Os administradores de sociedades anônimas possuem deveres e responsabilidades previstos expressa e detalhadamente na Lei 6.404/1976 (Lei de Sociedades Anônimas – LSA), dentre os quais se destaca o dever de lealdade, previsto no art. 155, que tem a seguinte redação:
Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado:
II – omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia;
III – adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta tencione adquirir.
Quanto ao cumprimento desse dever pelos administradores, a legislação acionária brasileira dá destaque à obrigação de manter sigilo acerca de informações relevantes sobre os negócios da sociedade, sobretudo quando se trata de companhia aberta, isto é, aquelas que negociam seus valores mobiliários no mercado de capitais. Nesse sentido, confiram-se os parágrafos do art. 155:
§ 1º. Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários.
§ 2º. O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através de subordinados ou terceiros de sua confiança.
§ 3º. A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do disposto nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos que ao contratar já conhecesse a informação.
§ 4º. É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários.
O grande objetivo da legislação acionária, nesses casos, é evitar a prática do chamado insider trading, que consiste, grosso modo, no uso de informações internas e/ou sigilosas para obtenção de vantagem, algo que também é caracterizado como crime pela Lei 6.385/1976, que assim tipifica em seu art. 27-D:
Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.
Em fevereiro de 2011, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e o Ministério Público Federal conseguiram no Judiciário a primeira condenação penal por insider trading no Brasil, em caso referente à Oferta Pública de Aquisição (OPA) da Perdigão feita pela Sadia em 2006. Confiram-se, a propósito, as ementas dos acórdãos proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região e pelo Superior Tribunal de Justiça (este em 2016) no julgamento desse caso:
Penal e processual penal – crime contra o mercado de capitais – uso indevido de informação privilegiada – insider trading – art. 27-D da Lei nº 6.385/76 – Justiça Federal – competência – autoria, materialidade e dolo – comprovação – ofensa ao bem jurídico tutelado no Brasil – reprimendas que devem ser majoradas – pena de multa – fundo penitenciário nacional – artigo 72 do CP – inaplicabilidade – fixação do dano moral coletivo (art. 387, VI, CPP) – aplicação – apelação ministerial parcialmente provida – apelação defensiva desprovida.
(…)
2. Autoria delitiva comprovada ante o conjunto probatório carreado, apto à demonstração de infringência ao dever de lealdade consubstanciada na utilização de informações privilegiadas ainda não divulgadas ao mercado acionário nas operações referentes à oferta pública de ações, em razão dos cargos ocupados pelos acusados. Materialidade induvidosa ante a prova documental coligida.
3. Não há falar em ausência de dolo, pois os acusados eram ocupantes de funções de alta relevância na empresa, e por óbvio tinham ciência do dever de lealdade e de sigilo das informações em razão dos cargos que ocupavam, bem como não poderiam utilizar de informações privilegiadas para negociar valores mobiliários no mercado de capitais, valendo-se de intermediários estrangeiros com o intuito de ocultar das autoridades brasileiras as operações negociadas no exterior.
4. O bem jurídico tutelado no delito em apreço consiste na confiança depositada pelos investidores no mercado a fim de assegurar o correto funcionamento do mercado de capitais. Ademais, a credibilidade das operações do mercado de valores mobiliários se consubstancia na transparência das informações e na divulgação ampla de fato ou ato relevante a fim de garantir a igualdade de condições a todos investidores de operar no mercado de capitais.
(…)
16. In casu, além do insider ter praticado a conduta delitiva prevista no art. 27-D da Lei nº 6.385/76, ele violou, da mesma forma, as disposições contidas nos artigos 153 e 155 da Lei nº 6.404/76, bem como no art. 1º, I e II, da Lei nº 7.913/89.
(…)
19. A despeito das previsões contidas no artigo 13 da Lei nº 7.347/85 e art. 2º, § 2º, da Lei nº 7.913/89, os valores serão destinados à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) que, conforme especificado na sentença, deverão ser utilizados na promoção de eventos educativos, bem como na edição de material informativo acerca da conscientização dos investidores sobre os malefícios da prática do delito de insider trading.
20. Preliminar rejeitada. Improvimento do recurso defensivo. Parcial provimento da apelação ministerial.
(TRF3, Apelação Criminal 0005123-26.2009.4.03.6181/SP)
PENAL E PROCESSUAL. CRIME CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS. ART. 27-D DA LEI N. 6.385/1976. USO INDEVIDO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA – INSIDER TRADING. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO ACOLHIMENTO. DOSIMETRIA DA PENA. PENA-BASE. AUMENTO. CULPABILIDADE EXACERBADA. FUNDAMENTO IDÔNEO. PENA DE MULTA. APLICAÇÃO CORRETA. DANOS MORAIS. NÃO CABIMENTO. CRIME COMETIDO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N. 11.719/2008. IRRETROATIVIDADE.
