quarta-feira, 10 de maio de 2017

O papel do STF no processo civilizatório

Há quem entenda que a discussão acerca de eventual inconstitucionalidade da lei tributária seja inócua. Isto porque, segundo os que assim pensam, o reconhecimento da existência de vícios insanáveis nos dispositivos legais levaria o ente tributante a editar novas normas, seja com a instituição de novos tributos, seja com o aumento de alíquotas daqueles existentes, com o objetivo claro de recomposição da queda de arrecadação atribuída ao julgamento proferido.

Daí, concluem os que assim pensam, nenhum proveito adviria para os contribuintes da discussão judicial encetada, cuja consequência única seria a de desencadear um moto contínuo. A cada declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) seguir-se-ia uma nova legislação que recomporia as perdas de arrecadação, anulando os ganhos obtidos em juízo pelos contribuintes.

Não percebem os que sustentam esse entendimento que a instauração deste moto contínuo é exatamente o que move o processo civilizatório. É consequência direta do conjunto de valores e princípios insertos na Constituição da República, que pretende uma sociedade regulada não por quaisquer leis, e que não pretende se sustentar a qualquer custo, mas por leis que se subordinem ao império da Lei Maior. É exatamente o que constitui a essência do Estado Democrático de Direito.

Passou da hora de levarem a sério as decisões de nossa Corte Suprema em matéria de constitucionalidade

Não foi por outra razão que a Constituição outorgou aos advogados a condição de órgão auxiliar da Justiça ao proclamá-los como "indispensáveis à administração da Justiça", bem como delimitou claramente o Estatuto do Contribuinte, onde prescreveu as limitações ao poder de tributar, com a clara mensagem de que a relação tributária deve ser compreendida como relação jurídica, e não mais relação de poder, como foi há mais de duzentos anos atrás. Precisamente por causa de tal câmbio no processo civilizatório, o ministro Celso de Mello frequentemente registra em seus memoráveis votos a perene importância de afastar as chamadas "razões de Estado" no julgamento das causas tributárias.

Em recente julgamento acerca da inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins (RE 574.706) a Fazenda Nacional, secundada pelos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes em seus votos divergentes (e vencidos), brandiram em Plenário a ameaça de um suposto aumento de impostos pela via legislativa, caso acolhida a tese dos contribuintes naquele feito.

E, de fato, lê-se nos jornais que o governo se mobiliza para reformar a legislação do PIS e da Cofins ampliando a base de contribuintes e promovendo a elevação de alíquotas para diversos setores, especialmente o de serviços, embora o próprio Ministro de Estado da Fazenda tenha minimizado as "desastrosas" consequências do referido julgamento, vez que reconheceu o exagero dos números alardeados pela PGFN.

Reformar o sistema tributário é anseio antigo da sociedade e promessa igualmente antiga dos mandatários eleitos. Que o faça dentro da moldura constitucional. O aperfeiçoamento legislativo deve ser encarado como notícia alvissareira para quem acredita no processo civilizatório. Como o ministro Roberto Barroso que, no mesmo julgamento, reclamou da inércia do legislador ordinário diante das repetidas manifestações do Supremo Tribunal Federal acerca do correto alcance da base de cálculo do PIS e da Cofins.

Com efeito, já não era sem tempo que se fizesse uma reforma profunda na sistemática desses tributos que nasceram em momentos distintos e com finalidades arrecadatórias específicas, tendo sido, ao longo dos anos, distorcidos em seus elementos essenciais. Hoje parece não haver qualquer dúvida em relação à distorção e importância que tais contribuições sociais sofreram nas últimas décadas, colaborando, em grande medida, para a distorção hoje verificada no sistema tributário como um todo.

A tal ponto que, em recente julgamento na Corte Suprema, as leis de regência dessas contribuições foram consideradas "ainda constitucionais" diante do emaranhado de situações díspares por elas sucessivamente provocadas através dos tempos. Cogitou-se, inclusive, naquela assentada em dar um prazo ao legislador para "por ordem na casa", sob pena de se decretar a inconstitucionalidade das leis de regência do PIS e da Cofins não cumulativas, verbis: "Assim, faz-se necessário advertir o legislador no sentido de que as Leis 10.637/02 e 10.833/04, inicialmente constitucionais, estão num processo de inconstitucionalização, decorrente, em linhas gerais, da ausência de coerência e de critérios racionais e razoáveis das alterações legislativas que se sucederam, no tocante à escolha das atividades e das receitas atinentes ao setor de prestação de serviços, que se submeteriam ao regime cumulativo da Lei nº 9.718/99 (em contraposição àquelas que se manteriam na não cumulatividade" (RE 607.642).

É hora de os Poderes Legislativo e Executivo engajarem-se em um projeto verdadeiramente republicano de reforma, que simplifique as inúmeras obrigações e promova a tão necessária Justiça tributária.

Além disso, também passou da hora de levarem a sério as decisões de nossa Corte Suprema em matéria de constitucionalidade das leis para que os cidadãos do país possam levar a sério os compromissos do Poder Constituinte de 1988 com o Estado Democrático de Direito. Esta a essência do processo civilizatório – missão sagrada de guarda e zelo de uma Corte Constitucional.

por André Martins de Andrade e Fábio Martins de Andrade são sócios da banca Andrade Advogados Associados e doutores em direito público pela UERJ

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte : Valor

Nenhum comentário:

Postar um comentário