A inútil complexidade do sistema tributário (nas três esferas de governo) impõe riscos tão frequentes e elevados ao contribuinte que, a rigor, a autuação por infração às normas fiscais torna-se praticamente uma certeza no curso de qualquer empreendimento no Brasil.
As operações interestaduais de circulação de mercadorias são exemplo desse risco constante, sobretudo quando o ICMS é exigido no regime de substituição tributária — situação na qual é preciso examinar cautelosamente a legislação de cada Estado envolvido e, igualmente, os “protocolos” entre eles firmados (que regulam a incidência do imposto no regime de substituição).
No estado de São Paulo, por exemplo, há exigência de que a tomada de crédito de ICMS pela entrada de mercadorias (em operações internas ou interestaduais) esteja amparada em documento fiscal “hábil”, assim entendido aquele “emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco” (art. 36, § 1º, da Lei paulista 6.374/89; art. 59 do Regulamento do ICMS baixado com o Decreto 45.490/00 – RICMS/SP).
Isso impõe ao comprador a consulta prévia à página do Sintegra (Sistema Integrado de Informações sobre Operações Interestaduais) na internet, onde é possível confirmar se a inscrição estadual do vendedor não se encontra suspensa ou inabilitada. Caso a inscrição esteja válida, é imperativo imprimir a tela da consulta eletrônica porque, como se sabe, a inscrição pode ser suspensa a qualquer momento – e não é raro que seja inabilitada retroativamente.
De fato, em muitos casos a inscrição se mostra habilitada no sistema no momento em que ocorre a operação (e durante a consulta eletrônica ao Sintegra), mas muito tempo depois o fisco detecta que o estabelecimento encerrou suas atividades e, dependendo das circunstâncias, faz retroagir a inabilitação.
Nessa hipótese o comprador da mercadoria pode ser — e é, com frequência — autuado pela fiscalização estadual, que exige o imposto creditado pela entrada das mercadorias, alegando tratar-se de crédito tomado com base em documento “inábil”. O imposto é acrescido de multa de 35% do valor da operação (art. 85, II, “c”, da Lei 6.374/89) – percentual manifestamente confiscatório, diante da alíquota do imposto (18% sobre a mesma base).
Há também grande dificuldade para se coletar provas documentais que sejam aceitas pela fiscalização como evidência da existência do estabelecimento vendedor. Afinal, ainda que tenha “fiscalizado” aquele estabelecimento na época da operação (providência pouquíssimo usual), não se espera que o comprador mantenha em arquivo alguma prova documental disso.
A punição é elevadíssima para um comportamento que passa longe do conceito de dolo. Como o risco também é dos mais comuns no relacionamento com fornecedores, há poucas opções para o contribuinte: ou burocratiza suas compras, exigindo que o vendedor forneça documentos adicionais (cópias de guias previdenciárias, contas de luz, água e telefone do endereço, cartas de referência de outros clientes e de bancos, fotografias do local, por exemplo), ou simplesmente restringe as compras a fornecedores próximos que possam ser visitados com frequência e sem maiores ônus decorrentes da distância.
A situação não parece ser muito diferente quando o contribuinte se encontra na posição de vendedor das mercadorias sujeitas ao ICMS, pois há grande preocupação fazendária com o fato de a venda interestadual estar sujeita a uma alíquota menor que aquela devida na operação interna.
Realmente, o Fisco pode autuar o vendedor, em São Paulo, para exigir o ICMS à alíquota interna (18%), ao invés da alíquota interestadual destacada no documento fiscal original, se não houver prova do ingresso da mercadoria no Estado de destino — por força de norma que faz presumir interna a operação quando o contribuinte não comprovar a saída da mercadoria do território paulista com destino a outro Estado (art. 23, § 3º, da Lei 6.374/89).
O Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) uniformizou a jurisprudência administrativa no sentido de prevalecer, nessas situações, a presunção de que a operação é interna. Num dos julgados mais relevantes decidiu que prevalece a presunção ainda que a operação tenha sido pactuada com a cláusula FOB (segundo a qual o transporte ao destino é da responsabilidade do adquirente), já que não se pode opor ao fisco esse tipo de acordo entre particulares, por força do artigo 123 do CTN (confira-se a decisão daquele órgão a propósito do AIIM 4.053.695-6, de 2014).
As autuações sobre o tema acabaram chegando ao Poder Judiciário que, por sua vez, adotou integralmente o argumento fazendário, desprezando a cláusula FOB e impondo ao contribuinte o ônus da prova de que a mercadoria efetivamente foi entregue ao destinatário em outro Estado. Há inúmeros precedentes do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo (por todos, veja-se o acórdão nos autos da apelação n. 8001103-44.20112.8.26.0014, de 24.8.2016, sendo relatora a desembargadora Flora Maria Nesi Tossi Silva).
Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, a quem compete o reexame das decisões de cortes locais, não possui orientação em sentido contrário — e, rigorosamente, é um tribunal que não reexamina a prova dos autos (Súmula 7 daquela Corte), impedindo que o tema da prova da entrega da mercadoria seja ali reapreciado.
Em situações como a acima referida a multa normalmente aplicada pela fiscalização, conjuntamente com a exigência do imposto, pode chegar a 40% do valor da operação (novamente, um percentual bem superior à própria alíquota de 18%), conforme art. 527, III, “b”, do RICMS/SP.
Em tempos de crise econômica e queda de arrecadação é de se esperar que alguma desburocratização torne mais atraente o empreendedorismo, e sob a ótica jurídica é desejável que as multas mais elevadas sejam aplicadas apenas às situações onde haja efetivo dolo. Mas a simplificação do sistema tributário e a humanização das penalidades fiscais não ajudam se não houver sensibilidade da parte do Poder Judiciário na interpretação das leis tributárias.
por Rogério Pires da Silva é advogado em São Paulo, sócio do escritório Boccuzzi Advogados Associados.
Fonte: Conjur
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