1. Não mais subsistem a utilidade e o interesse recursais em relação ao segundo recorrente, em face da superveniência da prescrição da pretensão punitiva, nos termos do art. 109, V, c/c o art. 110, § 1º, ambos do Código Penal.
2. Quanto ao recurso do primeiro recorrente, cinge-se a controvérsia à análise da qualificação jurídica dada aos fatos delineados pelas instâncias ordinárias, notadamente se a conduta praticada pelo agente se subsume ao tipo previsto no art. 27-D da Lei n. 6.385/1976, e ao exame da dosimetria da pena, não sendo o caso de incidência da Súmula 7 do STJ.
3. A responsabilidade penal pelo uso indevido de informação privilegiada, ou seja, o chamado Insider Trading – expressão originária do ordenamento jurídico norte-americano – ocorreu com o advento da Lei n. 10.303/2001, que acrescentou o artigo 27-D à Lei n. 6.385/76, não existindo, ainda, no Brasil, um posicionamento jurisprudencial pacífico acerca da conduta descrita no aludido dispositivo, tampouco consenso doutrinário a respeito do tema.
4. A teor do disposto nos arts. 3º e 6º da Instrução Normativa n. 358/2002 da Comissão de Valores Mobiliários e no art. 157, § 4º, da Lei n. 6.404/1976, quando o insider detiver informações relevantes sobre sua companhia deverá comunicá-las ao mercado de capitais tão logo seja possível, ou, no caso em que não puder fazê-lo, por entender que sua revelação colocará em risco interesses da empresa, deverá abster-se de negociar com os valores mobiliários referentes às informações privilegiadas, enquanto não forem divulgadas.
5. Com efeito, para a configuração do crime em questão, as “informações” apenas terão relevância para esfera penal se a sua utilização ocorrer antes de serem divulgadas no mercado de capitais. A legislação penal brasileira, entretanto, não explicitou o que venha a ser informação economicamente relevante, fazendo com que o intérprete recorra a outras leis ou atos normativos para saber o alcance da norma incriminadora.
6. Em termos gerais, os arts. 155, § 1º, da Lei n. 6.404/1976 e 2º da Instrução n. 358/2002 da CVM definem o que vem a ser informação relevante, assim como a doutrina pátria, que leciona ser idônea qualquer informação capaz de “influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado”, gerando “apetência pela compra ou venda de ativos”, de modo a “influenciar a evolução da cotação” (CASTELLAR, João Carlos. Insider Trading e os novos crimes corporativos, Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2008, p. 112/113).
7. No caso concreto, não há controvérsia quanto às datas em que as operações ocorreram e nem quanto ao fato de que o acusado participou das discussões e tratativas visando à elaboração da oferta pública de aquisição de ações da Perdigão S.A, obtendo, no ano de 2006, informações confidenciais de sua companhia – Sadia S.A. – as quais, no exercício de sua profissão, tinha o dever de manter em sigilo.
8. Ainda que a informação em comento se refira a operações, na época, em negociação, ou seja, não concluídas, os estudos de viabilidade de aquisição das ações da Perdição já se encontravam em estágio avançado, conforme decisão proferida no procedimento administrativo realizado na CVM, destacada no acórdão recorrido.
9. Diante do quadro delineado na origem, constata-se que a conduta do recorrente se subsume à norma prevista no art. 27-D da Lei n. 6.385/76, que foi editada justamente para assegurar a todos os investidores o direito à equidade da informação, condição inerente à garantia de confiabilidade do mercado de capitais, sem a qual ele perde a sua essência, notadamente a de atrair recursos para as grandes companhias.
10. Quanto à dosimetria da pena, não prospera a aventada contrariedade ao art. 617 do Código de Processo Penal, que trata da proibição de alterar ou agregar novos fundamentos para justificar o agravamento da pena quando somente a defesa houver recorrido, não se aplicando nas hipóteses em que o Ministério Público também recorre com o objetivo de aumentar a reprimenda, sob o argumento de que a sanção final não se revelou suficiente à reprovação e à prevenção do crime.
11. O cargo exercido pelo recorrente na época dos fatos – Diretor de Finanças e Relações com Investidores da Sadia S.A. – constitui fundamento idôneo para justificar o aumento da pena-base, “diante da sua posição de destaque na empresa e de liderança no processo de tentativa de aquisição da Perdigão”, conforme destacou o acórdão recorrido.
12. Pena de multa aplicada de forma fundamentada, em R$ 349.711,53 (trezentos e quarenta e nove mil, setecentos e onze reais e cinqüenta e três centavos), nos termos dos arts. 27-D e 27-F da Lei n. 6.385/1976 e do art. 71 do Código Penal, com o objetivo de desestimular a conduta ilícita e resguardar a confiança do mercado mobiliário.
