Recentemente, no dia 1º de abril, num sábado frio de outono, fomos alcançados pela triste notícia do passamento de alguém muito especial e querido por todos os que atuam na área tributária, o professor Aires Fernandino Barreto. Uma irreverência do destino, já que sua falta seria uma dura verdade com a qual teríamos que conviver.
A importância do professor Aires será sempre lembrada, imortalizada na memória de todos com suas palestras, aulas ou conferências legendárias, pela didática incomparável, sua eloquência de orador máximo, elegância da crítica respeitosa e clareza dos argumentos. E, quanto à sua produção, ninguém avançou mais na pesquisa acadêmica da tributação municipal e sobre a teoria da base de cálculo dos tributos do que ele. Foi e será sempre o jurista maior da tributação dos serviços do nosso país.
Cuidaremos aqui de tema sempre recorrente, qual seja, a determinação do local da prestação do serviço para os fins da incidência do Imposto sobre Serviços (ISS), pelo método jurídico da qualificação do serviço-meio e do serviço-fim, como uma singela homenagem ao professor Aires Barreto, do alto da nossa amizade e da saudade que vive.
Para determinar o regime de atribuição da sujeição ativa do ISS, a separação constitucional de competências, do artigo 156, III, da CF, autoriza o tratamento colhido pelos artigos 3º e 4º, da Lei Complementar 116/2003, quanto à definição da territorialidade municipal autorizada à tributação e, ao mesmo tempo, os critérios gerais de solução de eventual conflito de competência que daí decorra.
Quanto à tipicidade, essa exsurge a partir do próprio conceito de” serviço” haurido do Direito Privado, o qual prescreve uma demarcação à atividade legislativa e administrativa sobre as regras do ISS, por força do artigo 110, do CTN, in verbis:
“A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
A partir desse texto, como o conceito de “prestação de serviços” é o núcleo material da competência tributária, ao entabular seus limites materiais, deve ele ser preservado e mantido segundo seu significado de base, ou seja, de acordo com os critérios adotados pelo Direito Privado. Destarte, o sentido a ser atribuído ao termo juridicamente qualificado como prestação de serviços, pela Constituição, para o exercício de competência dos municípios, deverá ser aquele que a legislação de Direito Privado designa, construído nos artigos 593 e seguintes do Código Civil.
No Direito Privado, o contrato de prestação de serviço caracteriza-se pela presença dos seguintes elementos: o prestador (ou devedor) que é contratado para prestar serviços (i), o tomador (ou credor) em favor de quem o serviço é prestado (ii); o objeto, que é a prestação de serviços, trabalho ou atividade lícita, material ou imaterial (iii) e; o pagamento de contraprestação (iv). Note-se que não estão abrangidos na disciplina do Código Civil contratos sujeitos às leis trabalhistas ou a normas especiais.
É nesse particular que a identificação do local da prestação do serviço, conexo ao estabelecimento prestador, exige conhecer a “causa” do negócio jurídico ou o propósito negocial do “contrato de serviço”, conforme o artigo 114 do CTN. E este prescreve que somente configura-se o fato gerador da obrigação tributária quando concretizado no mundo social aquele evento que reúna as condições necessárias e suficientes descritas na hipótese de incidência tributária.
A Lei Complementar 116/2003, firme nesse propósito de especificação, no artigo 1º, dispõe que o ISS “tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa” e, conforme o parágrafo 4º, “a incidência do imposto não depende da denominação dada ao serviço prestado”. Por conseguinte, tem-se um regime baseado na prevalência de substância sobre a forma, ao lado do critério de localização do estabelecimento prestador, a confirmar a “causa jurídica” como imprescindível.
