A Desvinculação de Receitas da União (DRU) foi um mecanismo elaborado e inaugurado pela Emenda Constitucional de Revisão nº 01/1994. Criada para instituir um fundo emergencial nos exercícios de 1994 e 1995, período de forte turbulência econômica e política para o país, estabelecia que 20% da arrecadação total com impostos e contribuições sociais, alcançando mais tarde também as contribuições de intervenção econômica, fosse desvinculada, i.e., que essa fatia da receita fosse entregue sem embaraços e obrigações orçamentárias à União.
Há mais de 20 anos sendo prorrogada por sucessivas emendas, a DRU continua em vigor, passando a constituir um aparato manifestamente inconstitucional, um distúrbio orçamentário que põe em prática o não-orçamento, tendo perdido há muito seu caráter provisório. Representa, assim, a verdadeira antítese ao princípio da legalidade orçamentária, o qual aduz que todas as receitas e despesas devem estar previstas na lei orçamentária anual, observando o devido processo legal.
Neste ponto, a DRU aparece não só como uma desvinculação, mas como uma marginalização da dotação orçamentária. Além de remanejar um quantum bastante expressivo, atinge determinados tributos que têm sua receita vinculada.
Não se deve permitir que dispositivo provisório viole cláusulas pétreas que resguardam direitos fundamentais
Isto porque a DRU alcança também as contribuições sociais que, ao contrário dos impostos – que ao adentrarem nos cofres públicos, não têm destinação específica, podendo o governo empregá-los livremente, nos moldes do orçamento -, têm suas receitas vinculadas por previsão constitucional e, portanto, uma vez auferidas pela União, possuem uma destinação específica: o custeio da seguridade social.
Ora, é importante considerar que a seguridade social engloba prestações essenciais como saúde, previdência e assistência social. Seria, portanto, constitucional desvincular, ainda que parcialmente, as receitas destinadas à cobertura destes serviços?
Aparentemente não. A DRU, no que toca às contribuições sociais, fere a Constituição por dois fundamentos: (i) o conceito de contribuição é cláusula pétrea, e a vinculação de sua receita é da natureza deste tributo, validando sua cobrança e diferenciando-o dos demais; por outro lado, (ii) a seguridade social contempla direitos e garantias fundamentais, estes constitucionalmente invioláveis e indissociáveis à dignidade da pessoa humana.
A despeito de o mecanismo, como um todo, ser um verdadeiro despautério orçamentário, é acerca das contribuições sociais que a DRU expõe suas mazelas de maior repercussão. Ao desvincular as receitas provenientes das contribuições sociais, o legislador acabou por exorbitar limitações ainda mais profundas, violando cláusulas pétreas como direitos e garantias fundamentais e o conceito constitucional de contribuição social.
Trazendo a celeuma para outra seara, ao desvincular a receita das contribuições sociais, a União, em flagrante descaso, reconhece que a atual arrecadação é mais que suficiente à manutenção da seguridade social assegurada pelo Estado e, portanto, pode dispor do excedente como bem entender.
Pois bem. Se 20% do que se arrecada a título de contribuição social pode ser livremente manejado pela União, está-se reconhecendo que essa parcela da arrecadação total para atender a seguridade social é despicienda. Se assim o é, e se as contribuições sociais têm uma validade finalística, essa cobrança é abusiva, pois arrecada além do necessário para os fins constitucionalmente estabelecidos.
Assim, o legislador, ao entender que há excesso na cobrança das contribuições sociais, e sendo a DRU utilizada para redirecionar esse excedente em favor da União, retira da contribuição a sua essência, destinando os valores recolhidos a atividades não pertinentes.
Não pode o legislador desviar a função constitucional de um tributo, destacando-lhe da sua atividade-fim, ou se utilizar deste para cobrir despesas que competem a outras espécies de tributo; cabe lembrar que o financiamento de gastos gerais é função típica dos impostos.
Ao que tudo indica, a DRU viola um direito fundamental do contribuinte, vez que desloca parte dos valores que este recolhe ao erário para outras atividades que não a seguridade social. De tal modo, caberia ao contribuinte, eventualmente, pleitear a repetição do indébito da parcela que não esteja sendo destinada corretamente.
Assim, não se deve permitir que um dispositivo provisório, ainda que inserido na Carta Constitucional, viole cláusulas pétreas que resguardam direitos fundamentais e limitações constitucionais ao poder de tributar do Estado. A essência de cada tributo deve ser respeitada como fonte balizadora, de modo que não se macule a destinação específica e a validade do tributo no âmbito constitucional.
Gustavo Erthal é advogado e sócio de Mello Alves e Trindade advogados
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Fonte: Valor | Por Gustavo Erthal
Via Alfonsin
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