13. A despeito de a redação do art. 387, IV, do Código de Processo Penal, conferida pela Lei n. 11.719/2008, estabelecer que o juiz, ao proferir sentença condenatória, “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”, a referida norma, por possuir caráter processual e penal, não pode ser aplicada à espécie, em face do preceito constitucional previsto no art. 5º, XL, da CF/88, que veda a retroatividade da lei penal in pejus.
14. Recurso especial do segundo recorrente prejudicado, em razão do reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva; recurso especial do primeiro recorrente parcialmente provido para afastar da condenação a imposição de valor mínimo para a reparação a título de danos morais coletivos.
(REsp 1569171/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 16/02/2016, DJe 25/02/2016)
Desde então, a CVM e o Ministério Público Federal tem aumentado seus esforços no combate a essa prática, monitorando constantemente as operações realizadas pelas companhias abertas.
Como defensor da autorregulação do livre mercado e crítico do intervencionismo estatal na economia, sempre expus, nas minhas aulas e nos meus escritos, uma opinião crítica sobre como o assunto é tratado na legislação brasileira e internacional. Penso que, num ambiente de livre mercado genuíno, o simples uso de informações ainda não tornadas públicas por um investidor não é algo errado, per se. Os especuladores, fundamentais para o funcionamento do mercado de capitais, sempre buscam todas as informações possíveis para fazer seus investimentos, inclusive aquelas que ainda não foram tornadas públicas (aliás, essas são as melhores). Ora, contanto que tais informações tenham sido adquiridas sem a utilização de nenhum meio ilícito (fraude, violência etc.), não consigo vislumbrar nada de errado em tal procedimento, até porque essas informações, por mais privilegiadas que sejam, não excluem por completo o risco do especulador. Ademais, é forçoso reconhecer que a definição legal do “crime” de insider trading é extremamente vaga, criando mais insegurança jurídica, que a regra supostamente visa a proteger. O Estado ainda pode usar o tipo penal que coíbe o insider trading para punir, eventualmente, alguém que obteve sucesso no mercado de capitais de forma honesta. Isso pode ocorrer porque é praticamente impossível diferenciar de forma clara e objetiva o insider trading que deve ser punido e as pesquisas especulativas legítimas feitas por um investidor. Por outro lado, é óbvio que os próprios estatutos das companhias abertas vão prever formas de combater a prática do uso de informações sigilosas por parte de seus administradores, mas isso é algo que cabe à companhia fazer, punindo seus administradores por quebra da relação de confiança que deve existir entre eles, e não algo que mereça tipificação como crime. Por fim, fica a pergunta: é possível um mercado de capitais sem insider trading? Parece-me que isso seria contra a própria natureza desse tipo de mercado.
A despeito dessa minha opinião, porém, o fato é que o tipo penal existe e tem sido investigado e punido, como demonstram os julgados acima mencionados. Nesse cenário, uma pergunta interessante tem sido feita nos últimos dias: teriam os executivos da JBS praticado o crime de insider trading quando, aproveitando-se da informação privilegiada que tinham sobre as denúncias contra o presidente Michel Temer e o Senador Aécio Neves, comparam uma grande quantidade de dólares no dia anterior à divulgação delas?
É difícil fazer uma afirmação conclusiva. Primeiro, porque o tipo penal é vago – e essa é justamente uma das críticas que fazemos a ele –, permitindo interpretações diversas sobre os conceitos nele contidos. Segundo, porque a operação em questão foi feita com dólares, e o art. 27-D da Lei 6.385/1976 fala em “negociação (…) com valores mobiliários”, os quais, de acordo com a mesma lei, são:
Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I – as ações, debêntures e bônus de subscrição;
II – os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;
III – os certificados de depósito de valores mobiliários;
IV – as cédulas de debêntures;
V – as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;
VI – as notas comerciais;
VII – os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;
VIII – outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes;
IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros
Como se vê, o dólar (moeda estrangeira) não se encaixa perfeitamente em nenhuma das definições acima, sendo temerário, em princípio, fazer-se uma interpretação extensiva nesse sentido, sobretudo por se tratar de uma norma penal incriminadora (essa questão específica, porém, pode ser mais bem respondida pelos penalistas, que há tempos debatem sobre os limites da interpretação extensiva em prejuízo do réu). Enfim, não deve demorar para que tenhamos uma resposta a essa polêmica, uma vez que a CVM, segundo afirma a imprensa especializada, já está apurando o fato (http://www.valor.com.br/agro/4973756/cvm-investiga-compra-de-dolares-e-venda-de-acoes-pelo-frigorifico). Resta-nos aguardar as cenas dos próximos capítulos.
André Luiz Santa Cruz Ramos
é Doutor em Direito Empresarial pela PUC-SP, Mestre em Direito Processual Civil pela (UFPE). Especialista em Direito da Economia e da Empresa. Especialista em Direito da Concorrência. Professor de Direito Empresarial de diversos cursos preparatórios, Procurador Federal. Autor.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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