A crise econômica que marcou o cenário brasileiro em 2016 deixou também os seus reflexos no Poder Judiciário. De acordo com o indicador do Serasa Experian, foram apresentados 1.863 pedidos de recuperação judicial em 2016 em detrimento de 1.287 em 2015, o que representa um aumento de 44,8%.
Tal cenário, marcado pela recessão econômica, dificuldade de obtenção de crédito e aumento de inadimplementos de obrigações, coloca em pauta a forma pela qual os contratos mantidos com a recuperanda se relacionam com o processo de recuperação judicial. Afinal é do interesse de credores e contratantes saberem de que forma esse tipo de processo poderá impactar em suas relações comerciais com empresas que estão economicamente fragilizadas.
Decisões contrárias à lei e ao contratado implicam a manutenção de empresas muitas vezes inviáveis
Ou seja, sobrevinda a recuperação judicial e inexistindo interesse ou viabilidade para a manutenção da relação contratual com a recuperanda, interessa examinar se a aplicação do princípio da preservação da empresa pode justificar a imposição de limitações da vontade das partes no que diz respeito à manutenção de contatos.
A Lei de Falência e Recuperações Judiciais não traz regramento específico sobre o exercício da autonomia das partes para, entendendo pertinente, resilirem o contrato mantido. Nesse sentido, dispõe o parágrafo 2º do artigo 49 que "as obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial".
Desse modo, sob o ponto de vista normativo, as regras a serem observadas para casos de inadimplemento, resilição ou rescisão de contratos empresariais são as do Código Civil. Em princípio, portanto, a liberdade de contratar e de encerrar o vínculo contratual – esteja a empresa em recuperação ou não – ficam sujeitas à observância dos princípios contratuais, tais como a boa fé objetiva e a função social do contrato, sendo excepcionais as limitações ao exercício da autonomia, por meio da intervenção judicial (a exemplo das hipóteses de lesão, onerosidade excessiva e investimentos consideráveis – artigos 157, 473, parágrafo único, e 478 do Código Civil).
Tem-se observado, contudo, um posicionamento dos magistrados que, aos requisitos estabelecidos pela lei, soma outras limitações à liberdade das partes de se vincularem contratualmente, sobrepondo de forma irrestrita o princípio da preservação da empresa aos interesses dos credores e parceiros comerciais da recuperanda.
Como exemplo, no agravo nº 0042657-40.2012.8.26.0000 (TJ-SP) foi reformada a decisão do juízo da recuperação que determinou a manutenção de contrato de fornecimento por empresa que desejava a extinção do referido contrato, o qual já vinha sendo discutido em demanda autônoma. O magistrado, sem a devida instrução e sequer sendo competente, forçou a vigência de um contrato a despeito do interesse de uma das partes de o resilir e dos impactos negativos para a fornecedora.
Além disso, não é incomum encontrar discussões judiciais sobre a validade da cláusula de resilição automática do contrato, previamente pactuada, em caso de uma das partes apresentar pedido de recuperação judicial ou falência.
Ainda que a preservação da empresa seja o princípio norteador da recuperação judicial, a prolação de decisões contrárias à lei e ao contratado, que crie desproporções aos contratantes, paradoxalmente, implica a manutenção de empresas muitas vezes inviáveis economicamente, prejudicando uma gama de outras empresas saudáveis e, assim, gerando efeitos extremamente negativos no mercado. Não raramente, a imposição de graves ônus a empresas que têm contratos com a recuperanda mostra-se mais prejudicial ao mercado e, assim, à própria preservação das empresas em sentido mais amplo.
Custos de transação tendem a aumentar, criando inseguranças nas relações empresariais, dada a possibilidade de que, sobrevinda crise financeira de um dos contratantes, o Judiciário imponha uma condição comercial não desejada e contratada pelas partes. Afinal, conceitualmente, no mercado devem se manter apenas empresas com condições de sobrevivência e cumprimento dos contratos, a bem da preservação da qualidade e custos das atividades comerciais e de um número infinitamente maior de empregos.
O tratamento desproporcional e oneroso a apenas uma das partes pelo Judiciário negligencia aspectos fundamentais dos contratos empresariais, ao desconsiderar a natureza empresarial das partes envolvidas, tratando a recuperanda como se hipossuficiente fosse, em prol da suposta preservação da empresa, porém atentando contra a preservação do mercado ou de um ambiente seguro para a consecução dos contratos.
Até mesmo porque, como relatado, não há respaldo legal para a imposição de manutenção de um contrato, principalmente sob o fundamento de preservar a viabilidade econômica da outra parte contratante. Se a empresa que pediu recuperação judicial não possui condições de se manter economicamente, a solução não consiste na oneração desproporcional dos parceiros comerciais, com a manutenção de um negócio indesejado ou prejudicial, mas na decretação de falência.
Flávio de Souza Senra e Cristiane Pedroso Pires são sócios do Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Por Flávio de Souza Senra e Cristiane Pedroso Pires
Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br/
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