Uma crítica bastante comum ao sistema tributário brasileiro é a de que se trata de um sistema regressivo, ou seja, como proporção da renda, as pessoas mais pobres pagariam mais impostos que as mais ricas. Na base dessa crítica está o fato de que, no Brasil, os tributos sobre bens e serviços (como o ICMS e o PIS/Cofins) têm um peso muito maior que os tributos sobre a renda (como o Imposto de Renda) e a propriedade (como o IPTU e o IPVA). Como o consumo dos mais pobres é, como proporção da renda, mais elevado que o dos mais ricos (que poupam uma parcela maior da renda), a elevada tributação de bens e serviços acaba onerando mais as famílias de menor renda.
No debate sobre como tornar o sistema tributário brasileiro mais progressivo, destacam-se três tipos de propostas: 1) reduzir a alíquota dos tributos sobre bens e serviços e aumentar a alíquota do imposto sobre a renda; 2) tornar os tributos sobre bens e serviços mais progressivos desonerando a cesta básica; e 3) aumentar os tributos sobre a propriedade, com destaque para a proposta de criação de um imposto sobre as grandes fortunas.
Embora esse debate seja muito importante, minha avaliação é a de que ele ainda é muito superficial, o que leva a uma inadequação das propostas apresentadas, como procuro explicar neste artigo.
Em primeiro lugar, quando se consideram os problemas de impacto distributivo da ação do setor público, é essencial considerar não apenas a receita (os impostos), mas também os gastos. De modo geral, a análise econômica demonstra que a despesa pública é mais eficiente que a arrecadação como forma de afetar a distribuição de renda.
Isso fica claro quando consideramos, por exemplo, as propostas de desoneração da cesta básica de consumo. Embora seja verdade que as famílias mais pobres alocam uma parcela maior da renda na aquisição de produtos da cesta básica, em termos absolutos os gastos das famílias de maior renda com esses produtos tendem a ser maiores.
Assim, ao desonerar um produto da cesta básica (por exemplo, a carne), o benefício é, em termos absolutos, maior para uma família mais rica que para uma família mais pobre. Do ponto de vista distributivo, seria melhor cobrar o imposto da carne e transferir o valor cobrado para as famílias de menor renda via um programa como o Bolsa Família ou via melhora da qualidade da educação pública - que não afeta a distribuição de renda no curto prazo, mas tem enorme impacto no longo prazo.
Em segundo lugar, propostas de elevação da alíquota mais alta do imposto de renda das pessoas físicas (IRPF) desconsideram o fato de que uma parcela muito relevante da renda das famílias de maior renda não está sujeita à incidência do IRPF. Segundo dados obtidos a partir das declarações de IRPF relativas ao ano de 2012, enquanto a renda tributável dos contribuintes com renda anual superior a R$ 149 mil é de R$ 383 bilhões, a renda total dos contribuintes com renda anual superior a R$ 138 mil é de R$ 962 bilhões (dados da dissertação de mestrado de Fábio Avila de Castro, Imposto de renda da pessoa física: comparações internacionais, medidas de progressividade e redistribuição. Infelizmente, os dados da dissertação não apresentam o valor da renda bruta total e da renda bruta tributável para as mesmas faixas de renda).
Embora os números não sejam perfeitamente comparáveis, as faixas de renda são próximas e sugerem que a maior parte da renda das pessoas mais ricas não está sujeita à incidência do IRPF.
Essa renda não tributável pelo IRPF consiste no rendimento de aplicações financeiras, nos lucros distribuídos por grandes empresas na forma de juros sobre o capital próprio e dividendos e, ao que tudo indica, principalmente nos lucros distribuídos aos sócios de empresas dos regimes do lucro presumido e do Simples. A maior parte desses rendimentos é tributada a uma alíquota inferior à maior alíquota do IRPF, que é de 27,5%.
Assim, por exemplo, um profissional liberal que abra uma empresa do lucro presumido será tributado na empresa a uma alíquota entre 11,3% e 14,5% e estará isento na pessoa física. Já os juros sobre o capital próprio recebidos pelos acionistas das grandes empresas são tributados exclusivamente na fonte à alíquota de 15%.
Em terceiro lugar, e por fim, a experiência internacional mostra que impostos incidentes anualmente sobre as grandes fortunas não são eficientes, até porque em grande parte dos casos as grandes fortunas não são líquidas, o que dificulta o pagamento do imposto sem gerar enormes problemas operacionais.
Isso não significa que não seja possível aumentar a progressividade do sistema tributário brasileiro, mas apenas que os instrumentos devem ser outros. Embora os gastos públicos sejam mais eficientes que a tributação como forma de melhorar a distribuição de renda, sempre que for possível melhorar a progressividade do sistema tributário sem prejudicar a arrecadação e a eficiência econômica, isso deve ser feito.
Em particular, entendo que é essencial rever a tributação dos juros sobre o capital próprio (de preferência reduzindo simultaneamente a alíquota do Imposto de Renda das empresas, para torná-las mais competitivas) e a tributação dos rendimentos distribuídos aos sócios de empresas do lucro presumido e do Simples.
Adicionalmente, embora a tributação das grandes fortunas não seja eficiente, é possível avançar muito na progressividade da tributação das heranças no Brasil, que hoje é feita pela alíquota máxima de 4%. Mesmo que não seja possível elevar muito essa alíquota (que na França, por exemplo, é de 45%) por causa do risco de transferência do patrimônio para paraísos fiscais, certamente é possível cobrar mais que 4% sobre as heranças no Brasil, sem gerar distorções econômicas.
*Bernard Appy é diretor da LCA Consultores, foi secretário executivo e secretário de política econômica do Ministério da Fazenda
Fonte: O Estado de S. Paulo
Via Fenacon
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