por exemplo a infração ao contrato social - mas este enunciado se diferencia no que diz respeito à autoria: no CTN temos o administrador, responsável tributário que agiu de forma ilícita na gestão da sociedade. E como os grupos econômicos não são pessoas físicas, as infrações tributárias por eles praticadas não estão tipificadas neste artigo, e em nenhum outro do CTN, não havendo norma específica para o caso. Deve-se, portanto, aplicar subsidiariamente o Código Civil.
Já a confusão patrimonial consiste na impossibilidade de fixação de limite entre os patrimônios da pessoa jurídica e o dos sócios e acionistas, tamanha a mistura (confusão) que se estabelece entre ambos. Resta configurada, por exemplo, quando a sociedade paga dívida do sócio e quando há bens também de sócio registrados em nome da sociedade e vice-versa, não havendo suficiente distinção, no plano patrimonial, entre as pessoas - o que pode ser verificado pela escrituração contábil, movimentação financeira e extratos bancários.
Sem dúvida alguma, a confusão patrimonial é eloquente indício de fraude. Mas só pode ser entendida e aplicada como confusão patrimonial, e não como qualquer outro conjunto probatório que justifique, finalisticamente, a garantia do crédito tributário mediante a atribuição de responsabilidade patrimonial a terceiros. Para a garantia do crédito, o Fisco possui outros meios legítimos.
A jurisprudência vem construindo inúmeras acepções ao termo confusão patrimonial, em nossa avaliação de forma equivocada e ao arrepio da lei, tendo em vista empregar uma amplitude quase que ilimitada às possibilidades de desconsideração, em flagrante violação à legalidade e à segurança jurídica dos contribuintes, que são paulatinamente surpreendidos com autos de infração e redirecionamentos de execuções fiscais.
Ora, o termo confusão patrimonial, embora não definido em lei, não pode ser considerado de elevada imprecisão semântica. Existe um conteúdo mínimo que nos permite concluir o que é confusão, e o que não é.
Se duas empresas possuem os mesmos sócios e encontram-se estabelecidas na mesma localidade, mas possuem contabilidade e movimentações financeiras próprias e há perfeita distinção patrimonial, não há que se falar com confusão patrimonial.
- O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no CPC/15
Considerando a premissa acima exposta, de que os grupos econômicos não se enquadram no regime de sujeição passiva tributária (124, I ou 135 do CTN), o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto nos arts. 133 a 137 do CPC/15, ganha uma incrível importância.
O incidente corrige uma grande patologia de nosso sistema processual, que, ao não aceitar a exceção de pré-executividade como meio de defesa do responsável (Súmula 393 do STJ), e tampouco prever qualquer outra forma de defesa prévia, faz com que pessoas jurídicas alegadamente integrantes de grupos econômicos tenham que aguardar muitos anos para ter seus argumentos e provas apreciados nos autos dos embargos à execução fiscal, em indiscutível mitigação do direito constitucional ao devido processo legal e ao contraditório, que não são meramente formais, e que não nos parece terem sido assegurados somente pela possibilidade de oposição dos embargos do devedor.
Nessa medida, o inovador incidente de desconsideração da personalidade jurídica supriu uma lacuna legal, ao permitir que, antes da apreciação do pedido de corresponsabilidade, o acusado defenda-se, apresente provas e tenha sua defesa apreciada. O contraditório será observado desde o início, sendo assegurado a todos o devido processo legal.
A partir dessas reflexões, podemos agora analisar os aspectos relevantes do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Entendemos merecer destaque os pontos a seguir.
1 - O pedido de desconsideração da personalidade jurídica deve ser recebido como incidente processual sempre que não for requerido na petição inicial.
2- O incidente será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, ou seja, é necessária a sua provocação.
3 - O incidente observará os pressupostos previstos em lei - a lei referida nos parágrafos § 1º do art. 133, e 4º do art. 134, é material. Interessa à seara tributária o art. 50 do CC acima analisado, embora existam legislações de outras naturezas a regular a desconsideração da personalidade jurídica, tais como o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, o art. 18 da Lei. 8.884/94 (Lei Antitruste) e o art. 4ª da Lei 8.078/90 (Lei do Meio Ambiente). O art. 135 do CTN, por não tratar da desconsideração de personalidade jurídica, e sim de sujeição passiva tributária, não se sujeita ao incidente. Sem dúvida alguma o CPC/15 poderia ter avançado mais, e também submetido ao seu rito as hipóteses de sujeição passiva, mas o fato que é não o fez.
4 - O incidente aplica-se à desconsideração inversa da personalidade jurídica - a desconsideração inversa caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio, administrador ou de outras empresas.
5 - O incidente é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial - Não vislumbramos qualquer inconstitucionalidade nessa previsão, desde que (i) não tenha ocorrido prescrição para a atribuição da responsabilidade patrimonial de terceiro (considerando-se correta a contagem do prazo de 5 anos, a nosso ver, a identificação do ilícito como marco inicial - teoria da actio nata); (ii) o processo seja suspenso nos termos do § 3º do art. 134 do CPC/15; e (iii) a defesa possa versar tanto sobre o mérito da cobrança propriamente dita (inexigibilidade do crédito tributário), quanto sobre os pressupostos que autorizariam a inclusão do terceiro na lide, e que deve defender-se por meio de embargos de terceiro se o incidente não for instaurado (art. 674, § 2º, III, do CPC/15).
6 - Se a desconsideração for requerida na petição inicial, dispensa-se a instauração do incidente, e a pessoa jurídica será citada para apresentação de defesa - Dispensar significa não necessitar de, prescindir, desobrigar-se. A instauração do incidente, nesse sentido, não é obrigatória, mas tampouco proibida. Nossa interpretação é a de que, pelo CPC/15, o incidente é uma faculdade atribuída ao juiz quando a desconsideração for requerida já na petição inicial.
7 - A instauração do incidente suspenderá o processo.
8 - Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer todas as provas que entender cabíveis, no prazo de 15 (quinze) dias.
9 - Concluída a instrução, o incidente será resolvido por decisão interlocutória - ao final do incidente processual será proferida decisão de natureza interlocutória (ato pelo qual o juiz decide questão incidental com o processo ainda em curso), passível de recurso por meio de agravo de instrumento ou interno, a depender do caso.
Para finalizar, nossas principais conclusões acerca desse importante e inovador incidente são as seguintes:
Notas
(01) REsp 834.044/RS, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, 11/11/2008, DJe 15/12/2008, dentre inúmeros outros.
por Maria Rita Ferragut - Advogada. Mestre e doutora em direito tributário pela PUC/SP. Livre-docente pela USP. Autora e co-autora de diversos livros, dentre os quais Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002.
Fonte: FISCOSoft
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