No mercado, e ainda mais em tempos de crise econômica, é muito comum ouvir-se falar em “descontos”, como parte de campanhas de fidelização, “promoções” para redução de estoques, ações para conquistas de mercados que alteram o preço de mercadorias e serviços. Dúvida relevante é saber se todos esses “descontos” podem resultar na redução da base de cálculo do ICMS (o que vale igualmente para IPI e ISS) ao preço da venda final.
Para a legislação e a doutrina do Direito Tributário, firmou-se a distinção entre descontos ditos “condicionais”, que devem ser incluídos no valor da base de cálculo, e os assim chamados descontos “incondicionais”, que diversamente não podem ser adicionados à base de cálculo, a somar-se ao montante da operação.
Logo, afirma-se como inconstitucional a exigência de ICMS que, no todo ou em parte, não demonstre a capacidade contributiva do sujeito passivo, o que resulta sempre que a base de cálculo não seja reveladora do montante exato da operação realizada, a afrontar a garantia do artigo 150, IV, da CF, que proíbe “utilizar tributo com efeito de confisco”. Vejamos o caso do ICMS.
A regra que prescreve a integração do desconto concedido sob condição à base de cálculo do ICMS encontra-se no artigo 13, § 1º, II, “a” da Lei Complementar 87/96, a saber:
“Art. 13. A base de cálculo do imposto é: (...)
§ 1º Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo: (...)
II - o valor correspondente a:
a) seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos concedidos sob condição;”
Não é tarefa fácil dar resposta definitiva sobre quais sejam os casos de descontos condicionais, que não escapam à formação da base de cálculo, a merecer sempre análise de caso a caso. Contudo, algumas notas são fundamentais para essa qualificação.
De imediato, a questão impõe um exame atento de conceitos e institutos de direito privado, para determinar os efeitos daqueles descontos sob “condição”, e, de outra banda, dos incondicionados, o que só pode ser feito em conformidade com o direito privado, caso a legislação tributário não tenha dado expressamente efeitos diversos. É o que diz o Código Tributário Nacional no artigo 109, do CTN:
“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”.
A definição, o conteúdo e alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado serão sempre preservadas quando, sobre estas, o direito tributário não disponha de modo diverso. [2] Firmamos, assim, o primeiro postulado de aferição do modelo dogmático para enfrentar o tema. Ou seja, quando não houver disposição diversa, prevalecerá o instituto e suas formas jurídicas para todos os efeitos, inclusive os de natureza tributária.
O segundo postulado consiste na liberdade de afirmação do “preço” do bem ou serviço como corolário dos princípios de autonomia privada e de capacidade contributiva. No direito privado, prevalece o princípio da autonomia privada quanto à formação do contrato, sobre o seu conteúdo. [3] Nesse largo âmbito insere-se a liberdade para determinação do preço, ou, ainda, de sua prestação. [4]
Como assinala Pontes de Miranda: o preço não tem de ser, desde logo, preço determinado. Basta que, desde logo, seja determinável. Preço determinado é aquele que não requer qualquer critério ou método para sua determinação; preço determinável, por sua vez, corresponde ao preço passível de definição objetiva mediante aplicação de critério de fixação previsto no negócio jurídico. Como diz Pontes de Miranda, [5] “tem-se o critério de fixação, não se tem a fixação”.
Em suma, o que importa à causa jurídica do contrato é que tenhamos preço a ser pago em dinheiro, que não precisa vir necessariamente definido no momento da celebração do contrato o seu exato montante, podendo ser este determinável, por meio de critérios de fixação previamente indicados. As condições de preço estabelecem-se como típico direito dispositivo. As partes estarão vinculadas às condições.
Isolados dos demais aspectos, serão sempre descontos incondicionais aqueles que independem de evento futuro e incerto, em conformidade com aquilo que estabelece o artigo 121 do Código Civil, quanto aos requisitos da “condição”:
“Art. 121. Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.” (grifamos).
Portanto, a condição aqui referida está adstrita à livre manifestação de vontade das partes para definir, como condição, algum futuro e incerto. Na ausência de semelhante deliberação, não cabe falar de “condição”. Pode ser sanção por inadimplemento, mas nunca uma espécie de “condição”.
De modo semelhante, assim se manifesta Vicente Ráo:
“Em sentido próprio, chama-se condição a modalidade voluntária dos atos jurídicos que lhes subordina o começo ou o fim dos respectivos efeitos à verificação, ou não verificação, de um evento futuro e incerto.”
A “condição” deve ser vir constituída entre as partes, mediante ato de autonomia da vontade, por contrato (condição voluntária); mas seja como for, o que vale é identificar o critério adotado para a “condição” e qual o seu papel como critério jurídico, como elemento constitutivo deste, seja a condição legal ou voluntária. O que importa é identificar a função jurídica do evento qualificado como “condição”, de modo a extrair sua objetiva significação. E por isso, em matéria tributária, pelo princípio de tipicidade fechada, toda condição existente passa a ser elemento do tipo, integrando a materialidade da norma.