Para ilustrar nossa preocupação com metodologia rigorosa e uniforme para solução dos casos de conflito de competência, a partir do artigo 114 do CTN e do disposto nos artigo 3º e 4º da Lei Complementar 116/2003, vejamos um caso recentemente decidido no Superior Tribunal de Justiça: a incidência do ISS sobre os serviços de análises clínicas, do item 4.02 da lista anexa à Lei Complementar 116/2003. A saber:
TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS. LABORATÓRIO DE ANÁLISES CLÍNICAS. COLETA DE MATERIAL. UNIDADES DIVERSAS. LOCAL DO ESTABELECIMENTO PRESTADOR. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. Discussão a respeito da definição do sujeito ativo do ISS quando a coleta do material biológico dá-se em unidade do laboratório estabelecida em município distinto daquele onde ocorre a efetiva análise clínica. (...) 4. O ISS recai sobre a prestação de serviços de qualquer natureza realizada de forma onerosa a terceiros. Se o contribuinte colhe material do cliente em unidade situada em determinado município e realiza a análise clínica em outro, o ISS é devido ao primeiro município, em que estabelecida a relação jurídico-tributária, e incide sobre a totalidade do preço do serviço pago, não havendo falar em fracionamento, à míngua da impossibilidade técnica de se dividir ou decompor o fato imponível. 5. A remessa do material biológico entre unidades do mesmo contribuinte não constitui fato gerador do tributo, à míngua de relação jurídico-tributária com terceiros ou onerosidade. A hipótese se assemelha, no que lhe for cabível, ao enunciado da Súmula 166/STJ, verbis: "Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de uma para outro estabelecimento do mesmo contribuinte"[1].
A posição firmada, porém, reclama novas reflexões.
Como método, para os fins de aplicação da regra-matriz do ISS, importa a atividade negocial do contribuinte, aquela exercida com finalidades onerosas, quando tenha caráter de atividade-fim, prestada a terceiro, na forma dos serviços qualificados na lista anexa à Lei Complementar 116/2003.
Perceba-se que em um único item foram identificados ao menos dez tipos distintos de serviços de medicina diagnóstica: (1º) análises clínicas, (2º) patologia, (3º) eletricidade médica, (4º) radioterapia, (5º) quimioterapia, (6º) ultrassonografia, (7º) ressonância magnética, (8º) radiologia, (9º) tomografia e (10º) congêneres. Por razões óbvias, não se pode adotar critério de tributação que não atende às especificidades de cada um desses.
Ora, somente quando houver “prestação de serviços”, o que somente poderá ser assim identificada mediante a presença da respectiva “causa” ou finalidade prática e jurídica do contrato de serviço, é que poderá ser exercida a competência municipal, na exigibilidade do ISS.
Aqui fica afirmada tese fundamental: não existe vis attractiva absoluta do conceito de “estabelecimento”, pela simples localização deste em dado município no qual seja praticado algum ato negocial. A incidência do ISS só se opera se presentes os requisitos do artigo 114 do CTN, ou seja, as condições necessárias e suficientes à ocorrência da efetiva prestação do serviço nos seus domínios.
Casos em que a prestação de serviço concretiza-se em outros locais, por inferência lógica, não podem ser imputados ao estabelecimento no qual somente operou-se uma “venda de contrato” (como nos planos de saúde), onde se deu apenas um “serviço-meio” (logística) ou onde se deu simples “coleta” (recebimento de material).
Isso exsurge da norma de proibição para qualquer atuação que extrapole os limites territoriais, vedada qualquer hipótese de cobrança sobre fatos realizados em espaço sujeito a outras entidades tributantes. Por conseguinte, daí decorre que os artigos 3º e 4º, da LC 116/2003 impõem o ISS devido segundo a ocorrência dos serviços prestados (critério material e temporal), tendo como critério de solução de conflitos de competências aquele do município onde se encontra o estabelecimento prestador daqueles serviços, a serem identificados pela presença de critérios objetivos.
Por força do artigo 4º da Lei Complementar 116/2003, é “estabelecimento prestador” o “local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, o que configure unidade econômica ou profissional”. Esses critérios devem ser provados, como evidenciadores da causa jurídica do contrato de prestação de serviços.
Para melhor compreensão, importa lembrar que o caput do artigo 3º estabelece três regras para identificação do município competente: o local do estabelecimento prestador (i); o local do domicílio do prestador (ii); ou o local da prestação de serviços, para os serviços expressamente arrolados nos incisos I a XXII (ii).
A regra geral é que o ISS seja cobrado no município onde se encontra o “estabelecimento prestador”, seja ele sede ou filial, temporário ou permanente, formalmente constituído ou não. Contudo, não basta a forma. O importante é que o “estabelecimento prestador” configure uma “unidade econômica ou profissional”, na qual seja concluído o serviço tributável pelo município.
