terça-feira, 27 de janeiro de 2015

27/01 MP 664 parece ter sido editada sem atuação de especialistas

Dentre as questões objeto da medida provisória 664, editada pela presidente Dilma Rousseff no apagar das luzes de 2014 (dia 30 de dezembro), novas regras para a pensão por morte passaram a ser aplicáveis ao sistema federal (INSS e previdência dos servidores civis federais), para as quais explicações governamentais estariam destinadas a “corrigir distorções” do sistema, propiciando apenas no item em questão “economia de 2 bilhões por ano”.

Faz-se necessário destacar que a Constituição Federal reserva ao governante a utilização da edição de medidas provisórias em situações excepcionais de “relevância e urgência”, o que causa estranheza, para dizer o menos, considerando que as “distorções” apontadas vigoram já por mais de 20 anos, sem que tenha havido atuação do próprio governo na “correção dos desvios”, com a simples apresentação de projetos de lei, visando à legítima e democrática discussão no âmbito do parlamento.

Superada a questão da “relevância e urgência”, é importante destacar que das novas regras direcionadas para correção de desvios, há equívocos flagrantes e erros primários que denunciam a falta de cuidado na elaboração do texto da MP. Em qualquer sistema normativo que se alcance milhões, eventuais distorções são esperadas, dada a incapacidade humana de se projetar regras com o alcance geral e, ao mesmo tempo, que abarque todos os casos. De toda sorte, haveria formas normativas muito mais inteligentes e pertinentes às correções, as quais poderiam ser objeto de outro artigo específico.

É preciso destacar que entre as excrescências do texto da MP, alguns detalhes chamam a atenção, em especial, o tempo de carência (mínimo de contribuições) e o tempo de duração do benefício.

Segundo as novas regras, ao tempo da morte do segurado (época em que nasce o direito à pensão), teria que ter o contribuinte 24 meses de contribuição. Todavia, a nova exigência destoa do sistema previdenciário, considerando que para se alcançar o benefício do auxílio-doença, ou o da aposentadoria por invalidez, a regra em vigor (e não alterada) prevê tão apenas 12 meses de carência. Ou seja, em situação indiscutivelmente mais grave e repentina (a morte), a carência seria superior à de um benefício por incapacidade, o que se reputa desarrazoado. Assim, na hipótese de morte do segurado, cuja previsibilidade escapa ao controle humano, passaria a ser exigida carência (de 24 meses) superior ao benefício por simples afastamento temporário do trabalho. A incoerência foi tamanha que no próprio texto consta que, se o segurado falecer no curso do gozo do auxílio-doença ou da aposentadoria por invalidez, surgiria o direito à pensão, mesmo que o segurado  tenha preenchido apenas 12 meses de carência, mínimo exigido para a concessão daqueles benefícios. Ou seja, doravante, em alguns casos, melhor seria se o segurado, “antes de morrer” (?), “recebesse” o auxílio-doença.

Por outro lado, no que tange ao tempo de duração do benefício, outras não menos assustadoras inconsistências são extraídas do texto da MP. Com efeito, segundo a nova regra, o tempo de percepção do benefício ficaria vinculado ao critério de expectativa de sobrevida (critério adotado, que contém erros básicos) do pensionista ao tempo do início da pensão. Assim, no caso de um pensionista com 44 anos de idade, por exemplo, a ele seria destinada a pensão vitalícia. Todavia, aos 43 de idade, aí não, a pensão vigoraria por apenas 15 anos. Por um ano, ou até por dias ou horas de diferença, algum pensionista teria o benefício estendido por toda vida, ou por apenas 15 anos (?) — o que torna evidente a precariedade da fixação de um critério temporal objetivo para estes fins.

Inúmeras outras problematizações  poderiam ser opostas ao texto, incluindo a regulação por MP de parâmetro da pensão do servidor público federal, regramento definido na própria Constitucional Federal, cuja contestação seguramente será manejada na via judicial, caso o parlamento não limite a atuação em exame.

Aliás, ao exibir os “fundamentos” para a edição da referida medida provisória, foi apresentada planilha com o benefício de pensão nos termos praticados em alguns países pelo mundo, na tentativa de, com isso, evidenciar a incorreção brasileira. O artifício, longe de convencer, denuncia que os articuladores da medida legal não atentaram que um sistema previdenciário contém complexidades que escapam à simples comparação com benefícios isolados de outros modelos normativos. Quem sabe na próxima consulta , os agentes do governo possam descobrir que há benefícios em outros sistemas que jamais seriam cogitados aqui. A complexidade de um sistema previdenciário não permite comparações isoladas de benefícios, tendo em vista especialmente as situações históricas e singulares que moldam os sistemas pelo mundo.

De qualquer forma, chama a atenção a clarividente falta de cuidado na edição de um texto legal que pode afetar milhões (em sua maioria, pessoas humildes, eis que 74% das pensões são pagas pelo valor do salário mínimo), em que parece ter inexistido a atuação de  especialistas sobre o assunto, tendo o tema ficado reservado aos cuidados de plantonistas e economistas que, possivelmente, orientaram a edição desse monstro embalado como presente de final de ano.

por Lásaro Cândido da Cunha é advogado e professor, doutor em Direito. Diretor Jurídico do Clube Atlético Mineiro.

Fonte: Conjur

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