O Supremo Tribunal Federal aprovou recentemente duas teses em repercussão geral envolvendo o tema da imunidade tributária: "A imunidade da alínea ‘d’ do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal alcança componentes eletrônicos destinados, exclusivamente, a integrar unidade didática com fascículos" (tema 259, RE 595.676) e "A imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88 aplica-se ao livro eletrônico (e-book), inclusive aos suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo" (tema 593, RE 330.817).
É difícil identificar quando tais lides foram iniciadas, pois se trata de controle difuso de constitucionalidade, mas é quase certo que começaram antes da virada do século em alguma vara no estado do Rio de Janeiro. No STF tramitam desde a década passada. Essa análise temporal é de extrema relevância para se compreender o alcance dessas duas decisões, pois seguramente, à época, ainda não havia a disseminação dos sites noticiosos que encontramos hoje em dia, e que dão uma dimensão mais ampla do que o imaginado na constituinte, no final dos anos 1980. Basta ver que o debate judicial se refere à cobrança de impostos sobre um CD-ROM que era vendido em conjunto com um fascículo de uma enciclopédia digital.
Vale lembrar que são três os objetos protegidos através dessa norma: o livro, o jornal e os periódicos. Observe-se que parte final da norma explicita, através de uma conjunção aditiva, que, além desses três objetos, deve também ser protegido “o papel destinado à sua impressão” (artigo 150, VI, “d”, CF), o que demonstra uma correlação entre os três bens referidos, e esse meio pelo qual são veiculados. A proteção é dos bens, sendo destacado que, além deles, o papel destinado à sua impressão também deveria ser protegido.
Pode parecer que o foco central dessa norma seja a redução de custos, porém, na verdade, isso se constitui em um subproduto da norma, sendo seu escopo a proteção contra o arbítrio estatal, que pode impor restrições à liberdade de imprensa e de informação através do sistema tributário. E nem se diga que isso não aconteceria no Brasil, pois já ocorreu em tempos idos, pela imposição de pesada tributação para a importação de papel pelas empresas jornalísticas durante o governo Vargas – quem leu o livro Chatô, O Rei do Brasil, de Fernando Morais, conhece o fato. É bem verdade que hoje é menos usual os governos criarem barreiras tributárias, fazendo-o através de outras formas de ação, como no direcionamento do crédito público subsidiado, bem como na contratação das empresas de mídia de acordo com seus interesses de plantão. Porém isso não afasta a regulação da matéria sob o ângulo constitucional tributário.
O que se protege, na verdade, não é nem o livro, o jornal ou o periódico, mas o direito fundamental à liberdade de imprensa e à informação. A triagem sobre a qualidade e a veracidade dessa informação depende da avaliação individual de cada pessoa. Porém o direito fundamental protegido é o do acesso à informação e sua disseminação – que vem sendo vastamente ampliado pelo meio digital.
Aqui se verifica o ponto central do debate, pois, passados tantos anos, e com as novas tecnologias disponíveis, a questão da imunidade tributária alcança outros meios de disseminação da informação que não apenas o e-book ou o CD-ROM, mas também os sites informativos e de notícias – como esta ConJur, através da qual tenho a honra de ser lido por você.
Observe que a situação se modificou, pois os meios de disseminação da informação são amplíssimos. Apenas a título de exemplo, existe a versão eletrônica de jornais, como a Folha de S.Paulo e O Globo, revistas semanais como a Veja e a IstoÉ, ou ainda sites informativos, como o UOL e o G1. Todos esses meios digitais podem muito bem ser enquadrados nos conceitos de livro, jornal ou periódico, independente do papel destinado à sua impressão. Existem editoras que, ao vender o livro impresso, permitem ao adquirente o acesso ao livro digital, como a Revista dos Tribunais – sem que seja necessário algum aparelho específico para seu acesso, tal como kindle ou kobo. Aliás, o próprio kindle, que antes significava um equipamento (hardware) já virou também um software que permite a leitura a partir de diversas plataformas digitais, inclusive smartphones. Todas essas maravilhosas engenhocas visam disseminar a informação, e não são o objeto diretamente protegido pela norma, tal como o instrumento livro, que a Lei 10.753/03, para fins de fomento através da Política Nacional do Livro, conceitua como sendo algo impresso “em papel ou em material similar”.