Aquela regra do artigo 3º da LC 116/2003 confere prevalência para o exercício da competência do município de localização da prestação do serviço, que terá poderes para qualificar o fato jurídico tributário, desde que atendido o pressuposto fundamental: a prova da conexão com o “estabelecimento”. Sem que este seja provado, a competência será do município da “filial” ou da “sede” à qual estejam vinculados.
Assim, quando presente uma dada prestação de serviço, por unidade econômica ou profissional que caracterize o estabelecimento prestador, ainda que essa unidade seja temporária e não esteja constituída formalmente, teremos um “estabelecimento prestador” com força de atração para autorizar a competência tributária municipal, pela interpretação conjunta dos artigo 114 do CTN e artigos 3º e 4º da LC 116/2003.
Em resumo, a força de atração da competência do município da prestação somente se aperfeiçoa com a prova da existência de “estabelecimento” (i) e da efetiva prestação do serviço no seu território (ii). Não basta a existência do “estabelecimento”, mas também não se faz necessário que este tenha forma jurídica predefinida.
Dito de outro modo, o ISS deverá ser aplicado sempre que o serviço tributado (do fato jurídico tributário) realizar-se efetivamente, a partir das as condições necessárias e suficientes à sua ocorrência (artigo 114 do CTN), apuradas pela causa jurídica dos serviços, e for provada a presença de um “estabelecimento prestador” (critério legal de conexão com a competência municipal), mesmo que não esteja formalmente constituído, bastando que se configure como unidade econômica ou profissional na qual o prestador executa os serviços, em caráter permanente ou temporário.
A efetiva prestação de serviços concretiza-se com o alcance do produto intangível (serviço) que é a finalidade do contrato. Urge que se satisfaçam as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios. Já se vê daí que a existência de filiais e contratos como eleição de foro em outros municípios, por si só, não são elementos suficientes a ensejar a mudança da competência ativa do ISS.
Destarte, não se sujeitam à incidência do imposto municipal aquelas "atividades-meio", ou etapas preparatórias para a prestação de serviços. Como sempre lembrava Aires Barreto[2], por vezes, o conflito de competência entre dois municípios ocorre tendo em vista o equívoco em relação à concretização do fato imponível, o que demanda a análise conjugada do aspecto material e temporal do ISS.
Para identificação objetiva do estabelecimento prestador, ao qual o contrato de serviço queda-se vinculado, impõe-se conhecer a “causa” do negócio jurídico e, assim, saber onde foi alcançado o propósito negocial. Atos preparatórios, coleta de dados ou informações, vistoria de equipamentos, retirada ou entrega de documentos, dentre outros, não se confundem com a efetiva prestação de serviços.
Para tanto, assumem posição de destaque os seguintes elementos para caracterização da presença do estabelecimento:
- manutenção de pessoal, material, máquinas, instrumentos e equipamentos necessários à execução dos serviços;
- existência de estrutura gerencial, organizacional e administrava compatível com as atividades desenvolvidas;
- inscrição na prefeitura do município e órgãos previdenciários;
- informação desse local como domicilio fiscal, para fins de pagamento de outros tributos;
- divulgação desse endereço em impressos, formulários, correspondência, contas etc.[3].
Sempre que o serviço for prestado por uma filial localizada em outro município, ou “unidade econômica ou profissional permanente temporária”, a força de atração do estabelecimento vincula a competência do município da localização da prestação do serviço, com exclusão imediata da competência do município da sede, ou vice-versa.
Assim, para os fins da hipótese do item 4.02 da lista anexa à LC 116/2003, tem-se que verificar se há efetiva presença de serviços, para daí imputar ao estabelecimento prestador a condição de sujeito passivo do imposto. Disso resulta que quando o serviço é prestado no próprio local, em cada estabelecimento laboratorial, ali se aperfeiçoa o fato gerador do ISS. É o caso dos exames por imagens, quando a causa jurídica poderá ser atestada, pois se trata do local onde técnicos e médicos radiologistas operam os equipamentos, interpretam as imagens e elaboram o laudo técnico do serviço de radiologia e diagnóstico por imagem. Entretanto, se o fato gerador verifica-se em outro território, não basta a simples “coleta” de material para autorizar a incidência do ISS.
Essa mesma metodologia irradia-se para outras matérias.