Para melhor intelecção, oportuno o exemplo de desconto sob condição, utilizado por José Eduardo Soares de Melo, [6] a saber:
“Assim, tendo o comerciante fixado o preço de uma televisão em R$ 10.000,00 no caso de pagamento mediante a utilização de cartão de crédito; e em R$ 9.000,00 para pagamento em moeda, no ato da aquisição, o ICMS, por determinação legal) teria que ser calculado sobre R$ 10.000,00.
Entretanto, referida regra viola o princípio da capacidade contributiva, harmonizado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, uma vez que o contribuinte não irá receber o montante de R$ 10.000,00, diverso do negócio ajustado entre as partes (R$ 9.000,00), o que não guarda nenhuma correspondência com a riqueza a ser auferida.”
Descontos “sob condição” quedam-se pendentes, na realização do negócio, de algum evento futuro para o aperfeiçoamento do seu suporte fático. Já descontos incondicionais são aqueles não sujeitos à condição, definidos antes da ocorrência do fato jurídico tributário e segundo critérios que independam de ulterior modificação.
Como bem apontou o Ministros Marco Aurélio, no julgamento do RE 567.935-SC, a principal distinção entre o desconto incondicional e aquele sob condição está refletida no documento contábil.
Quando a nota fiscal ou fatura de venda de mercadorias ou prestação de serviços já contempla o valor do desconto e em seu total consta o valor líquido, que é o montante a ser pago pelo cliente, certamente não há condição. Não há evento futuro e incerto a modificar o preço. Como eventos futuros e incertos, as condições referem-se sempre a um comportamento do cliente após a venda e a emissão do documento contábil.
Na contabilidade há uma conta própria para registrar os descontos concedidos sob condição, denominados “abatimentos”, a saber:
“A conta abatimentos deve abrigar os descontos concedidos a clientes, posteriormente à entrega dos produtos, por defeitos de qualidade apresentados nos produtos entregues, ou por defeitos oriundos do transporte ou desembarque etc. Dessa forma, os abatimentos não se referem a descontos financeiros por pagamentos antecipados, que são atualmente tratados como despesas financeiras e não incluem também descontos no preço dados no momento da venda, que são deduzidos diretamente nas notas-fiscais. Todavia, há empresas que adotam sistemas de contabilização das vendas de forma a registrar as vendas brutas por preços normais e debitar em conta especial de Descontos Comerciais as reduções dadas no preço, relativas a clientes especiais, grandes volumes etc. para controle destes descontos.
Nesse caso, tal conta deve figurar como redução das vendas brutas para apurar a receita operacional líquida.” [7]
Atualmente [8] vigem as regras de reconhecimento de receitas disciplinadas no Pronunciamento do Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC 30, que ao tratar da mensuração das receitas, dispõe:
“9. A receita deve ser mensurada pelo valor justo da contraprestação recebida ou a receber.
10. O montante da receita proveniente de uma transação é geralmente estabelecido entre a entidade e o comprador ou usuário do ativo. É mensurado pelo valor justo da contraprestação recebida, ou a receber, deduzida de quaisquer descontos comerciais (trade discounts) e/ou bonificações (volume rebates) concedidos pela entidade ao comprador.”
Como se depreende, para a contabilidade, devem ser subtraídos dos preços de mercadorias e serviços todos os descontos e bonificações concedidos, pois estes não compõem o preço da mercadoria ou serviço. Contudo, isso só valerá para definir a inclusão ou não do desconto na base de cálculo do ICMS se confirmada, ou não, a presença de condição, vinculada ou não a evento futuro e incerto.
Oportuno aqui o trecho da Solução de Consulta COSIT 49/2015, no qual a Receita Federal do Brasil admite que variáveis do preço pactuadas no contrato não se confundem com desconto sob condição. Confira-se:
“Nesse caso o valor do bônus do cliente aceito por um dos estabelecimentos conveniados, nada mais é que um desconto, já que o bônus perde suas funções uma vez utilizado pelo cliente. Trata-se do conceito de desconto incondicional, isto é, não há condições pós venda para obtenção do desconto. A única condição é possuir o bônus. Mas esta condição é pré venda, o que não descaracteriza o desconto como incondicional.”
Os preços entre partes independentes (como Consulente e seus clientes) são pautados por critérios livres do mercado. E, neste, a empresa está livre para adotar a melhor forma de conduzir seus negócios e conceder descontos para fidelização de seus clientes. Quando estes descontos não dependem de um evento futuro e incerto, são descontos incondicionais que não podem compor a base de cálculo do ICMS.