Na verdade, a desmaterialização do meio de veicular as informações é que nos conduz a esse debate, pois, quando a informação apenas circulava pelo meio impresso, era outro o tipo de dúvida que aflorava. Por isso é que anteriormente o STF decidiu em favor da disseminação da informação, reconhecendo imunidade tributária para álbum de figurinhas, para mapas impressos ou atlas geográficos, para apostilas, para encartes e capas para livros didáticos distribuídos em fascículos semanais de jornais, para as antiquadas listas telefônicas, dentre outros casos relacionados pelo ministro Toffoli em seu voto. Nesses casos o STF enfrentou assegurando a ampla liberdade de informação e de imprensa, interpretando a norma de maneira amplíssima. Hoje, com o avanço de tecnologia e a disseminação do uso das redes sociais e blogs, a informação circula com mais facilidade e horizontalidade, e muitos desses meios digitais têm mais acessos do que grande parte do meio impresso.
Nesse sentido, foi correto o voto do ministro Toffoli ao afirmar que: “a interpretação das imunidades tributárias deve se projetar no futuro e levar em conta os novos fenômenos sociais, culturais e tecnológicos. Com isso, evita-se o esvaziamento das normas imunizantes por mero lapso temporal, além de se propiciar a constante atualização do alcance dos seus preceitos”.
Toda essa realidade deve ser levada em conta na análise jurisprudencial, abandonando os paradigmas físicos para a disseminação da informação, em um mundo vastamente digital. Levantamento efetuado pela competente equipe tributária da Editora Abril, tendo à frente Mariana Macia, demonstra a disparidade de entendimentos dentre os cinco tribunais regionais federais (TRFs), inclusive dentre seus órgãos fracionários. Agora isso deve ser uniformizado em prol da liberdade de informação e de imprensa.
Aqui se insere um debate relevante sobre a relação de tensão que sempre existe entre os agentes privados e o poder público, no que tange à matéria tributária. No apagar das luzes de 2016 foi editada a Lei Complementar 157, que alterou a tributação pelo ISS para incluir no âmbito desse imposto duas atividades: (a) de “processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, e congêneres” (item 1.03 da Lista), e (b) “disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de (...) texto por meio da internet...” (item 1.09 da Lista).
Foi mencionado, nesta segunda hipótese, o respeito à “imunidade de livros, jornais e periódicos“, porém, e se for considerada apenas a mídia impressa? O município de São Paulo já havia tentado tributar os banners de publicidade veiculados por meio digital, o que era uma forma de tributar indiretamente o meio financeiro através do qual esses veículos de livre acesso se mantém[1].
A ameaça foi amplificada com a nova lei complementar, considerando os mais de 5,5 mil municípios brasileiros que têm competência impositiva sobre essas atividades. Por esse meio é possível o poder público municipal inibir a divulgação de notícias contrárias a seus interesses, tributando pesadamente, e de forma arbitrária, blogs, sites ou jornais eletrônicos que tenham por foco as notícias municipais.
Grosso modo, as liberdades aqui protegidas podem ser atingidas por diversos impostos: importação (o que era usual, em face do papel), ICMS (o que também era comum, em razão dos CDs que circulavam com os fascículos de enciclopédias ou similares), e pelo ISS, principalmente em razão da modificação normativa efetuada. A bem da verdade, a imunidade tributária deveria também alcançar as contribuições, em face da ampliação da tributação federal por essa via.
Se desviarmos o olhar do Direito positivo, haverá espaço para debater se é adequada a manutenção do sistema de imunidades tributárias, como faz meu colega nesta coluna Justiça Tributária, Raul Aidar, (http://www.conjur.com.br/2017-abr-17/extincao-imunidades-tributarias-questao-justica), mas, como a presente análise tem por base o Direito positivo constitucional, a prosa deve seguir outro rumo.
É necessário, mais do que nunca, defender a liberdade de informação e a liberdade de imprensa, conceitos que se fundem na prática quotidiana, e estar atento para limitar o poder de tributar, pois só assim é possível equilibrar “o preço da civilização” e “o poder de destruir”, conforme já tive a oportunidade de expor na tribuna livre desta revista eletrônica, a ConJur.
Você já imaginou o Brasil nos dias de hoje se não houvesse ampla liberdade de imprensa e de informação pelos meios digitais?
[1] Parecer Normativo SF nº 01/2016. Observe-se que no art. 1º, §1º consta a menção à incidência em “sítios virtuais, páginas ou endereços eletrônicos na internet”, e no §2º existe a menção à imunidade tributária quanto “à divulgação, disponibilização e inserção de propaganda e publicidade inserida no corpo editorial de livros, jornais e periódicos”. Essa exigência de “corpo editorial” é francamente inconstitucional e remete à versão impressa de periódicos tradicionais.
por Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.
Fonte: Conjur
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