No Superior Tribunal de Justiça, firmou-se entendimento que o ISS é devido no estabelecimento prestador, onde é efetivada a prestação de serviços. No caso de empresa operadora de leasing, fixou entendimento de que esta tem sua gestão negocial no local da sua sede[4], qualificação assim reconhecida à luz do exame do regime jurídico e fático da operação de leasing. Em que pese nosso entendimento de que casos há nos quais se justificaria a tributação no município de gestão dos bens em leasing, a tese jurídica do recurso repetitivo afirma “direito novo”.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, no julgamento do RE 651.703/PR, consolidou a tese de que “as operadoras de planos privados de assistência à saúde (plano de saúde e seguro-saúde) realizam prestação de serviço sujeita ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN, previsto no art. 156, III, da CRFB/88”. De se ver, o STF não cuidou da competência do local da prestação de serviço ou do estabelecimento. Resumiu-se a esclarecer que a atividade das operadoras de planos de saúde restariam sujeitas ao ISS, por se tratar de “obrigação de fazer”.
É bem verdade que a Lei Complementar 116/2003, em seu artigo 3º, afirma o que já se encontrava no artigo 12, do Decreto-lei 406/1968, ao definir o município competente segundo o local onde o prestador mantém sua sede ou estabelecimento prestador, no limite dos incisos I a XXII, do artigo 3º, da lei complementar. Ao assumir esse critério, o município competente para tributar os serviços de plano de saúde será sempre aquele onde se verifique a presença do estabelecimento prestador.
Por tudo isso, para a determinação objetiva de obrigações tributárias, o ISS somente poderá ser exigido quando o estabelecimento prestador estiver localizado no território do município no qual sejam atendidos os requisitos de substância do artigo 114 do CTN e do artigo 4º, da LC 116/2003, como direito fundamental de certeza jurídica.
Logo, a partir da determinação das condições necessárias e suficientes para o fato jurídico tributário do ISS, o contribuinte será a unidade profissional onde sejam prestados os serviços (i) e o sujeito ativo será o município onde se verifique sua ocorrência (ii), segundo a localização do estabelecimento prestador, e não o lugar de residência do “tomador” dos serviços, ou no qual contratos isolados sejam firmados. Deveras, o fato jurídico tributário somente se aperfeiçoa, como alude o artigo 116, inciso I, do CTN, quando se verifica, na situação de fato, as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios.
***
Por fim, cumpre-me renovar um convite a todos. Neste ano, o Brasil será a sede do 71º Congresso da IFA – International Fiscal Association, a se realizar no Rio de Janeiro (http://www.ifa2017rio.com.br/), com organização da ABDF e com o apoio das maiores instituições vocacionadas aos estudos da tributação. Teremos como temas: Subject 1 – Beps and taking stock e Subject 2 – The future of transfer pricing. Trata-se de Congresso de larga importância no âmbito mundial. Desde 1989 não se realiza um Congresso da IFA no país, e são esperados aproximadamente 2.600 participantes. Para conhecer profissionais dos mais variados países, bem como para aprofundamento das questões relativas ao Fisco global, trocas automáticas de informações ou os novos modelos de combate aos planejamentos tributários agressivos, esta será uma ótima ocasião. Estaremos lá.
[1] REsp 1.439.753-PE, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, rel. para acórdão min. Benedito Gonçalves, julgado em 6/11/2014, DJe 12/12/2014.
[2] Nas palavras de Aires Barreto: “Embora sejam corriqueiras as situações em que dois ou mais Municípios se sintam competentes para exigir o ISS, na maioria delas a pretensão dá-se em virtude de não de saber-se se existe ou não um estabelecimento prestador neste ou naquele Município, mas de equívoco relativo à verificação de ocorrência de uma prestação de serviços”. BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na Lei. 3ª ed., SP: Dialética, 2009, p. 261.
[3] BARRETO, Aires. ISS na Constituição e na Lei. 3ª ed., SP: Dialética, 2009. p. 265.
[4] STJ. 1ª Seção. REsp 1.060.210-SC. Relator: min. Napoleão Nunes. Julgado em 28/11/2012.
Heleno Taveira Torres é professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).
Fonte: Conjur
Nenhum comentário:
Postar um comentário