No regime de recursos repetitivos, o STJ julgou o REsp 1.111.156/SP, quando decidiu que bonificações são descontos incondicionais e, consequentemente, não devem ser incluídas na base de cálculo do ICMS. A saber:
“TRIBUTÁRIO. ICMS. MERCADORIAS DADAS EM BONIFICAÇÃO. ESPÉCIE DE DESCONTO INCONDICIONAL. INEXISTÊNCIA DE OPERAÇÃO MERCANTIL ART. 13 DA LC 87/96 NÃO-INCLUSÃO NA BASE DE CÁLCULO DO TRIBUTO.
1. A matéria controvertida, examinada sob o rito do art. 543-C do Código de Processo Civil, restringe-se tão-somente à incidência do ICMS nas operações que envolvem mercadorias dadas em bonificação ou com descontos incondicionais; não envolve incidência de IPI ou operação realizada pela sistemática da substituição tributária.
2. A bonificação é uma modalidade de desconto que consiste na entrega de uma maior quantidade de produto vendido em vez de conceder uma redução do valor da venda. Dessa forma, o provador das mercadorias é beneficiado com a redução do preço médio de cada produto, mas sem que isso implique redução do preço do negócio.
3. A literalidade do art. 13 da Lei Complementar n. 87/96 é suficiente para concluir que a base de cálculo do ICMS nas operações mercantis é aquela efetivamente realizada, não se incluindo os "descontos concedidos incondicionais".
4. A jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no sentido de que o valor das mercadorias dadas a título de bonificação não integra a base de cálculo do ICMS.
5. Precedentes: AgRg no REsp 1.073.076/RS, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 25.11.2008, DJe 17.12.2008; AgRg no AgRg nos EDcl no REsp 935.462/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJe 8.5.2008; REsp 975.373/MG, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 15.5.2008, DJe 16.6.2008; EDcl no REsp 1.085.542/SP, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 24.3.2009, DJe 29.4.2009.
Recurso especial provido para reconhecer a não-incidência do ICMS sobre as vendas realizadas em bonificação. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução 8/2008 do Superior Tribunal de Justiça.” [9]
Ao mais, sobre os descontos incondicionados, o STJ pacificou a questão na Sumula 457, a saber:
“Os descontos incondicionais nas operações mercantis não se incluem na base de cálculo do ICMS.” (Súmula 457, 1ª Seção, julgado em 25/8/2010, DJe 08/09/2010)
Destarte, a interpretação do artigo 13, III, da Lei Complementar 87/96 deve assegurar que a base de cálculo do ICMS seja apurada com descontos condicionais incluídos na base de cálculo do imposto. De outra banda, prevalece a jurisprudência pacífica do STJ no sentido de que a base de cálculo do ICMS deve abarcar o preço da operação com a exclusão de descontos incondicionais concedidos.
Como dito acima, descontos incondicionais são descontos contratados previamente à ocorrência do fato gerador do ICMS, mas que não dependem de condição futura ou incerta, logo, sem qualquer possibilidade de modificação ou de indeterminação futura.
Em conclusão, a base de cálculo do ICMS deve refletir a contraprestação efetivamente paga na operação com mercadoria ou na prestação de serviços de transporte ou de comunicação. Desse modo, em respeito ao princípio da capacidade contributiva e da proibição de confisco, os descontos incondicionados não podem ser incluídos na base de cálculo do imposto, ex vis do artigo 13, §1º, II, ‘a’, da Lei Complementar 87/96, sob pena de se tributar como “preço” a proporção dos “descontos”, na medida que estes não possam ser modificados ad futurum. Somente os ditos “descontos condicionados” podem ser incluídos na base de cálculo do ICMS.
1 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 77.
2 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário brasileiro (Anotado por Misabel de Abreu Machado Derzi). RJ: Forense, 11.ª ed., 1999, p. 685.
3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Parte especial – Direito das obrigações: compra-e-venda. 3.ª ed., SP: Editora Revista dos Tribunais, 1984, v. XXXIX, p. 17.
4 Ibidem, p. 37.
5 Ibidem, p. 36.
6 MELO, Jose Eduardo Soares. ICMS - base de cálculo - descontos, seguros, juros, multas, correção, reajustes. Pautas na substituição tributária. Importações. Base reduzida e estorno de credito. In: ROCHA, Valdir de Oliveira; Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2006. p. 276-301.
7 Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (FIPECAFI). Manual de contabilidade das sociedades por ações: aplicável também as demais sociedades. São Paulo: Atlas, 2005, p. 513.
8 Vigente até dia 1º de janeiro de 2018.
9 Resp 1.111.156/SP, Relator Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, j. 14.10.2009, DJe 22.10.2009.
por Heleno Taveira Torres é professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).
Fonte: Conjur
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